quarta-feira, dezembro 23, 2015

O Natal, promessa da Páscoa


[Grão de Trigo, Dez. 2013, p. 2]

Ao procurar o significado do Natal, estamos habituados a reler o Novo Testamento. Nos textos dos evangelistas procuramos o relato da natividade de Jesus e comparamo-lo com as tradições do Natal que conhecemos e vivemos. Mas o que nos é aí dito do nascimento de Jesus – e de outros acontecimentos a ele associados – dificilmente pode esclarecer todo o significado do Natal.

Quando, por exemplo, lemos que os magos levaram ouro e incenso ao Jesus Menino, convém saber que, no Antigo Testamento, numa passagem profética sobre Jesus e o Natal, o profeta Isaías ajuda a esclarecer o significado dessas ofertas (Is. 60:6). O próprio Jesus, quando revelou o significado da sua vida e do seu evangelho (Lc. 4:16-21), fazendo-o por meio da leitura do livro de Isaías (Is. 61: 1-3), sinalizava a importância profética da passagem por si escolhida. E no Natal está, em potência, toda a incomensurável dimensão salvífica de Jesus. Podemos compreender essa dimensão tendo todo o Evangelho em consideração, mas dificilmente o relato da natividade de Jesus, em si mesmo, no-la revela. É como se pudéssemos assistir ao nascimento de Jesus e pouco entender o seu significado.

Os magos (embora desconheçamos a natureza da sua fé e das suas expectativas) pareciam saber algo sobre o alcance daquele nascimento – percebiam um significado transcendente naquele Menino que procuraram e adoraram. Para que possamos ter um pouco dessa perceção grande, abrangente e transcendente do Natal, é preciso ler os profetas que anunciaram o Messias, em particular Isaías – de cujo texto Jesus tomou para si próprio vários atributos que, por esse facto, iluminam a natureza da sua vinda a nós, à nossa humanidade.

Em Is. 52:13-53:12, temos a apresentação da imagem real do Messias, que nos é dito será um Servo sofredor e de uma natureza semelhante à nossa, os «outros filhos dos homens» (Is. 52:14). Será, pois, um «filho do homem», isto é, plenamente humano como nós, e portanto, logo aqui, está anunciado o nascimento de um menino. No capítulo 59, podemos compreender a razão deste nascimento na nossa necessidade de um mediador para nos salvarmos. Precisamos da salvação porque, como diz o profeta, desconhecemos «o caminho da paz», «não há justiça» nos nossos passos e fazemos para nós próprios «veredas tortuosas» em que nos perdemos e onde tropeçamos continuamente; por isso, esperamos a luz, «mas andamos na escuridão» (Is. 59:8-9), mesmo em pleno dia.

Dado que somos incapazes de sair desse estado por nós mesmos, quem poderia interceder por nós ou guiar-nos para a luz ou ser luz para nós? O Menino que há-de nascer tem de resplandecer para ser a luz de que estamos precisados, mas nenhum filho de Adão, marcado pelo pecado, pode chegar a essa função. Estamos todos demasiado imersos na escuridão – todos nós. Por isso, o Servo sofredor, apesar de «filho do homem», como ele próprio se designará, será também luz e glória que vêm do Alto, que sobre nós descem (Is. 60:1-2).

Este salvador nascido de mulher será um filho da luz como nenhum outro humano pode ser. Isaías não elabora toda a natureza do Messias – porque muito teria de ser revelado apenas na consumação da Nova Aliança –, mas adianta (ou Deus por ele) as imagens que permitem identificar a Nova Páscoa e a função vicarial de Jesus. Aquele que, neste livro, pela boca de Isaías, fala na primeira pessoa, dirigindo-se a Jerusalém (prefiguração da Igreja) é um Senhor em que não é claro quem fala: o Pai ou o Filho, o que envia ou o que é enviado?

Nesta escrita, em que aquela indistinção do discurso permite, mesmo assim, entender que há duas pessoas divinas implicadas, prefigura-se a íntima ligação do Messias Menino ao Pai, como na formulação do Credo – «consubstancial». Diverso, mas indistinto. No início do capítulo 63 (vv. 1-6), aquele que fala «em justiça, poderoso para salvar» (v. 2), tem «vermelho o traje» como o do «que pisa uvas no lagar»; ele pisou as uvas sozinho e nenhum outro homem se achava com ele a fazer esse trabalho com eficácia salvífica (v. 3). «Olhei, e não havia quem me ajudasse, e admirei-me de não haver quem me sustivesse; pelo que o meu próprio braço me trouxe a salvação, e o meu furor me susteve» (v. 4), diz por [meio de] Isaías o Salvador que já estava com o Pai e que havia de vir como Menino para consumar o que em si próprio ao «filho do homem» parece admirar.

Ele anuncia aqui a sua e nossa Páscoa, o ponto culminante da história da Salvação. E anuncia a suficiência do seu ato na cruz, feito de uma vez por todas. Em tudo isto, com Isaías, podemos ver que o brilho do Natal é a promessa da luz que desponta na Páscoa – e aponta para a Páscoa.

Desafio… Jesus, nossa Páscoa, é Deus que, segundo Isaías, se revestiu de armadura e capacete para a batalha de nos salvar. É uma batalha que está ganha à partida para Ele, mas a que Ele nos chama para estarmos juntos na vitória. Nós é que podemos sair perdedores. Quem faz a convocação de cada um de nós para o combate espiritual é o Jesus Menino, que na sua natividade nos lembra a humanidade de que se revestiu para nos liderar. Porque a armadura e o capacete são a nossa humanidade – para Ele e para nós. Irmãos, daquela criança que já foi, ouvimos a convocatória. Quem quer ser soldado de Cristo? Vamos, irmãos? Sim, aleluia!

segunda-feira, dezembro 14, 2015

Apoio Henrique Neto

É com orgulho que sou um apoiante de primeira hora de Henrique Neto à Presidência da República. Sou há alguns meses sócio quotizado da Associação Faz o Futuro Connosco. O País tem de ter um presidente, de acordo com a atual Constituição, e com os poderes nela previstos. Então, o que é lógico é escolher-se o candidato mais claramente íntegro em termos pessoais, independente dos principais interesses instalados, com capacidade de identificar os principais problemas comuns e com ideias razoavelmente acertadas sobre a sua resolução. Na presente «corrida» presidencial, o único candidato com estas características é Henrique Neto. Quaisquer calculismos pessoais ou políticos (como a lógica do «voto útil») deveriam ceder perante uma constatação tão simples e verdadeira. No meu caso, cederam. Ver aqui o sítio da candidatura.

domingo, novembro 29, 2015

Sobre a degradação em curso dos nossos costumes políticos (com uma tentativa de historiar a sua origem e de identificar os dois grandes perigos que dela decorrem)

Para a minha amiga Sónia dos Reis,
farmlady, empresária e líder autárquica do PSD em Grândola.


É bom começar por lembrar que, logo a seguir às eleições de 2011, o PS adotou uma posição de distanciamento em relação ao Memorando da Troika. Os Socialistas passaram a agir como se não tivessem nada a ver com o Memorando. A aplicação deste pelo governo de Passos Coelho foi sempre considerada à luz de duas ideias: o governo estava a ir «para além da Troika» e as condições impostas ao País pelos credores deveriam ser renegociadas em Bruxelas com «murros na mesa». Só não se percebia por que razão Sócrates não o fizera quando negociou o Memorando com os credores. Esta atitude justificava-se quer pela psicose de negação da realidade que se instalara no PS desde as eleições de 2009, quer por uma habilidade consciente de que assim se evitaria a responsabilização do PS pelas medidas de austeridade que estavam a ser implementadas. É importante explicar a psicose que se instalara no PS.

A crise financeira internacional de 2008 veio estragar a estratégia neokeynesiana de Sócrates (obras públicas faraónicas e despesas sociais generosas financiadas por endividamento externo crescente), embrulhada em lustroso papel de socialismo «moderno», «tecnológico», cosmopolita e pós-ideológico. Esta natureza pós-ideológica era patente na desenvoltura com que o poder socialista na versão de Sócrates convivia com certa banca privada, sem aparente nojo do mercado e dos negócios, e substituíra aparentemente o estatismo e os antigos combates ideológicos do velho socialismo pelas modernas e urbanas «causas fraturantes» (uma estratégia considerada unanimemente inteligentíssima pelos comentadores para esvaziar o Bloco de Esquerda). Daí que Sócrates se tivesse içado a líder do PS como moderado e mesmo centrista face à sinistrose rezingona de Manuel Alegre (primeiro seu adversário na disputa da liderança, depois candidato presidencial à revelia do líder).

Tudo isto se esboroou quando o recurso ao endividamento externo se tornou insustentável. Mas, entretanto, Sócrates construíra uma poderosa teia de poder pessoal que mudou o PS tal como o conhecíamos. Apesar dessa fama de líder socialista “pós-moderno”, Sócrates comportou-se como um simples cacique, fazendo aliados entre elementos da velha guarda (de preferência próximos do tempo do guterrismo) e sobretudo plantando no partido uma nova geração de fiéis que, como ele, não tinham currículo e apenas queriam protagonismo e lugares à sombra de um padrinho político (que Sócrates seria para eles como Guterres fora para si próprio). Quando Sócrates radicalizou o discurso, após perder a maioria absoluta em 2009, e à medida que o seu desespero crescia na exata proporção dos juros que os aforradores internacionais pediam pelas novas emissões de dívida soberana portuguesa, estes fiéis apolíticos, que teriam sido centristas se Sócrates continuasse centrista, radicalizaram-se obedientemente com o chefe. E passaram a condicionar completamente os jogos de poder dentro do PS, onde no fim do socratismo não se ouvia qualquer voz dissonante.

O grupo parlamentar saído das eleições de 2011 tinha toda a «nova geração» bem representada, o que impediria António José Seguro de fazer qualquer corte com a herança socratista. Não foi possível, por isso, o PS sequer esboçar um exercício de autoexame que qualquer pessoa ou agremiação no seu perfeito juízo teria de fazer: o que se passara no partido desde o guterrismo para alguém como Sócrates chegar onde chegou? Pela mesma razão, foi impossível o PS questionar os resultados económicos do consulado de Sócrates. A bancarrota do Estado era uma invenção, o Memorando mal negociado por Sócrates (entre outras razões porque parte substancial da dívida pública ainda estava ocultada pela engenharia contabilística do seu governo) era da responsabilidade dos partidos que assumiram então o poder e nada na estratégia neokeynesiana do anterior líder estava errado (apesar do País nada ter crescido com tanto estímulo e demand management).

Neste cenário, qualquer aproximação ou convergência com Passos Coelho e o PSD punha em causa o pacto negacionista em que o partido escolhera aprisionar-se para – acreditavam – poder sobreviver ao infortúnio de 2011. Admitir as falhas clamorosas de Sócrates seria um processo suicida: onde pararia o apuramento de responsabilidades? Quem não alinhara com o líder e não o defendera até ao fim? E que hipótese de sobrevivência política teria quem admitisse responsabilidades? A melhor estratégia era negar que houvesse razões para assumir responsabilidades. O problema, a origem do mal, teria de passar a ser outro, que permitisse a autovitimização: a ortodoxia financeira e orçamental defendida pela chanceler alemã e a que o governo de Passos Coelho era indecentemente submisso, aparentemente por livre escolha – servindo a velha tese da conspiração neoliberal para explicar tão improvável conversão ideológica do PSD e do CDS. E tudo o que se dizia sobre a chegada ao Memorando era um hediondo conjunto de mentiras. Se isto fosse repetido contínua e insistentemente, uma grande parte do País desconfiaria que teria mesmo de ser assim e não como o senso comum apontava serem as coisas. Deste modo, negociar com o PSD e com Passos Coelho era uma impossibilidade. A radicalização do discurso criaria um fosso intransponível porque afastaria a maioria PSD/CDS e a levaria a ter, por seu lado, um discurso reativo ao negacionismo reinante no PS. A indignação das vozes da maioria seria transformada em manifestação de indisponibilidade para a negociação e o «envolvimento» do PS. Assim se virava tudo convenientemente de pernas para o ar.

Uma das vozes que mais repetiu este delírio preocupante foi António Costa, catapultado pelos apoiantes de Sócrates e pelos bem-pensantes nos meios de comunicação social a exímio autarca de Lisboa e a grande promessa do PS, da governação e do País. Em Lisboa, Costa aterrara numa autarquia desgovernada por um incapaz e onde o PSD desistira da luta: conseguiu assim uma vitória retumbante, que os incautos acharam ser reveladora, não da circunstância política local, mas da idiossincrasia do homem. Costa sabia da sua fortíssima conivência com o socratismo e teve as mesmas razões que os outros para aderir ao negacionismo. Na patetice à solta a que se resume boa parte do comentário político, Costa era dado indiferentemente como candidato forte à presidência da República ou à chefia do Governo; caberia ao próprio optar por qualquer um dos grandes destinos. Para estes, o sucessor de Sócrates na liderança do PS, António José Seguro, fazia o papel de tontinho a quem ainda não haviam explicado que tudo o que ele queria pertencia por direito a Costa. Contrariamente a Seguro, Costa tinha «currículo»: este, na verdade, resumia-se ao facto de já ter sido ministro – pouco importando o facto mais relevante de não ter currículo quando foi ministro pela primeira vez.

À medida que desfilavam as dificuldades reais, imaginárias e fabricadas do governo de Passos Coelho, agigantou-se o mito de um Costa que arrasaria em qualquer eleição quando apeasse Seguro. Muitos socialistas acreditaram tanto nisso que não puderam suportar a tentação de Seguro de aceitar o repto do presidente da República para negociar com o Governo várias medidas a que convinha apoio alargado. Não custou nada, por isso, demonizar, enxovalhar e conspirar contra Seguro. Como ousava ele colocar-se no caminho de Costa e das promessas que com ele se materializariam? Costa defenestrou Seguro sem pruridos e com uma arrogância que só os cínicos não quiseram ver. A degradação dos costumes políticos começou dentro do PS e Costa assumiria a tarefa de a exportar a todo o sistema político português, tornando-se o coveiro do «arco da governação» do nosso regime constitucional.

É verdade que houvera um ensaio desta degradação no breve período em que Ferro Rodrigues foi líder dos Socialistas e em que fez uma oposição ao governo de Durão Barroso pautada por uma radicalização já alimentada de negacionismo (este em relação ao «pântano» em que o próprio Guterres assumiu ter deixado o País), de combate privilegiado aos outros partidos moderados (PSD e CDS) e de atitude trauliteira com linguagem duvidosa (o famoso “argumentário” do «governo da tanga»). Costa, porém, ao alinhar numa coligação negativa com o PCP e o Bloco de Esquerda para afastar do poder Passos Coelho, após as eleições de 4 de outubro último, parece ter lançado o PS na via sem retorno daquela degradação. De uma assentada, Costa rompeu as regras civilizadas – estabelecidas há quarenta anos – de viabilizar os primeiros programa e orçamento do governo apoiado pelo partido com mais deputados e de dar a esse partido a presidência da Assembleia da República. É verdade que, até agora, o PS tinha sido o principal beneficiário dessas regras, de que o PSD e o CDS tinham sido os mais frequentes executantes (a única vez que o PS o foi passou-se há 30 anos, depois da sua maior derrota eleitoral). Mas, sobretudo por isso, deveria perceber o quão contraproducente poderá esta quebra ser.

Identifica-se aqui o primeiro perigo iminente resultante da degradação em curso dos nossos costumes políticos, por ação acelerada de António Costa: o rebaixamento qualitativo da componente parlamentar do nosso regime político. Até agora, a «partidocracia» do nosso parlamentarismo autodisciplinava-se ao respeitar a regra de que cabia aos eleitores designar a força política que deveria suportar o novo governo: isto fazia-se com um princípio semelhante ao first past the post, ou seja, o chefe do partido com mais deputados eleitos tornava-se primeiro-ministro. Para que isso fosse possível aceitavam-se as regras de viabilização e trégua política já referidas. Os partidos (os do «arco da governação», bem entendido) recusavam, assim, a prática das combinações pós-eleitorais no parlamento para «cozinhar» governos sem a intervenção dos eleitores. Foi isso que permitiu que as eleições legislativas em Portugal se assemelhassem a uma corrida de (em geral, sobretudo dois) candidatos ao cargo de primeiro-ministro, apesar de o sistema parlamentar português não estar dotado de um bipartidarismo que assegure permanentemente maiorias alternativas e estáveis. Embora funcionasse com falhas, a regra first past the post tinha a virtude de aceitar uma decisão clara do eleitorado, não sujeita a interpretações, considerações e apetites dos diretórios partidários, que podem presumivelmente mudar ao longo da legislatura.

Foi esse facto que não divorciou ainda mais os Portugueses do sistema parlamentar e que os levou a confiar mais do que se diz nos partidos do regime – facto patente na estabilidade do nosso sistema partidário desde 1976. Os eleitores têm tido, apesar de tudo, a perceção de que a sua escolha conta e que é definidora da solução governativa que se segue à eleição do Parlamento – é essa a raiz, em parte saudável, da crença assumida (e não concorde ao formalismo constitucional) de que «elegem o governo». O precedente agora criado por ação de António Costa é o oposto de tudo isto e empurra-nos para a lógica dos governos resultantes das combinações parlamentares pós-eleitorais, dominadas pelos círculos muito restritos dos diretórios partidários e que, a prazo, criarão nos eleitores a ideia de que, ao votarem nas eleições legislativas, estão a dar um incontrolável cheque em branco aos diferentes líderes partidários. Esta mudança perigosa teve como efeito colateral nada despiciendo a implosão do «arco da governação».

Na verdade, todas estas regras de moderação (e civilidade) do nosso sistema parlamentar desenvolveram-se no quadro da formação e vigência do «arco da governação», pois pressupunham partidos apostados em preservar a sobrevivência do sistema e a possibilidade do seu próprio acesso ao poder em condições mínimas de governabilidade. Isto excluía a demagogia grosseira e o mais puro maquiavelismo no trato entre esses partidos do «arco». Preservava também a componente parlamentar do regime da necessidade de intervenções «disciplinadoras» do Presidente da República, como as que foram inevitáveis em 1978-79. Daquelas regras autoexcluíram-se durante quarenta anos o PCP e a extrema-esquerda, adversários confessos de toda esta cultura política. É assim que se pode perceber como a comparação do «arco da governação» ao Muro de Berlim, feita por António Costa, é expressão eloquente da degradação já declarada (e com epicentro no PS) dos nossos costumes políticos.

A implosão do «arco» pela mão de António Costa fez-se para permitir algo, para todos os efeitos, conjuntural: a negociação do seu acesso ao poder. Mas esse acesso acabou de fazer-se com elementos que já têm menos aparência conjuntural: além do sacrifício do «arco da governação», foi a cedência aos interesses estratégicos mais importantes do PCP (a reversão das concessões das empresas de transportes públicos e a privatização da TAP, onde se joga a influência sindical e eleitoral dos comunistas nas grandes áreas urbanas). É provável que cedências semelhantes e ainda pouco notadas estejam a caminho no setor da educação, onde a CGTP tem também grande influência e necessidade de mostrar eficácia política a uma grande clientela de funcionários públicos. As cedências ao Bloco de Esquerda são (para já) conjunturais e menos significativas do que as feitas ao bem implantado e resiliente PCP.

Mas este discurso da «queda do Muro» é outra face do negacionismo imperante no PS: desta vez, a negação da própria história do partido. O «Muro» – se assim pode ser chamado – foi erguido por Mário Soares ao recusar, em 1976, a armadilha da equívoca «maioria de esquerda» a que Cunhal quis atrair o PS para o dividir e destruir, criando um, dois, muitos Manuel Serra. Soares e os seus sucessores aliaram-se preferencialmente ao PSD e ao CDS, mesmo depois de estes dois terem demonstrado saber aliar-se entre si. O PCP só foi (e tardiamente) um parceiro de coligação autárquica em Lisboa, facto que teve relativamente pouca duração e não se reproduziu pelo País. A infeliz analogia com o Muro de Berlim vitimiza historicamente o PCP e introduz uma esquizofrenia na consciência histórica dos Socialistas, que parecem agora imputar a terceiros (o PSD? O CDS?) a autoria de uma exclusão de que foram eles próprios os criadores e atores e que ainda hoje é funcional e bem real onde o PS é o principal concorrente autárquico do PCP (no Alentejo sobretudo).


A implosão do «arco da governação» permite perceber o segundo perigo iminente da degradação em curso dos nossos costumes políticos: a criação de um clima de antagonismo que inviabilizará «acordos de regime» como os de 1982 e 1989 (revisões constitucionais) e de 1985 e 1999 (adesão à CEE e à moeda única). No momento atual, a opção pelas companhias à sua «esquerda» leva o PS a estar ainda menos predisposto e com menor margem de manobra política do que tem estado nos últimos anos para reconhecer a necessidade de reformar a Segurança Social – que é a maior bomba-relógio da nossa sociedade em vista das evidências demográficas e das transferências anuais do OGE, sem as quais já seria insolvente. Alguém já chamou a este problema a «guerra do Ultramar» deste regime e a comparação poderá pecar só por insuficiência. Não se trata de viabilizar programas de governo ou orçamentos, nem de tomar pequenas e circunstanciais «medidas difíceis». Trata-se de uma alteração de paradigma sem a qual o regime e a sociedade como a conhecemos não sobreviverão. Ora, o «arco da governação» e a sua capacidade de gerar «acordos de regime» era o instrumento necessário para fazer aquela alteração – ou para, pelo menos, começar a pensá-la.

[Ver também: O rol da desonra (acrescentado em 04.05.2018).]

sexta-feira, julho 17, 2015

Hélas, Hellas...



Público
Infelizmente, não há condições para a Grécia ficar na Zona Euro. A situação política será ingerível. O Sr. Tsipras e os seus correlegionários semearam a radicalização e o aumento irrealista das expetativas dos Gregos. Agora, é a oposição que tem de apoiar o governo na aprovação do acordo com os credores. Para já, eles querem o dinheiro do 3.º resgate, depois logo se vê. Não vão reformar nada. Há um género de desobediência civil quanto a reformas na sociedade. E os extremos políticos, anti-reformas, têm representação parlamentar e peso político muito grandes. Os reformistas dificilmente conseguirão apoios suficientes para levar avante o que quer que seja. Este acordo serviu para adiar o problema e tirar os Gregos do sufoco/incumprimento que vinha aí. Daqui a um ano estaremos outra vez a falar da saída deles da Zona Euro. Entretanto, esta fica descredibilizada e enfraquecida e pode sofrer um abalo grande se os Britânicos decidirem no referendo deixar a UE (o que não é nada impossível). Para nós, os riscos são o aumento dos juros nas emissões de dívida futuras e o perigo de um regresso forçado ao escudo, que levaria a uma desvalorização desastrosa de activos, poupanças e salários. Que cada um poupe o que pode e invista essas poupanças em ouro, imobiliário (bem escolhido) ou acções (ainda melhor escolhidas).

quarta-feira, junho 24, 2015

Hello again...

Depois de uma pequena interrupção, o L&LP volta ainda mais bem acompanhado...

Uma visão alimentar da hominização

Richard Wrangham, CATCHING FIRE: HOW COOKING MADE US HUMAN (1.ª ed. 2009), Londres: Profile Books, 2010, 309 páginas.

Wrangham apresenta uma interessante teoria da hominização assente num estudo da prática (mais ancestral do que se julga) de cozinhar os alimentos.

No capítulo 1, para chegar à formulação da hipótese que defende, o autor discorre sobre a ingestão exclusiva de alimentos crus, que requerem alimentação frequente ao longo do dia (e sensação constante de fome), perda de peso para quem está habituado a comida cozinhada e até perda do “apetite” sexual; isso deve-se à dificuldade do aparelho digestivo de processar os alimentos, o que exige o seu consumo em grandes quantidades e um uso constante daquele aparelho, com grande dispêndio de energia (é o caso das plantas, fibrosas, e da carne muscular, mesmo que intensamente mascada por dentes portentosos – daí que uma das coisas que os habilinos parecem ter feito intensamente com os instrumentos de pedra que a arqueologia lhes associa era martelar a carne, quebrando as fibras e facilitando a digestão, assim como a disponibilidade de energia para o crescimento do cérebro, tradeoff com o sistema digestivo, que Wrangham explicará melhor no capítulo 5).

No fim do capítulo 3 («The energy theory of cooking», p. 55ss), diz: «Cooked food is better than raw food because life is mostly concerned with energy. So from an evolutionary perspective, if cooking causes a loss of vitamins or creates a few long-term toxic compounds, the effect is relatively unimportant compared to the impact of more calories. A female chimpanzee with a better diet gives birth more often and her offspring have better survival rates. In subsistence cultures, better-fed mothers have more and healthier children. In addition to more offspring, they have greater competitive ability, better survival, and longer lives. When our ancestors first obtained extra calories by cooking their food, they and their descendants passed on more genes than others of their species who ate raw. The result was a new evolutionary opportunity.» (p. 81).

No fim do capítulo 4 («When cooking began» p. 83ss), depois de ter defendido que o nosso aparelho digestivo atual, dentição e tamanho da boca são resultados de uma adaptação aos alimentos cozinhados iniciada pelos habilinos que sucederam aos australopitecos (e que, por sua vez, resultavam do início de consumo de carne por estes), diz: «If Homo erectus used fire, however, they could sleep in the same way as people do nowadays in the savanna. In the bush, people lie close to the fire and for most or all of the night someone is awake. […] The control of fire could explain why Homo erectus lost their climbing ability. The normal assumption is that when long legs were favored, perhaps as a result of the increasing importance of long-distance travel as humans searched for meat, it was harder for humans to climb efficiently, and Homo erectus therefore abandoned the trees. But since that argument does not explain how Homo erectus could sleep safely, I prefer an alternative hypothesis: having controlled fire, a group of habilines learned that they could sleep safely on the ground.» (pp. 101-102). O controle do fogo e a prática de cozinhar alimentos seguiram-se com grande proximidade temporal.

No capítulo 5 (“Brain foods”, p. 105ss), o autor aborda a teoria do “social brain” («Evolutionary psychologist Robin Dunbar found that primates with bigger brains or more neocortex live in larger groups, have a greater number of close social relationships, and use coalitions more effectively than those with smaller brains. […] The result is a soap opera of changing affections, alliances, and hostilities, and a constant pressure to outsmart others», pp. 107-108) e a proposta de 1995 de Leslie Aiello e Peter Wheeler segundo a qual os animais com grandes cérebros e bocas pequenas desenvolveram dietas de alta qualidade nutritiva (por causa do tradeoff já referido supra); assim, «The constant energy demand of brain cells continues even when times are though, such as when food is scarce or an infection is raging. The first requirement for evolving a big brain is the ability to fuel it, and to do it so reliably» (p. 110).

Mas Wrangham discorda de Aiello e Wheeler porque estes atribuem a comida cozinhada ao aparecimento do Homo heidebergensis, antecessor do Sapiens, que o autor faz recuar aos habilinos antecessores do Erectus, esclarecendo: «Dietary shifts toward roots, meat eating, and meat processing [p.e., martelada com instrumentos] thus can explain the growth in brains from a chimpazee-like ancestor at six million years ago to the habilines around two million years ago [daí as espécies diferentes de australopitecos, cada vez mais encorpados]. From then on, the increases in brain size were more continuous. The habiline cranial capacity of 612 cubic centimeters rose over 40 percent to reach an average of 870 cubic centimeters in the earliest Homo erectus. The significance of this rise is complicated by a parallel growth in body weight, from the lowly 32 to 37 kilograms of habilines to a substantial 56 to 66 kilograms in Homo erectus. Unfortunately, body weights are hard to estimate accurately from bones, and the number of specimens is small, so how much larger relative to body weight the brains of the first Homo erectus were than those of habilines, or wether they were relatively larger at all, is uncertain. However, Homo erectus brains continued to increase in size after 1.8 million years ago, averaging almost 950 cubic centimeters by 1 million years ago. […] The fourth notable increase in cranial capacity occurred with the emergence of Homo heidelbergensis after eight hundred thousand years ago. The increase was again substantial, leading to a brain occupying around 1,200 cubic centimeters» (pp. 120-121).

A evolução do Homo heidelbergensis até ao Sapiens sapiens (com 1400 centímetros cúbicos, um salto já “pequeno”) explicar-se-á por melhorias nos métodos de cozinhar a comida, como aqueles que se observam ainda em determinados povos “primitivos”, p.e., cozer em água onde se mergulham pedras aquecidas ou usá-las como tostadeiras com a carne no meio ou ainda enterrando-as (pedras ou lenha em brasa) com a carne e vários condimentos num género de panela subterrânea (p. 123ss).

No capítulo 6 (“How Cooking Frees Men”, p. 129ss), é tratado um aspeto decorrente dos anteriores – o modo como os novos hábitos alimentares libertaram o tempo do Homem da preocupação e necessidade constante de comer, digerir e defecar, de modo bem apanhado na epígrafe: «Voracious animals… both feed continually and as incessantly eliminate, leading a life truly inimical to philosophy and music, as Plato has said, whereas nobler and more perfect animals neither eat nor eliminate continually.» (Galeno, Sobre a Utilidade das Diferentes Partes do Corpo); neste capítulo, o autor refuta a ideia da divisão sexual do trabalho baseada na caça dos machos complementada pela recoleção das fémeas, dado que, segundo diz, baseando-se na observação de primatas atuais, «A division of labor into hunting and gathering would not have afforded consumption of sufficient calories, as long as the food was consumed raw» (p. 145).

No capítulo seguinte (“The Married Cook”, p. 147ss), Wrangham expõe a teoria de que a divisão sexual do trabalho (e o casamento) está baseada na comida cozinhada, o que se constata nos povos primitivos atuais ser um facto antropológico universal; a divisão não se baseia no facto de o homem ser caçador, mas protector do alimento da fémea dentro da comunidade: «A male used his social power both to ensure that a female did not lose her food, and to guarantee his own meal by assigning the work of cooking to the female» (p. 155); em troca, a mulher cozinha para ele. Wrangham diz ser esta a base do casamento enquanto instituição, pelo que na generalidade das sociedades primitivas a fidelidade conjugal não era nem é condição do casamento ou socialmente imposta.

Não menos importante é a ideia do fogo conjugal e da comida aí cozinhada como propriedade privada da família e inviolável por outros membros da comunidade, o que parece ser também uma regra antropológica universal e que tornou sociedades ainda muito densamente “comunitárias” numa rede de cápsulas ou domínios privados – famílias (nestas, a protecção dada pelo homem à mulher era estendida aos filhos de ambos, e os “direitos” à comida e à protecção detidos pela mulher em troca da cozinha também eram os direitos dos seus filhos).

No capítulo final (“The Cook’s Journey”, p. 179ss), que relembra a famosa frase de Jean Anthelme Brillat-Savarin [1755-1826] «diz-me o que comes, dir-te-ei quem és» (The Phisiology of Taste: Or Meditations on Transcendental Gastronomy, 1825), leva Wrangham a abordar as mudanças fisiológicas provocadas pela comida cozinhada que, entre outras coisas, nos terá permitido correr e deslocar-nos mais graças a uma alimentação rica em proteínas eficazmente assimiladas por via do aquecimento antes da ingestão – e que nos levou provavelmente depois a perder pêlo no corpo para evitar o sobreaquecimento que afeta os primatas atuais quando correm (só depois o fogo foi usado para aquecimento contra o ambiente frio, pois a sua utilidade primeira, além da cozinha, era a defesa contra predadores).

Outro aspeto é que o comportamento social da espécie deve ter-se alterado pela necessidade de controlar instintos violentos quando se estava à volta do fogo a comer (mais uma vez compara com os comportamentos contrários dos primatas atuais); o mesmo é dizer que os indivíduos mais capazes desse autocontrolo eram melhor sucedidos em sociedade e que esse comportamento “novo” foi selecionado, tal como aconteceu com os primeiros cães, que tiveram de controlar a sua violência inata quando começaram a especializar-se em comer restos junto a comunidades humanas, sendo assim “selecionados” com a vantagem de uma alimentação melhor sobre os mais violentos.

No epílogo (p. 195ss), o autor chama atenção para a necessidade de se perceber melhor a biofísica nutricional porque os nutricionistas têm estado, por uma questão intracultural do seu ramo do saber, excessiva e erroneamente focados em aspetos químicos dos alimentos e menos no processo digestivo e na forma como este altera e absorve os alimentos – por exemplo, estudando a digestão das proteínas (quimicamente consideradas), mas não da carne na sua realidade física mais complexa: «They forget that our digestive enzymes interact not with free proteins but with a slimy three-dimensional bolus, which after a meal of meat is a messy collection of chewed chunks of muscle, each piece of which is wrapped in multilayered tubes of connective tissue. […] Nutritionists cannot calculate the value of foods directly because foods are too complicated in their composition and structure, and digestive systems treat different foods in different ways» (pp. 196-197).

As regras estabelecidas pelos nutricionistas ainda se baseiam nas criadas por Wilbur Olin Atwater (1844-1907), que identificou como fontes de energia nos alimentos a proteína, a gordura e os hidratos de carbono (os 3 macronutrientes), criando um método para medir a quantidade de calor libertada por cada um dos três em diferentes alimentos, uma vez queimados – assim, por exemplo, as proteínas, em geral (em alimentos diversos), libertam um pouco mais de 4 quilocalorias por grama. Atwater dissolveu a gordura em éter, conseguindo quantificar os lípidos; para as proteínas, quantificou o nitrogénio (em geral, cerca de 16% do peso de uma proteína); e para os hidratos de carbono, que não são quantificáveis, teve de estimá-los por exclusão de partes a partir da quantificação da matéria orgânica total de determinado alimento, queimando-o até ficar só a cinza mineral, que é a parte inorgânica.

Restava saber o que é digerido: a análise de fezes de pessoas que ingeriam dietas previamene quantificadas foi o caminho e levou-o a constatar que a relação entre os três macronutrientes não sofria alterações significativas, podendo propor os fatores gerais de Atwater, ainda hoje canónicos: em média, proteínas e hidratos de carbono geram cada 4 kcal/grama, enquanto os lípidos geram 9 kcal/grama; embora as variações entre alimentos diferentes (ou a proporção de nitrogénio nas proteínas) tenham sido reconhecidas e ponderadas a partir de 1955, a verdade é que as medições mais precisas e específicas não alteram assim tanto os fatores gerais. Os problemas são outros: Atwater não reconheceu que a digestão é um processo custoso, aumentando o nosso metabolismo até 25% (nada que se compare aos 136% dos peixes ou 687% das cobras), dependendo do tipo e qualidade dos alimentos, e que consome mais ou menos matéria orgânica ingerida (calorias) no seu próprio processo; assim, «Protein costs more to digest than carbohydrates, while fat has the lowest digestive cost of all macronutrients.» (p. 202). Se eu comer muitas calorias na forma de hidratos de carbono vou pesar tanto como alguém que coma muito menos calorias mas as ingira por meio de gordura; o número de vezes que se come, o tamanho dos bocados engolidos e a temperatura a que são ingeridos facilitam ou dificultam a digestão, afetando a quantidade de calorias que são absorvidas no fim.

O segundo problema com o sistema de Atwater diz respeito à indiferença que tem sobre a preparação dos alimentos (cozinhados ou crus, líquidos ou sólidos, mais ou menos fibrosos), o que já se viu afetar a digestão (facilita-a ou dificulta-a) e a quantidade de calorias absorvidas no fim. A forma tão variável como hoje os mesmos alimentos são tratados e preparados antes de vendidos torna os fatores gerais um guia insuficiente para compreendermos os efeitos da alimentação no peso e na saúde dos nossos semelhantes.

terça-feira, junho 23, 2015

Jónatas Machado e o igualitarismo religioso

A igualdade de direitos religiosos dos cidadãos não implica o igualitarismo jurídico das entidades coletivas religiosas.

A questão da igualdade jurídica dos agentes religiosos colectivos é muito complexa e perigosa, pois cai facilmente num igualitarismo alicerçado num geometrismo jurídico e, eventualmente, em práticas de discriminação positiva que catapultam o Estado como agente “corrector” da realidade social e histórica.

A desigualdade factual destes agentes colectivos, patente na relação institucional do Estado com cada um deles (ou em fórmulas de explicitação e regulação de relação com um ou vários sem existir com outros), não é incompatível com uma igualdade jurídica dos cidadãos alicerçada nas liberdades de autodeterminação e associação religiosas. A diferente representatividade sociológica ou histórica dos agentes colectivos religiosos, bem como o respetivo grau de integração institucional que eles tenham a nível nacional e internacional (pense-se na Igreja Católica, na Convenção Baptista Portuguesa e numa qualquer igreja local independente, por exemplo), pode justificar diferenças formais e informais de relação do Estado com eles; caso contrário, ter-se-ia de assumir que a ordem jurídica deveria fazer tábua rasa da própria configuração cultural e orgânica da realidade social, querendo sujeitá-la e moldá-la a um esquema de relações pré-concebido.

Essa relação com o Estado pode dizer respeito a aspetos simbólicos, protocolares ou à protecção da presença confessional em espaços públicos (enquanto geridos pelo Estado). É neste contexto que o exercício de igualitarismo jurídico de Jónatas Machado (O regime concordatário entre a “libertas ecclesiae” e a liberdade religiosa, Coimbra Editora, 1993) resulta inconsequente para a questão verdadeiramente central do ponto de vista da cidadania e que é a da liberdade de autodeterminação e associação do indivíduo; o autor pouco mais consegue defender do que a superioridade geométrica do modelo de que é partidário, de exclusão do regime concordatário com a Igreja Católica no nosso ordenamento jurídico, sem provar em que é que ele fere aquela questão central da cidadania ou a liberdade associativa dos agentes religiosos colectivos não abrangidos por aquele regime.

Do tratamento desigual dos agentes colectivos (no âmbito do Direito Público, a que pertence) deve, no entanto, excluir-se a prática de um tratamento desigual em termos fiscais (tanto de isenções como de benefícios), pois neste plano a desigualdade estaria a afectar a igualdade perante a lei dos cidadãos enquanto contribuintes e a beliscar um princípio fundamental do Direito Público (universalidade das regras de tratamento fiscal e proporcionalidade).

O âmbito das liberdades de autodeterminação e associação dos indivíduos é, evidentemente, o Direito Privado (civil) e só ligado ao Direito Público (constitucional) na proclamação que este fizer de direitos, liberdades e garantias (do indivíduo), assim fundando superiormente a sua materialização plena e consequente no Direito Privado. É neste âmbito que o Estado nada deverá poder fazer, nomeadamente, em termos de condicionamento da actividade dos agentes religiosos colectivos e da tendência que possam ter para incrementar o seu peso sociológico – e, portanto, a configuração religiosa da sociedade civil.