sábado, julho 13, 2019

Robert E. Marjolin (1911-1986)


Marjolin no período da Comissão Europeia.

Robert Ernest Marjolin, economista francês, foi o primeiro secretário-geral da Organização Europeia para a Cooperação Económica (OECE), antecessora da OCDE, e o primeiro comissário europeu para os assuntos económicos e financeiros (entre 1958 e 1967). Nascido em Paris a 27 de julho de 1911, faleceu na mesma cidade em 15 de abril de 1986.

De origens humildes, começou a trabalhar aos 14 anos depois de o pai adoecer, primeiro como aprendiz metalúrgico, depois (entre 1926 e 1931) como funcionário de uma casa de corretagem junto da Bolsa de Paris. Em 1929 tornou-se militante da SFIO (Secção Francesa da Internacional Operária), o partido socialista da época, após uma breve passagem por uma célula comunista, cujo ambiente lhe desagradou. Esta militância, iniciada por ser “o destino natural” de um rapaz com as suas origens sociais (MARJOLIN, Le Travail, p. 22), duraria oito anos e facilitou o seu regresso aos estudos, através de Georges Bourgin (diretor adjunto dos Arquivos Nacionais), a quem foi apresentado. Realizou então um trabalho de pesquisa sobre a carestia agrária entre 1815 e 1818 com o objetivo de obter o diploma da École Pratique des Hautes Études, da Sorbonne, que lhe daria equivalência aos estudos secundários. No curso de Filosofia, e num período de estudo intenso, impressionou professores como Célestin Bouglé e fez algumas das suas amizades mais duradouras, nomeadamente com Raymond Aron.

Em 1932-1933, por convite de Bouglé, integrou o curso internacional The Impact of Culture on Personality, na Universidade de Yale, financiado pela Fundação Rockefeller. Além do efeito marcante que esta experiência teve na sua formação, descentrando-o da realidade francesa, Marjolin realizou uma pesquisa pioneira sobre o sindicalismo norte-americano, que seria a sua tese de licenciatura (depois publicada como L’Évolution du syndicalisme aux États-Unis, PUF, 1934). Neste período, foi apresentado ao economista liberal Charles Rist, que o convidou para investigador no Institut de Recherches Économiques et Sociales por si dirigido. Marjolin ultrapassou assim as suas dificuldades materiais e preparou um doutoramento em economia política, obtido em junho de 1939, com a tese Prix, Monnaie et Production: Essai sur les mouvements économiques de longue durée (PUF, 1941), dedicando-se logo a seguir à sua agregação (só efetivada em 1945 por causa da guerra). Neste livro, embora influenciado pela obra de François Simiand e utilizando os contributos de Wicksell, Hayek, Myrdal ou Hicks, Marjolin aplicou em termos de longa duração a ideia de Keynes do ciclo económico como uma dinâmica de desequilíbrio endógena causada por mudanças na eficiência marginal do capital, por sua vez motivada pela volatilidade psicológica dos empresários (ARENA, «Robert Marjolin’s»).

Provavelmente por meio de Bourgin, e antes da sua primeira viagem aos Estados Unidos, Marjolin ligou-se ao movimento cooperativista e ao grupo “Révolution Constructive”, influenciados por um socialismo mais proudhoniano que marxista. Mas, após 1933, perdeu interesse nestas sociabilidades. A partir de 1934, passou a deslocar-se com frequência a Londres para contactos com economistas da London School of Economics, nomeadamente Lionel Robbins, com quem Rist e o seu instituto cooperavam, frequentando igualmente a sociabilidade liberal do Reform Club, em cujas discussões de assuntos correntes participava. O próprio Marjolin revela (Le Travail, p. 54) que o filósofo e historiador Élie Halévy, que conheceu pessoalmente, com o seu estudo crítico do radicalismo filosófico e do socialismo marxista, foi a mais importante influência intelectual da sua vida. Deste modo, e embora ainda mantivesse ligações afetivas e pessoais com o socialismo moderado, Marjolin evoluiu paulatinamente para um liberalismo pragmático, de feição keynesiana.

Foi durante este processo que desenvolveu a sua colaboração com o líder socialista Léon Blum, que em 1935 o convidou para dirigir a secção económica do jornal Le Populaire e, em maio de 1936 (altura em que cumpria o serviço militar), para ser assessor económico do governo da Frente Popular. No entanto, Marjolin revelou divergências acentuadas, nomeadamente sobre a redução do horário de trabalho (sobre o que publicou um artigo na revista Economica, em maio de 1938), que considerava incompatível com a necessidade de reverter o declínio industrial francês. Marjolin denunciou os acordos de Munique e desesperou com a inação de Daladier, mas veio a apoiar a ação governativa de Paul Reynaud, apesar do rearmamento tardio; é desta época a sua colaboração no semanário antifascista L’Europe nouvelle.

Mobilizado em setembro de 1939, Marjolin pôde constatar a incapacidade militar francesa. Já nas vésperas do colapso francês, em maio de 1940, Jean Monnet (que só então conheceu) solicitou-lhe colaboração em Londres, no Comité de coordenação franco-inglês, incumbindo-o de uma missão em Dunquerque ainda naquele mês e depois em Bordéus. De seguida, Marjolin decidiu acompanhar Emmanuel Mönick a Vichy e, entre setembro de 1940 e março de 1941, a partir de Marrocos, colaborar com aquele numa estratégia arriscada de preparar um futuro desembarque aliado no Norte de África, fomentando aí a ligação consular e comercial aos Estados Unidos, cuja entrada na guerra achavam inevitável; tal objetivo foi alcançado com o acordo Murphy-Weygand (fevereiro de 1941), que se revelaria fulcral para a ofensiva aliada no Mediterrâneo em 1942-1943. De regresso a Londres (onde voltou ao Reform Club), Marjolin integrou-se na equipa económica do Comité francês de libertação nacional, sendo cooptado, no outono de 1943, para trabalhar com Monnet em Washington D. C. na preparação da política económica francesa do pós-guerra e da ajuda norte-americana. Foi naquela cidade que conheceu Dorothy Thayer Smith (f. 1971), com quem casou em 2 de setembro de 1944; teriam uma filha (Élise) e um filho (Robert Jacques).

No outono de 1945, já em Paris e por convite de Monnet, Marjolin tornou-se comissário-geral adjunto do Plano de modernização e equipamento do Governo francês, passando a coordenar a ajuda norte-americana, primeiro sob o acordo Monnet-Blum (1946-1947), depois sob o Plano Marshall (a partir de 1948). Marjolin tornou-se um dos rostos da planificação francesa do pós-guerra, embora entendesse o Plano como uma estratégia racionalizadora e mais transparente de operacionalizar a tradicional intervenção do Estado francês na economia, sobretudo depois das nacionalizações de 1945, que apoiara (Le Travail, pp. 162-172); no entanto, viria, posteriormente e com base na sua própria experiência, a exprimir desconfiança na “coordenação”, “harmonização” ou planificação do investimento e das políticas económicas a nível nacional e europeu (Le travail, p. 211).

No verão de 1947, dirigiu a articulação do Plano francês de 1946-1947 com o Plano de Recuperação Europeia (1948-1952) no quadro do Plano Marshall, presidindo, de facto, ao esforço de coordenação das necessidades e medidas a tomar pelos diferentes países recetores; por essa razão, Marjolin foi escolhido, em abril de 1948, como secretário-geral da OECE, o organismo europeu que iria administrar a implementação do Plano Marshall até 1952 (HEINIGER, «Marjolin»). O estabelecimento da União Europeia de Pagamentos, que, em 1950, substituiu o regime de pagamentos bilaterais entre países da OECE, incrementando o comércio intraeuropeu, foi considerado por Marjolin o verdadeiro início da integração económica da Europa do pós-guerra (Le travail, p. 220) e deveu muito à sua capacidade concertadora. Esta foi testada em 1951-1952, quando, na sequência do início da Guerra da Coreia (1950-1953) e do ímpeto que ganhou o esforço de defesa do bloco ocidental – que Marjolin, no entanto, apoiava incondicionalmente –, se manifestou grande pressão (sobretudo do Reino Unido) para que a OTAN absorvesse a OECE. Marjolin resistiu (com sucesso) a esta estratégia por entender que a cooperação económica europeia era um esforço autónomo e requeria uma organização intergovernamental própria. Apesar disto, Marjolin entendia esgotada a função da OECE, considerando necessária a evolução para uma união aduaneira (Le travail, p. 245ss.). No entanto, a oposição britânica e escandinava a esta transformação levou-o a considerar terminada a sua missão na OECE (de que saiu em abril de 1955).

Passando a lecionar economia política na Universidade de Nancy (de setembro de 1955 a início de 1957), Marjolin desenvolveu na imprensa uma campanha favorável a uma união aduaneira europeia e integrou um grupo de reflexão constituído por Christian Pineau (da SFIO). Este, ao tornar-se ministro dos negócios estrangeiros do governo Mollet (início de 1956), convidou Marjolin para o secretariar nos assuntos europeus e, assim, integrar a delegação francesa às negociações que se seguiram ao relatório do Comité Spaak (23 de abril de 1956). Em França, Marjolin travou uma guerra difícil, no seio da administração e da classe política, a favor da união aduaneira e foi o mentor do protocolo de disposições relativas a França, anexo ao Tratado de Roma, que mantinha temporariamente o sistema francês de limitações ao comércio exterior, fundamental para ultrapassar parte da oposição interna, mas tornado obsoleto com a reforma financeira e monetária de De Gaulle em 1958 (que apoiou). Com a mesma linha pragmática, na negociação da política agrícola, Marjolin foi o criador do princípio da não-discriminação nos apoios à produção, tendo os Estados membros, não de abolir, mas de estender, aos produtos de qualquer dos Seis no seu mercado, os apoios concedidos aos nacionais (Le travail, p. 299). Para ele, a Comunidade Económica Europeia (CEE) nascia para ser, com os EUA, um pilar do fortalecimento das relações comerciais de todo o mundo não comunista, compreendendo uma zona de comércio livre anexa, que deveria incluir os restantes países da OECE e os territórios ultramarinos dos Estados membros (MARJOLIN, «Prospects»).

Com a constituição da primeira equipa da Comissão Europeia (6 e 7 de janeiro de 1958), Marjolin recebeu a pasta da economia e das finanças, a que se juntava a energia e a política comercial. Já num memorando de 1944 para Monnet, Marjolin falava da necessidade de uma unidade da Europa Ocidental para potenciar um crescimento económico sustentado e fazer “contrapeso” à influência soviética no Leste (Le travail, p. 128ss.); porém, apesar da proximidade com Monnet, nunca partilhou a ideia de uma dissolução dos Estados nacionais numa “soberania europeia”, advogando soluções institucionais possibilistas e ancoradas na história, sem fazer depender a integração económica (baseada essencialmente nos princípios da livre circulação) de uma ambiciosa agenda política (Le travail, p. 264ss. e 352). Daí que Marjolin, embora crítico dos “excessos de linguagem” (antieuropeístas, mas também antiamericanos) do gaullismo, tenha em geral concordado com a política europeia da V República, que sempre se enquadrou no Tratado de Roma – mesmo nas reservas quanto à adesão do Reino Unido (a partir de 1961), que considerava, realisticamente, descompassado da lógica do Tratado, das regras comerciais comuns com países terceiros e da política agrícola comum em construção. Sobre esta última tinha uma opinião semelhante à da planificação no pós-guerra: não era ideal, mas substituía práticas intervencionistas e protecionistas dos Estados membros que não eram mais liberais – além de que, sem ela, a França não teria entrado ou não teria cooperado no aprofundamento do Mercado Comum.

A ação de Marjolin na Comissão enquadra-se claramente nesta lógica possibilista: em 1965-1966, em posição minoritária, opôs-se à guinada “federalista” do presidente Walter Hallstein de reforço dos recursos financeiros próprios da Comunidade e das competências daquele órgão e da Assembleia de Estrasburgo, antecipando a rejeição de tal iniciativa pelos Estados membros; igualmente, foi o negociador de primeira linha do acordo comercial de 1967 com os EUA e que, não sendo a materialização da área de livre-câmbio atlântica proposta no Grand Design de John Kennedy, permitiu, no entanto, uma redução de tarifas que ajudou o Mercado Comum a moderar a sua própria tendência protecionista. Mesmo depois de sair da Comissão em 1967, Marjolin subscreveu relatórios solicitados pelos órgãos comunitários (união económica e monetária, 1975, e reforma institucional, 1980) bastante prudentes e limitados ao aperfeiçoamento de práticas usadas e funções já previstas no Tratado.

O episódio da sua candidatura (mal-sucedida) a deputado em 1962, pela SFIO (e pela mão de Mollet, apesar de desligado do partido desde 1937), para vincar a sua oposição à eleição presidencial direta decidida em referendo naquele ano, mostra bem a sua independência política perante o Governo francês e o gaullismo em particular.

Entre 1967 e 1969, Marjolin voltou à docência universitária, desta vez em Paris, mas a reforma da instituição subsequente ao Maio de 68 (de que foi crítico contundente) desinteressou-o daquela atividade. No outono de 1969 aceitou integrar o conselho de administração do grupo petrolífero Royal Dutch Schell, onde esteve doze anos, iniciando um período de experiência internacional relevante na iniciativa privada (até 1984 foi simultaneamente administrador ou assessor de outras empresas privadas, como a I.B.M. ou o Chase Manhattan Bank). Fez igualmente assessoria para o Banco de França e para o Governo francês, nomeadamente, em 1975-1976, nos trabalhos do VII Plano (1976-1980). A 10 de junho de 1985, foi admitido na Academia Francesa.

BIBLIOGRAFIA:
ARENA, Richard – «Robert Marjolin’s Theory of Business Cycles: Between Simiand and Keynes», History of Economic Ideas, vol. XI (2003), n.º 1, pp. 95-111. HEINIGER, Alix – «Marjolin, Robert Ernest», IO BIO: Biographical Dictionary of Secretaries General of International Organizations, ed. Bob Reinalda, Kent J. Kille e Jaci Eisenberg, www.ru.nl/fm/iobio, acedido 03/09/2018. MARJOLIN, Robert – Le travail d’une vie: Mémoires 1911-1986, Paris, Éditions Robert Laffont, 1986. MARJOLIN, Robert – «Prospects for the European Common Market», Foreign Affairs, vol. 36, n.º 1, Outubro 1957.

[In Isabel Baltazar e Alice Cunha (coord.), Dicionário das Grandes Figuras Europeias, Lisboa: Assembleia da República, 2019, pp. 245-249.] Versão publicada, aqui.




O estatuto das minorias religiosas em Portugal no século XX


[Publicado em António Reis, Maria Inácia Rezola e Paula Borges Santos (coord.), Dicionário de História de Portugal: O 25 de Abril (Suplemento 1974-1976), Figueirinhas, 2016, vol. 5, pp. 380-387.] Aceder VERSÃO PDF.


1. A herança do regime pré-concordatário

A sociedade portuguesa tem comportado, em continuidade histórica, várias minorias religiosas organizadas desde o século XIX, de que se destacam judeus e protestantes (estes, de várias denominações). Desde a instauração do liberalismo, estas minorias têm sido mais ignoradas do que perseguidas. A própria historiografia pouco se lhes refere. O estado de isolamento e olvido das minorias é também patente no facto de as principais alterações de enquadramento político e legislativo da realidade religiosa, já no século XX (1911, 1926, 1940), nunca ter tido o objetivo de afetar senão as condições em que se exercia a religião hegemónica católica romana e só por necessidade de aplicação geral ter afetado e se ter aplicado também às minorias. [Para uma contextualização histórica mais ampla desta problemática, ver aqui.]

Esta situação contrasta com o que foi a prática legislativa sob a monarquia constitucional, na qual, por vigorar um Estado confessional, se legislou ocasionalmente de forma a adaptar determinados princípios gerais do direito à situação particular e muito marginal daqueles que não se enquadravam na confissão maioritária – foram os casos da lei do registo civil de 28 de novembro de 1878, que facilitava os registos relativos a súbditos não católicos, e da lei da instrução pública de 2 de maio de 1878, que dispensava do ensino da doutrina católica nas escolas primárias os alunos cujos pais professassem outras religiões (artigo 2.º § único, disposição de novo confirmada no decreto n.º 8 de 24 de dezembro de 1901); nesse tempo, as atividades de culto e de outro tipo no âmbito religioso apoiavam-se em associações civis constituídas e reconhecidas sob a forma de sociedades detentoras de edifícios e/ou dedicadas a atividades associativas ou humanitárias. Neste modus vivendi, existiam desde a segunda metade do século XIX as sinagogas e igrejas protestantes (estas, com imprensa própria, escolas primárias e diferentes iniciativas, muito vocacionadas para o proselitismo).

Em 1911, a Lei de Separação, pensada para enquadrar as paróquias católicas num paradoxal regime de laicismo regalista, veio exigir (e com condições) a legalização das comunidades locais minoritárias como “associações cultuais”, sem ser evidente que a sua vida religiosa tenha sido beneficiada na prática. Enquanto associações cultuais, as igrejas e sinagogas locais permaneciam apenas entidades civis, cujo propósito religioso era agora identificado e reconhecido como tal pelo Estado, mas, no caso das entidades para-religiosas, o estatuto jurídico não passou a ser substancialmente diferente (por exemplo, as associações cristãs da mocidade no campo protestante ou as associações judaicas de beneficência e preparação de alimentos de acordo com as prescrições da Tora).

Numa lógica já de assegurar alguma autonomia organizativa à Igreja Católica [considera as cultuais constituídas por mera comunicação e entrega de documentos às autoridades administrativas, sem dependência de licença, e podendo os ministros do culto integrar os órgãos diretivos (art.º 1.º) e acabava com o beneplácito (art.º 12.º)], o decreto Moura Pinto, de 1918 [n.º 3856, de 22 de fevereiro], permitiu a reintrodução de matérias confessionais no ensino, mas apenas em seminários (não nas escolas para menores) [art.º 6.º], o que os protestantes viriam a aproveitar, e o decreto dito “da personalidade jurídica”, de junho de 1926, retirou à Administração a arbitrariedade que a lei de 1911 permitia no reconhecimento das associações cultuais, que passou a tornar-se imediato com a entrega de estatutos aos governos civis. O mesmo veio a ser consagrado no Código Administrativo de 1941 (artigos 450.º e 452.º), embora com menos garantias. Este novo quadro legal favoreceu igualmente as minorias.

2. As consequências diretas e indiretas do regime concordatário

No entanto, a entrada em vigor da Concordata de 1940, que passou a enquadrar os principais aspetos da organização da confissão hegemónica no ordenamento jurídico português, secundarizou, e progressivamente fez desaparecer, a aplicação daqueles diplomas à realidade religiosa maioritária, contribuindo para criar uma duplicidade jurídica de facto, embora não exatamente de jure.

O direito interno português, depois de 1911 e até 1971 (mesmo com os ajustamentos de 1918 e 1926) nunca criou dispositivos de reconhecimento de confissões religiosas – apenas de comunidades locais ou associações civis com fins religiosos. Mesmo a Igreja Católica foi dotada de personalidade jurídica somente através de um acordo internacional entre Estados (a Concordata), até porque Salazar, presumivelmente, não quis fazê-lo por via do direito interno, com o que não se furtaria a despoletar um debate para si politicamente arriscado entre os setores laicista e confessionalizante em que se dividia a sua base de apoio. Perante esta situação, em teoria, a Lei de Separação e os decretos de 1918 e 1926 (nunca revogados), bem como o articulado do Código Administrativo, permaneciam as normas reguladoras de toda a realidade religiosa não abrangida pela Concordata.

Na realidade, porém, gerou-se uma situação legal que não primava pela clareza e que reabriu a porta à discricionariedade das autoridades administrativas, pois a não aplicabilidade prática das normas de 1911, 1918 e 1926 à Igreja Católica tornou aparentemente pouco evidente para alguns responsáveis da Administração a sua aplicabilidade tout court – sobretudo quando invocadas por interesses minoritários mal conhecidos e em relação aos quais havia por vezes uma mal disfarçada desconfiança. Assim, as entidades religiosas (igrejas, associações, escolas) que asseguraram a personalidade jurídica, alvarás para outras atividades ou autorizações de construção de edifícios até aos anos 40 mantiveram-nas, mas o critério da sua atribuição nas décadas seguintes tornou-se mais casuístico e restritivo, sendo comum a disparidade de critérios de diferentes governos civis e seus responsáveis, podendo, no entanto, considerar-se que o Governo, quando instado a intervir, seguia, em geral, com maior rigor as normas estabelecidas. Daquele espírito restritivo estava já imbuído o decreto de 8 de setembro de 1949, que deu larga margem de manobra à Inspeção do Ensino Particular para licenciar e condicionar as escolas confessionais das minorias.

Foi neste contexto que, nos anos seguintes, grupos religiosos tão diferentes como as Testemunhas de Jeová (com grupos locais aparentemente reconhecidos por governos civis desde os anos 30) e a Federação Espírita Portuguesa (organizada legalmente desde os anos 20) se viram impossibilitados de obter um reconhecimento oficial, ao pretenderem então fazer-se reconhecer como entidades culturais e/ou educativas – esbarrando não só nas práticas restritivas entretanto instaladas como nos critérios apertados que ao ensino a legislação aplicava desde o início do século. Por outro lado, o próprio Governo utilizou um critério restritivo quando considerava estar em causa a «segurança do Estado», sobretudo depois de 1961 – o que aconteceu, por exemplo, com grupos cujo pacifismo os levava a praticar a objeção de consciência ao serviço militar (Testemunhas de Jeová e Bahá’ís) e que não estava propriamente de acordo com o que previa como procedimento preventivo o artigo 8.º-§3.º da Constituição de 1933.

Esta evolução, apesar da diversidade de estatuto e reconhecimento das diferentes denominações e grupos, explica a situação de «mero facto» em que, segundo João de Matos Antunes Varela (relator do parecer da Câmara Corporativa de 3 de junho de 1971), a proposta de lei de liberdade religiosa do Governo, apresentada em outubro de 1970, vinha encontrar as minorias religiosas no País – tanto as já existentes até 1940, como, sobretudo, as que se foram instalando a partir do pós-guerra (neste último caso, tanto Bahá’ís como comunidades em início de organização e implantação, ligadas ao ultramar, como a muçulmana, a hindu e a ismaelita). A este «mero facto» acrescia a quase inexistente presença pública e política das minorias, de que a única exceção, pouco relevante e tardia, era à época Manuel Ferreira da Silva (da igreja metodista do Mirante, Porto), procurador à Câmara Corporativa desde 1969 e, mais tarde, deputado entre 1973 e 1974.

3. Os equívocos em torno da lei de liberdade religiosa de 1971

O propósito do governo de Marcelo Caetano era ultrapassar a impossibilidade de reconhecer confissões religiosas não abrangidas pela Concordata, pelo que a proposta de lei, embora mencionasse a situação particular da Igreja Católica (em termos históricos, sociológicos e de enquadramento concordatário), abria caminho para alguma paridade e igualdade de estatuto entre confissões. O problema é que o legislador parecia não saber que grande parte do universo religioso minoritário não se organizava ou não era passível de organizar-se em confissões estruturadas a nível nacional (reconhecendo um “credo” único e uma “estrutura de validação do crer”).

Tal estrutura só existia nas igrejas protestantes organizadas em sistema sinodal ou centralizado (Lusitanos Episcopais, Metodistas, Presbiterianos e Adventistas), sendo que também as Testemunhas de Jeová e os Bahá’ís poderiam considerar-se dotados desta estrutura integrada. Porém, todo o restante universo protestante, tal como entidades não cristãs já então existentes (comunidades judaicas de Lisboa e Porto e islâmica de Lisboa), compunha-se de comunidades locais independentes, eventualmente associadas civilmente sob um rótulo denominacional que não fazia delas exatamente uma “igreja” ou “confissão” ou de comunidades sem ligação formal a outras da mesma religião ou identidade religiosa na mesma ou noutras cidades (no caso protestante, igrejas de regime congregacional).

A versão final da proposta apresentada à Assembleia Nacional incorporou apenas as sugestões do parecer da Câmara Corporativa (em geral, bastante favorável a um estatuto de privilégio para a Igreja Católica) que menos destoavam da redação original e não acolheu nenhuma das sugestões do colóquio «Liberdade Religiosa e Liberdade Humana», que juntou na Figueira da Foz, de 4 a 6 de abril de 1971, representantes de todas as denominações minoritárias (exceto Judeus e Testemunhas de Jeová) sob o patrocínio de figuras ligadas à «ala liberal» (Francisco Sá Carneiro e Maria Raquel Ribeiro). O pedido destes últimos, relativo à exclusão da exigência de 500 assinaturas de membros de uma confissão candidata a reconhecimento, tornava patente a confusão que começou a generalizar-se de que esse seria o único processo de reconhecimento vigente, mesmo para igrejas e grupos locais. O debate na Assembleia não foi mais clarificador, tendo servido às diferentes sensibilidades políticas da câmara para se posicionarem sobre o estatuto próprio da Igreja Católica ou o debate em torno das liberdades essenciais.

Deste modo, a lei n.º 4/71, de 21 de agosto (regulamentada pelo decreto n.º 216/72, de 27 de junho), em vez de substituir ou ordenar e simplificar as normas dispersas, pouco claras e/ou caídas em desuso de concessão de personalidade jurídica e exercício da liberdade de culto relativas a um universo minoritário de realidades muito diversas, centrou-se na questão pouco funcional do reconhecimento de confissões. A legislação anterior não era nomeada nem revogada e, em termos práticos, agravou-se a confusão legal anterior, o que explica que, até 25 de abril de 1974, só tenham requerido o estatuto de pessoa coletiva religiosa três entidades (Igreja Evangélica Metodista Portuguesa, Igreja Adventista do Sétimo Dia e Exército de Salvação) que, no entanto, só o obtiveram depois do golpe militar. Nalguns meios protestantes de prática congregacional (nomeadamente os Batistas) formou-se uma opinião desfavorável à nova lei, que viria a exprimir-se de forma mais contundente após abril de 1974 no órgão da Convenção Batista Portuguesa (O Semeador Baptista); mesmo assim, nem todos os articulistas desta publicação adotaram uma postura crítica relativamente à Lei de 71.

4. O impacto do período revolucionário

Durante o período revolucionário nenhuma alteração formal foi feita a este enquadramento jurídico, além da extensão ao ultramar do processo de reconhecimento de confissões ao abrigo da Lei de 71 (portaria do ministro da coordenação interterritorial de 7/8/74) e da autorização da assistência religiosa das confissões minoritárias nas forças armadas (decreto-lei 310/75 do Conselho da Revolução).

As entidades dotadas da figura de pessoa coletiva religiosa (cinco entre abril de 1974 e abril de 1976) beneficiaram meramente de uma alteração de atitude das autoridades políticas e administrativas no contexto do quadro legal herdado do regime anterior; aliás, as assinaturas apresentadas por exemplo pelo Exército de Salvação dificilmente poderiam ser só de membros desta entidade então recentemente implantada, o que denota uma interpretação muito aberta da Base VII da Lei de 71, que foi seguida em anos subsequentes, pois a maior parte das entidades reconhecidas por despacho dos ministros da Justiça até 2001 foram congregações locais (na sua maioria esmagadora evangélicas), que dificilmente teriam 500 membros, e não “confissões” – até ao fim de 1976 dez entidades tinham solicitado e obtido o seu reconhecimento como pessoas coletivas religiosas, outras 138 até ao fim de 1985 e mais 353 até junho de 1999.

A aplicação generosa da Lei de 71 quanto aos pedidos de reconhecimento acabou, assim, por a tornar um instrumento de concessão de personalidade coletiva religiosa a comunidades locais e grupos confessionais, mesmo sem qualquer alteração ao texto original, o que explica que aquele diploma se tenha mantido até 2001, ano em que foi promulgada uma nova lei de liberdade religiosa. Mas isto significa, mais uma vez, que, no universo da relação do Estado com as minorias religiosas, a prática administrativa continuou a sobrepor-se às normas ou a colmatar as suas lacunas e contradições, como era uso no regime de separação pré e pós-concordatário. Muitas comunidades optaram por manter-se como meras associações civis, mesmo depois do período revolucionário, vindo a requerer o reconhecimento em anos muito posteriores ao início do período democrático.

O número reduzido de solicitações de reconhecimento no imediato pós-25 de abril terá estado relacionado com a atitude de expectativa prudente adotado pela generalidade dos grupos minoritários, que se exprimiu também numa reduzida mobilização e visibilidade políticas. Em geral, os grupos minoritários haviam recebido com otimismo o golpe militar e as suas promessas políticas, aderindo o discurso das suas publicações mais relevantes em termos de circulação (as da área protestante – Portugal Evangélico, das igrejas presbiteriana e metodista, Semeador Batista, Novas de Alegria, das assembleias de Deus, e a Revista Adventista) às ideias democráticas.

A situação de desconforto perante o quadro legal existente incentivava essa atitude e houve uma tendência, aliás bastante generalizada na sociedade, para se apresentarem como vítimas, no passado então recente, da «repressão» do regime deposto, a que associaram a Igreja Católica e o regime concordatário – o que motivou tomadas de posição como a da 40.ª assembleia da Convenção Batista, no fim do verão de 1974, pedindo aos poderes públicos a revogação da Concordata e da Lei de 71. Esta leitura não deixava de contrastar com o quadro menos pessimista que se colhe dos estudos de opinião do IPOPE para a revista Vida Mundial em 1971 e segundo os quais 75% dos portugueses metropolitanos oriundos de minorias religiosas considerava poder exercer com liberdade a sua religião (contra 73% dos católicos praticantes).

No entanto, a radicalização do processo revolucionário – e, em particular, no caso dos evangélicos, a animosidade da imprensa mais esquerdista (veja-se a reação dos jornais A Capital e O Século ao XI Congresso Juvenil Pentecostal, em maio e junho de 1975) – instalou um clima de alarme entre as minorias mais reativas a um projeto de sociedade coletivista, tanto mais que algumas delas tinham nos seus periódicos, antes de 1974, um discurso claro de rejeição do comunismo (Semeador Baptista e Novas de Alegria, por exemplo). Mesmo nas igrejas sinodais, menos representativas, onde se sentira alguma contestação política de uma nova geração de pastores nos anos anteriores ao 25 de abril, a radicalização revolucionária provocou um efeito reativo semelhante.

Algo de muito parecido terá sucedido nas comunidades não cristãs – tanto a Comunidade Israelita de Lisboa (em declínio desde o início dos anos 60 e onde permaneceu como presidente, até 1978, Moses Bensabat Amzalak, procurador à Câmara Corporativa até 1969) como aquelas que ganharam maior representatividade com o influxo de refugiados do ultramar em conturbado processo de descolonização (muçulmanos sunitas, sobretudo a Comunidade Islâmica de Lisboa, e xiitas, ismaelitas e hindus). A generalidade das igrejas protestantes também aumentou o seu número de fiéis graças a este influxo do ultramar nos anos de 1974 a 1976.

O processo revolucionário de transição para a democracia acabou por criar um ambiente mais favorável às minorias e à diversidade religiosa, embora, como se viu, sem alterar substantivamente o quadro legal anterior nem levando a uma alteração significativa da percentagem das minorias sobre a população total – devendo-se o seu ligeiro acréscimo sobretudo aos repatriados do ultramar e a fenómenos mais recentes de imigração. A presença pública das minorias, em termos de realidade associativa e sua relação com as autoridades do Estado, beneficiou de alterações políticas gerais que tiveram efeitos semelhantes no conjunto da sociedade civil e que não lhes foram particularmente dirigidas.

Dessa forma, o isolamento tradicional e a pouca visibilidade pública das minorias religiosas não se alteraram, o que se nota também na sua reduzida presença e participação políticas – já notadas para o período anterior a 1974 – e de que o pastor presbiteriano José Manuel Leite (presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz, pelo PS, entre 1976 e 1980) foi a exceção que confirma a regra.


Bibliografia: Arquivo Histórico da Secretaria-Geral do Ministério da Justiça, Associações Religiosas Não Católicas, s.d.; Periódicos Novas de Alegria, O Semeador Baptista e Portugal Evangélico, 1971-1976; SANTOS, Luís Aguiar – «A pluralidade religiosa: correntes cristãs e não cristãs nouniverso religioso português», in Carlos Moreira Azevedo (dir.), História Religiosa de Portugal, vol. 3: religião e secularização, séculos XIX e XX (coord. António Matos Ferreira e Manuel Clemente), pp. 399-501, Lisboa: Círculo de Leitores, 2002; SANTOS, Paula Borges – A Política Religiosa do Estado Novo (1933-1974): Estado, Leis, Governação e Interesses Religiosos, Lisboa: dissertação de doutoramento apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2012; TEIXEIRA, Alfredo (dir.) – Identidades Religiosas em Portugal: Ensaio Interdisciplinar, Lisboa: Paulinas Editora, 2012.