sábado, abril 27, 2024

O 25 de Abril e a História


António José Saraiva [1917-1993]
(«Comentários a respostas», Diário de Notícias, 23-2-1979) aos críticos do seu artigo «O 25 de Abril e a História», nomeadamente Melo Antunes (Filhos de Saturno: Escritos sobre o Tempo que Passa, Lisboa: Gradiva, 2015, pp. 274-277):

«Havia um projecto de descolonização, ou antes, um ideal de descolonização dependente de negociações necessariamente difíceis e delicadas; e havia, por outro lado, um levantamento de capitães, sem ideia, e com uma única motivação: acabar com a guerra imediatamente e fosse como fosse (por isso falei em “instinto das tripas”). O movimento nomeou um chefe, chamado Spínola, que tinha a consciência de que a guerra tinha de acabar, mas não podia acabar de qualquer maneira, no abandalhamento. Nesse momento, evidentemente, era indispensável o reforço do comando para que a tropa não se desagregasse. Mas o MFA, que se constituiu em representante dos capitães, sabotou a unidade do comando, provocando a desorientação das tropas e tornando impossível qualquer negociação fosse ela qual fosse. O major Vasco Lourenço e o tenente-coronel Melo Antunes […] disseram que o plano spinolista do referendo implicaria o prolongamento da guerra. Mas, nessa lógica, o que se seguia era depor imediatamente as armas unilateralmente, ou seja, a rendição imediata e sem condições. […] Diz […] Melo Antunes que o plano de Spínola (que consistia fundamentalmente num referendo nas diferentes colónias) era inexequível e utópico. Pelo menos era um plano, e o que o MFA nos deu em troca foi a ausência de qualquer plano, e, como conclusão, a “rendição incondicional”. Além de que essa afirmação […] é extremamente contestável, sobretudo no que respeita a Angola: nenhum dos três movimentos ali existentes representava a vontade do povo angolano no seu conjunto nem podia negociar em seu nome, pelo que, em teoria e na prática, se impunha uma consulta generalizada à população. […] Diz ele [Melo Antunes] que “o golpe militar do 25 de Abril transformou-se, em poucas horas, numa autêntica revolução popular com uma dinâmica interna”, etc., e que por isso “o processo histórico da descolonização faz parte da liquidação do fascismo e, paralelamente, da edificação, contraditória embora, de um novo estado democrático em Portugal”.

A mim parece-me que em Portugal não houve “autêntica revolução popular”, nem “liquidação do fascismo”, nem “edificação de um novo estado democrático”. O dito “processo histórico” foi uma série de golpes e intrigas na sombra dos quartéis, tendendo inicialmente à eliminação do chefe (Spínola), e transformando-se depois numa confusa luta de bandos de oficiais que acabou na mascarada dos SUV.

Em certa altura, já não havia exército, mas quadrilhas armadas que se passeavam nos seus Chaimites pelas ruas de Lisboa. O episódio decisivo que abriu completamente as portas da desintegração das Forças Armadas foi a farsa carnavalesca do 28 de Setembro, em que um destes bandos militares se associou a civis escolhidos para o efeito, segundo a sua ideologia política. A História dirá como foi tramado o 28 de Setembro, mas desde já salta à vista que ele ocorreu dias depois de Spínola ter iniciado pessoalmente as negociações para a descolonização de Angola, caso em que a aplicação do seu projecto de referendo se mostrava flagrantemente como a única solução legítima, exequível e normal. Neste caso, pelo menos, a solução do referendo foi rejeitada não por ser utópica, mas por ser indesejável para certo sector político com influência nas casernas.

[…] Melo Antunes diz que “a participação visível” (sublinhado meu) do PCP no processo de descolonização foi diminuta, e acrescenta: “Tenho para mim que o PCP sempre preferiu na descolonização métodos indirectos de pressão, formas subtis de influenciar os centros de decisão, evitando a todo o custo sujar as mãos”. No 28 de Setembro essa “forma subtil” foi demasiado grosseira e evidente.

Quanto ao “povo”, a sua participação no “processo revolucionário” e especialmente no da descolonização foi nula, a não ser que chamemos “povo” a bandos de arruaceiros que gritavam nas ruas de Lisboa palavras de ordem idiotas, mas calculadamente demagógicas, e que tentaram impedir o funcionamento da Assembleia Constituinte, entre outros atropelos. […] Em resumo, aceito a declaração de Melo Antunes de que “foram as indecisões políticas de Lisboa que impediram as Forças Armadas de actuar como seria legítimo”, só que estas “indecisões” foram a consequência de o MFA ou certo sector dele ter desorganizado o comando, primeiro pela guerra contra Spínola, depois pela luta desencontrada entre os seus vários bandos teleguiados do exterior. “Indecisões” é uma palavra neutra que mascara a realidade.

Tudo começou nos quartéis e tudo acabou nos quartéis, quando o 25 de Novembro restaurou a ordem nas Forças Armadas, que se tinham transformado, sobretudo depois do 28 de Setembro, em bandos armados».

sábado, março 16, 2024

Sobre as eleições de 10 de março último

Emblema do Partido Liberal, fundado
em 28-5-1974 e proibido a seguir
ao 28-9-1974 (ver aqui).

A Iniciativa Liberal teve, nas eleições de 10 de março último para a AR, 312,064 votos a nível nacional (5,08%), elegendo 8 deputados: Lisboa [distrito] 86,847 votos (6,58%, 3 deputados); Porto 5,75%, 2 dep.; Braga 6,10%, 1 dep.; Aveiro 5,11%, 1 dep.; Setúbal 5,36%, 1 dep. – em Lisboa concelho, 24,387 votos (7,45%) [Fonte: MAI]. O partido perdeu 1 deputado em Lisboa e ganhou outro em Aveiro, ficando a representação mais equilibrada e bem distribuída; aguentou a pressão do voto útil (AD) e a subida do Chega (que o afeta menos); nos restantes distritos do litoral e Madeira ficou acima dos 3%. É importante que se mantenha a estratégia de prudência perante a lógica da "política de blocos".

O Chega elegeu 48 deputados, com mais de 1,1 milhão de votos e, se este resultado se mantiver em próximas eleições (depois de uma eventual aproximação desse partido até agora protestatário à área do poder), acabou a famosa “maioria sociológica de esquerda” e, já agora, o sistema partidário moldado pelo diktat da Coordenadora do MFA durante o processo de transição em 1974-76; estas eleições podem, aliás, ter produzido uma AR muito próxima daquela que poderia ter existido logo nas primeiras eleições após o 25 de Abril sem a proibição dos partidos organizadores da célebre manifestação da “maioria silenciosa” a 28-9-1974 e sem o rolo compressor dos chamados pactos MFA/Partidos. E é evidente outra coisa: que temos, agora, a AR mais plural dos últimos 50 anos e aquela que, nesse período, exprime de modo mais evidente a vitalidade do regime democrático e do sistema partidário.

segunda-feira, janeiro 29, 2024

Fica disponível no L&LP o livro Normatividade e Economia em Portugal: a regulação da iniciativa privada antes do liberalismo (1603-1834 e antecedentes).

RESUMO: Este livro examina todo o universo normativo português até às vésperas da instauração definitiva da ordem jurídica liberal em 1834. Com essa investigação, pretende apurar o espaço que a “esfera privada” (indivíduos, famílias, sociedades, associações) tinha para levar a cabo, licitamente, as suas ações ou iniciativas, a que se pode reconhecer natureza económica (mobilizando bens e tornando-os em capital). Neste âmbito, são considerados também os constrangimentos de tipo fiscal e administrativo, bem como as condições de acesso à Justiça, e os procedimentos informais incentivados pelas normas formais. Incidindo em particular sobre o período que se inicia em 1603, com a última recompilação das Ordenações do Reino, o estudo do edifício jurídico e da sua aplicação concreta em vários setores de atividade é sistematicamente relacionado com os seus antecedentes desde o período medieval e no direito romano.

ABSTRACT: This book examines the entire Portuguese normative universe up until the eve of the definitive establishment of the liberal legal order in 1834. Through this investigation, its aim is to determine the space that the 'private sphere' (comprising individuals, families, societies, and associations) had to lawfully carry out their actions or initiatives, particularly those of an economic nature involving the mobilization of assets and their conversion into capital. In this context, fiscal and administrative constraints are also considered, along with the conditions of access to justice and the informal procedures encouraged by formal rules. Focusing specifically on the period starting in 1603, with the last compilation of the Ordinances of the Kingdom, the study of the legal structure and its practical application in various sectors of activity is systematically related to its antecedents since the medieval period and in Roman law.