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Vou só ali e já volto, mas posso demorar um bocadinho...
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Há quem olhe para os anos em que Pedro Passos Coelho
chefiou o XIX Governo Constitucional como o Alcácer-Quibir daquele então ainda
“jovem” político que em 2010 conquistou a liderança do PSD. A esses, há a dizer
– como Marcelo Caetano disse em certa ocasião a Rogério Martins – que se
enganam se pensam que era possível não ir àquele Alcácer-Quibir.
Não falo dos que aderem (ou conscientemente ou por
ignorância voluntária ou grosseira) à tese do negacionismo sobre a
situação gravíssima do País em 2011. Falo dos que acham que, perante as
circunstâncias, o “ajuste” era necessário, mas que se foi “para além da Troika”
ou que Passos Coelho “geriu” mal a conjuntura ou, como se gosta também muito de
dizer, “comunicou” mal ou, como afirmam agora algumas sumidades, não tinha
qualquer “programa” nem visão para o País que não fosse executar o Memorando de
Entendimento com a Troika que resgatou o País da bancarrota iminente de 2011.
Para explicar o meu ponto de vista, e embora não pertença ao clube de
adoradores de Winston Churchill, uso uma célebre expressão de um discurso de
guerra daquele: julgo que, para Passos Coelho, aqueles quatro anos foram a sua finest hour.
Nenhum chefe de Governo português no atual regime
constitucional teve de gerir uma situação tão complicada como a de 2011 e anos
seguintes (a dimensão do ajustamento financeiro, a dimensão do diktat externo negociado pelo
primeiro-ministro anterior e a dimensão da contestação política interna, que
tinha em Paulo Portas uma 5.ª coluna dentro do próprio gabinete governamental).
Insisto, porque não é coisa pouca: governar naqueles anos, naquelas condições,
foi uma prova, um teste, um tirocínio, que nenhum chefe de Governo deste
regime, além de Passos, experienciou.
Naquele contexto adverso, Passos Coelho mostrou
saber fazer quatro coisas fundamentais:
1) Realizar o ajustamento de forma a que o diktat da Troika acabasse no tempo previsto e sem se realizar o
catastrófico fado de um segundo resgate (que eu achava praticamente
inevitável);
2) Com genuínas preocupações “sociais”, poupar as pessoas de
menores rendimentos aos cortes efetuados por via fiscal, distribuindo pelo topo
o grosso dos sacrifícios (o que lhe valeu o ódio redobrado de grande parte da
“elite” que aufere altos salários e pensões do Estado);
3) Inverter logo em 2014-2015 a tendência descendente do
crescimento económico, da criação de emprego e até do saldo migratório (tendências que se agravaram com o ajustamento, mas que já se haviam iniciado
antes de 2011);
4) Controlar e, por fim, driblar
a instabilidade causada pela inconstância (to
say the least…) de Paulo Portas, em especial na crise governamental de 2013 em que aquele, cheio de vontade de abandonar o barco da
responsabilidade governativa e de agradar ao coro de protestos dos comentadores
e bem-pensantes, se preparava para consumar o fim da coligação e a
possibilidade de Passos e do ministro Vítor Gaspar acabarem o que tinham
começado.
Esta foi a verdadeira ida à “guerra” de Passos
Coelho – e a verdade é que a ganhou.
Se as qualidades de um político não se revelam num
combate destes, não sei que catástrofes épicas seriam necessárias para dar a
alguém glória política no Portugal democrático e europeu do início do século
XXI. O que aquele combate poderá ter de Alcácer-Quibir é a vertente de
sobrevivência política no curto prazo pelo favor da opinião pública (e/ou
publicada) e do eleitorado. Não subestimo esta vertente, necessária e inevitável
num regime representativo/eletivo; mas o que não faço, nem ninguém deveria
fazer, é reduzir a Política (com maiúscula) a essa vertente – que lhe pertence,
mas que a não esgota.
O que estou aqui a avaliar são as qualidades de
Passos Coelho como político e, portanto, a contradizer a ideia muito difundida
de que se revelou politicamente inábil e ineficaz como líder. Poderá ter sido
mal sucedido em termos de popularidade (o balão de oxigénio dos políticos em
ambiente democrático), mas os resultados das eleições legislativas de 2015
matizam em muito até essa conclusão apressada. Passos não agrada a todos, isso
é evidente. Outra coisa, apressada, é achar que isso faz dele um mau político.
Passos tem algo que não é comum no meio político
português: ideias bem arrumadas sobre os grandes problemas nacionais e uma
determinação tática que dali decorre. Ideias bem arrumadas não são os “princípios”
delicodoces das “ideologias” ou cartilhas partidárias domésticas que são tudo e
nada e acabam sempre a ser o marxismo funcional (versão Groucho) do “estes são
os meus princípios, mas se não vos agradam arranjo outros”.
“Ideias bem arrumadas” quer dizer que Passos conhece
os dossiês, sabe da gravidade e complexidade dos problemas (veja-se a questão
da viabilidade financeira da Segurança Social) e, por isso mesmo, não consegue
evitar falar dessas coisas com articulação e com ponderação. Isto exaspera o
jornalismo doméstico que se tem sempre na conta de “jornalismo de referência”
(todos precisamos de autoestima), mas que é em 90% dos casos – na forma como
olha a política e cria opinião sobre ela –, verdadeiramente, da escola dos tabloides
sensacionalistas, à cata de sound bytes,
de “furos”, de histórias da carochinha que julgam ser o que vende e, portanto,
o seu ganha-pão.
O jornalismo (e “comentarismo”) doméstico não tem
paciência para a conversa de Passos Coelho que, como dizia o diretor da Visão num canal de notícias há uns
tempos, “parece uma aula” (presume-se que dada por um arrogante) – mas claro
que tem de parecer uma “aula” a alguém que não está para se maçar com o
conteúdo, com o que é dito porque se
viciou em reparar só em como é dito e
em quanto tempo. Era por isso que José Sócrates, com o seu teleponto e o seu
discurso vazio, impressionava mais estes nossos mediadores da comunicação
política – e isto diz tudo sobre aquelas cabeças e a forma como entendem o seu
trabalho.
Mas o problema não é só o estilo de Passos Coelho.
Precisamente por ser um político com uma compreensão articulada dos grandes
assuntos, Passos Coelho cria realmente adversários no meio político. Não é por
acaso que a “Gerigonça” se constituiu. Havia até ontem uma argamassa que a unia
e que era o receio que os estados maiores dos diferentes partidos socialistas
tinham de Passos Coelho. Dele mesmo. Ele é mais uma encarnação do “perigoso
doutrinário” que James Callaghan via em Margaret Thatcher em 1979 – não por ser
(ela também não era) especialmente doutrinário, mas por ter um pensamento
articulado que o leva a inclinar-se para determinadas soluções também
articuladas.
À política que gere apenas interesses de grupos
instalados no aparelho do Estado ou dependentes do Orçamento e que tem pavor de
falar alto dos problemas reais – que supostamente irritarão os interesses e
criarão alarme junto dos cidadãos-que-não-suportam-a-realidade – um político
como Passos assusta. É preciso torná-lo um papão e fazer muito barulho para as
pessoas não o escutarem (claro que isto é para bem dos mesmos
cidadãos-que-não-suportam-a-realidade). É por isso também que o jogo do
jornalismo (e “comentarismo”) tabloide-que-se-crê-de-referência é em geral
muito pouco inocente na sua desqualificação de Passos como “comunicador” ou (já
lá vamos) “criador de esperança”.[1]
É o paternalismo dos políticos que não falam de
problemas para não alarmarem os cidadãos-que-não-suportam-a-realidade que gera
a conversa oca, mas levada muito a sério, da “criação de esperança”. Passos
está “preso ao passado” porque fala da sustentabilidade da despesa e da dívida
públicas ou porque quer abrir o debate sobre a Segurança Social. Asseguram-nos
que isso deprime os Portugueses e que esse sentimento depressivo não permite o “crescimento”,
etc. Todos nos lembramos que, pouco antes da declaração de bancarrota iminente
em 2011, o discurso de José Sócrates era o da necessidade de imprimir confiança
porque a confiança era a única base do “crescimento”. Terá Sócrates falhado
porque os Portugueses não aderiram a um coach
que lhes dizia que tudo se resumia a acreditarem, a terem confiança? Um
conhecido meu publicou, nos últimos anos do socratismo, um artigo de opinião
num “jornal de referência” em que defendia a tese de que a crise já então
declarada radicava numa comunicação global ainda deficiente da marca “Portugal”
(claro que era um socratista).
A ideia da Política como coaching dos cidadãos ou dos “investidores” ou como mera gestão de
imagem pública e de expetativas pode parecer uma coisa sofisticada, mas é
apenas uma forma superficial e amputada de ver a realidade – além de paternalista.
Mas é mais do que isso: é uma forma de ocultar ignorância sobre os famosos
“dossiês” da realidade nacional e, sem o assumir, refugiar-se numa mentalidade
mágica, num género de vudu político
útil a especialistas com preguiça de saírem da sua área de leituras de conforto.
Um outro meu conhecido (como o anterior, também do meio universitário), logo a
seguir às eleições de 2015, deixou cair numa conversa, no meio de afirmações
contundentes: “Ah, pois, sobre a questão da Segurança Social nunca li nada”. É
como se, ainda no Estado Novo, falando de política e criticando propostas
reformistas, um professor universitário nos dissesse: “Ah, pois, sobre a guerra
no Ultramar pouco sei, nunca li nada”. O que constato é que é esta “elite” que
critica Passos Coelho. Não admira que em vez de criticarem o seu diagnóstico e
as suas soluções (ou meramente os fundamentos da sua abordagem) adiram à
caricaturização do seu carácter ou ao conspirativismo sobre as suas intenções.[2]
Esta atitude intelectual preguiçosa é paralela do
jornalismo preguiçoso já referido. Na verdade, acomodam-se hoje ambos no
“comentarismo”, também bem nutrido da quota de “académicos”. Não há secção de
“comentarismo” nos media que não se
satisfaça com a dignificação e a seriedade que passa por receber no seu seio
“académicos”. E não há “académico” que não sonhe com os cinco minutos diários
de fama de poder aparecer como comentador num “jornal de referência” ou num
canal de notícias. Não digo que estas realidades não tenham de ou não devam
existir. Apenas explico o ecossistema em que vivem e medram os adversários
públicos de Passos Coelho – que não o são por estarem naquele meio, mas que
nele se dão bem e a ele chegam mais com a motivação de verem realmente em
Passos alguém que os ameaça.
De facto, para esta mentalidade, um político que
insiste na sua visão articulada da realidade só pode ser um homem de
Alcácer-Quibir – um louco que sacrifica o seu futuro político (leia-se, a sua
popularidade imediata). Quando Passos declarou que se “estava nas tintas para
as eleições” (isto é, que não se importava de as perder se levar o seu programa
até ao fim da legislatura implicasse isso), só podia ser visto como um
hipócrita ou um louco perigoso. Uma tal postura determinada é inconcebível para
a cultura política instalada – o que pode valer mais do que não irritar os
interesses encostados ao Estado e os milhões de infelizes que não suportam a
realidade e de quem se tem de tomar conta? Quando Passos disse que ninguém, com
os seus descontos, pagou as pensões que vai receber durante a reforma estava
apenas a dizer uma evidência para qualquer um que tenha feito contas com dados
disponíveis (e a explicar que há um grave problema com a Segurança Social) –
mas isso era uma verdade tão inconveniente que teve de ser para uns um
escândalo de violação da cultura de ocultação e negacionismo e para outros
(mais ignorantes ou distraídos) uma ofensa a quem “trabalhou a vida inteira”.
Onde está a hipocrisia em tudo isto ficou patente no
não resgate do Banco Espírito Santo. Passos, que os seus adversários mais
enfurecidos apresentavam como o aliado da “alta finança” (que afinal obrava com
Sócrates no meio da distração geral), ficou para a posteridade como o chefe de
Governo que soube dizer não ao
“grande tubarão” do capital (ou seria da dívida?). Poucos quiseram reconhecer
que, para o fazer, não bastava sentido prático e tacticismo – a convicção teve
ali um papel muito forte (e isso viu-se no desnorte dos “inimigos do capital”
que já diziam entre dentes, logo a seguir, que ser realista e inteligente era
ter dado uma ajudinha à mão estendida do Sr. Salgado). Foi um tropeço
inexplicável do rosto doméstico do “neoliberalismo” que permite explicar o que
é Passos ideologicamente e como foi, apesar de tudo, improvável a sua
sobrevivência política.
Julgo que Passos é realmente um liberal, no sentido
que o termo tem na família europeia dos partidos liberais representados no
Parlamento Europeu. No célebre debate do pós-guerra em Itália entre Luigi
Einaudi e Benedetto Croce, Passos estaria com o primeiro, como estão os
liberais na Alemanha ou nos Países Baixos – isto é, na defesa de que o
liberalismo, para o ser, não é só político, mas também económico. Mas Passos
não tem o perfil de um doutrinário de think-tank
“ultraliberal”. É a diferença entre chegar-se perto da doutrina depois de se
interessar pelos problemas (o seu caso) e posicionar-se perante os problemas só
através de livros doutrinários. Passos é realmente um político no sentido da
caracterização que Ortega y Gasset fazia do homem capaz de trazer a “revolução”
ou a rutura (o seu reformismo liberal) e de a refrear com a necessária dose de
“contra-revolução” (a contemporização com o consenso em torno do “Estado
social”). Trata-se de um homem que não se vê como o destruidor do Welfare State, mas que está
suficientemente informado de que o destino deste é viver na “austeridade
permanente” ditada pela realidade económica e demográfica e diagnosticada pela
análise académica mais fundamentada e menos ligada a doutrinarismos e simbioses
político-partidárias.
Foi por esta razão que se percebia em Passos um
homem capaz de aplicar o programa de ajustamento da Troika como quem percebe o
que está em causa nos seus aspetos “técnicos”. Ele não era o género de
“príncipe” ignorante com a simples intuição política de que tinha de confiar
num “mago” das Finanças (como Soares foi em 1983-85 com Ernâni Lopes). O seu ar
grave e ponderado advinha de perceber perfeitamente no que estava metido, no
que estava em jogo e de que o regresso à tona de água não deveria ser vendido
aos cidadãos como o fim da interrupção de umas férias na praia.
Voltemos ao tema da “gestão de expectativas” no que
tem de verdadeiro. Passos acredita que as pessoas comuns têm o direito de
conhecer a realidade porque isso as levará a planear a sua vida de uma forma
menos sujeita a surpresas e a erros de cálculo. Esta é a sua ingenuidade sã e a
sua obstinação irritante. Não indispõe apenas a “elite” estado-dependente ou
aqueles que têm vocação para pastores ou entertainers
de cidadãos-que-não-suportam-a-realidade. É um facto político da nossa vida
democrática e eleitoral que há muita gente que prefere “narrativas” ficcionadas
que lhes deem sensação de conforto ou de que há caminhos fáceis. É um género de
adicto entre outros – e seguramente com mais potencial para fazer estragos
coletivos do que o álcool e a cocaína, mais capazes de estragos
individualizados. Não é preciso ler os autores gregos antigos para sabermos que
há sempre procura para a demagogia (se não houvesse, ela seria inofensiva). Até
Sócrates (o outro, o de Atenas) se deixou embeiçar por Alcibíades e acharia
pouco sexy o cerebral e ponderado
Nícias.
Na cultura política que temos, se ser primeiro-ministro
como Nícias é difícil, ser líder da Oposição é completamente improvável. Na hipocrisia
generalizada quanto a este assunto, as pessoas fazem de menino do coro quando
dizem que a Oposição deve ser ponderada, informada, construtiva, mas, quando se
soltam, o que acham realmente “eficaz” e revelador de talento político é a
gritaria e o bota-a-baixismo. Por isso, Passos vinha sendo visto como um
político frio, com a pose de estadista que não “despiu” e o diabo a sete. O líder
da Oposição ser um autêntico “primeiro-ministro sombra”, de preferência com
experiência governativa, é algo que não se encaixa no que pede muito cidadão
adicto de demagogia e a quase totalidade do “comentarismo” instalado. Passos
destoava, outra vez. Para os mais impacientes, era novamente insuportável.
Agora, eu digo que é esta dessintonia de Passos com
o que o rodeia que me aproximou dele. Apenas votara no PSD em 1995 porque o
estilo de então de Manuel Monteiro me impedia de manter o meu voto instintivo e
me fazia ver em Fernando Nogueira uma alternativa natural. A partir de 2011 e
nos anos seguintes tornei-me passista na concordância com as suas opções
e na observação do seu modo de agir e até de falar. Tive pela primeira vez a
sensação estranha e nova de me identificar completamente com um político ativo
no nosso meio. A retirada de Passos, agora por si próprio anunciada, tarde ou
cedo e por contraste, tornará gritante, insuportável, o peso esmagador do
regresso à política como era antes dele.
[1]
Parêntese: o currículo e a declaração de interesses dos jornalistas e/ou
comentadores da praça deveriam desfilar – algumas vezes que fosse – em rodapé
sempre que fazem as suas aparições mediáticas/mediadoras; isso, sim, seria
informação. Eu explico, com uma ilustração: a primeira vez que vi Isabel
Moreira como comentadora televisiva, ainda José Sócrates era primeiro-ministro,
foi-me apresentada pela SIC Notícias como “constitucionalista”; eu estranhei o
tom extremo da crítica ao então presidente da República e só vim a perceber umas
semanas depois quem era a senhora. Isto não é um jogo sério com os
telespetadores.
[2] A propósito desta
última atitude, há todo um ensaio a escrever sobre José Pacheco Pereira
enquanto crítico de Passos Coelho. Embora Pacheco Pereira gostasse de se fazer
passar por um crítico de recorte “académico”, a sua atitude está muito mais
relacionada com guerras, ódios e ressentimentos intrapartidários em que esteve
e está envolvido – tal como Manuela Ferreira Leite.