domingo, maio 27, 2018

A idade das sedes


A PROPÓSITO DOS 50 ANOS DO "MAIO DE 68"



[Este texto foi escrito há trinta anos, quando eu tinha 20 anitos. Foi publicado num suplemento "literário" da imprensa diária que acolhia um pouco a contragosto os meus textos dissonantes. E eu gostava de provocar. Mas o que aqui digo era sentido. No graffito acima escolhido, o "conselho" atribuído de má-fé a De Gaulle não é necessariamente mau: sempre me pareceu que o problema dos "soixant-huitards" era a inflação de palavreado e a ausência de projetos de vida autênticos e viáveis, isto é, de verdadeiros ideais.]


Quando o jovem Frankenstein se matriculou na Universidade de Ingolstadt, aos 17 anos, estava dominado pelos caprichos do espírito, pelas ideias ambiciosas que queria aplicar neste mundo real com a ajuda das ciências, com os obscuros ensinamentos de Cornelius Agrippa e Alberto Magno. Ele próprio diz, recordando mais tarde esses tempos, já depois da tormenta que devastou a sua vida, que o seu instinto de conservação havia sido derrotado por essa sede mental que seria a sua perdição. Foi para a personagem central do romance Frankenstein, de Mary Shelley, a idade das sedes. E isso de sedes é o que o ser humano experimenta desde que toma consciência de si até à altura em que atinge a maturidade.

Na infância, a grande sede é a liberdade. Normalmente começamos todos por ser um pouco Tom Sawyer. Fugimos do banho, detestamos a escola, fazemos tudo para evitar a missa de Domingo, dissecamos insectos, temos horror às tias beijoqueiras e queremos é os grandes espaços abertos e um bando de amigos para nos estafarmos sendo chefes ou súbditos leais e depois, à noite, aconchegarmo-nos no colo das nossas mães e adormecer com as meiguices.

Mas há qualquer coisa que acontece, como se chegássemos à última página do livro de Mark Twain e a liberdade que inconscientemente procurávamos viver desaparecesse. Passamos a querer as grandes entregas, mesmo quando as mascaramos de liberdade. Entregar-se ao saber, à verdade, às grandes causas, aos grupos, aos rituais, aos grandes amores, aos caprichos próprios, às sedes da idade é tudo o que a criança metamorfoseada em jovem passa a querer. Quem disse que os jovens procuram a liberdade? Os jovens vivem demasiado obcecados com a birra de quererem satisfazer as suas sedes, os seus caprichos. A liberdade é uma desculpa, como o anti-semitismo para os florescentes skinheads neonazis. Poder-se-á, por exemplo, acreditar que os jovenzinhos que andaram a brincar em Maio de 1968 nas ruas de Paris prezavam a liberdade ou ao menos sabiam o que ela é? Tudo aquilo não passou de uma enorme má-criação por a sociedade e a Polícia não alinharem na brincadeira da revolução socialista.

A criança quer viver a liberdade, mas o jovem é mais propenso a lutar por um ideal qualquer de liberdade. Tudo o que um miúdo faz para ser livre é, como Tom Sawyer, sair pela janela de noite para ir ao encontro dos mistérios de um cemitério assustador, é ir nadar ao rio, apanhar rãs e sabe-se lá mais o quê! O jovem, que com a idade se torna desajeitado nesse tipo de coisas, precisa de conquistar um ideal, algo que, literalmente, o faça mexer-se, mas sem ter de andar a trepar às árvores ou a arrastar-se pela lama. Por isso é tão fácil mergulharmos na angústia, na revolta, nos intuitos demolidores, nas boas intenções para com os outros. Por isso caímos na tentação de querer fazer coisas em nome de conceitos abstractos como Justiça, Liberdade, Solidariedade – tudo com maiúsculas. E, enquanto isso, estamos tão concentrados nos nossos ideais que nada fazemos para sermos realmente justos, livres, solidários. Acho que era isto que os românticos alemães queriam transmitir quando diziam que tudo se devia fazer “com” e nada “por”. Porque a pretensão de estar a servir grandes ideais – revolucionários ou contra-revolucionários, justicialistas ou solidaristas, libertadores ou outros –, acaba por justificar quase todos os meios para chegar ao fim, torna as pessoas cegas e de tal modo obstinadas, que se recusam a preferir a verdade. Não essa verdade filosófica que nunca será encontrada, mas aquela verdade que se torna nítida quando a poeira assenta e podemos ver por nós próprios como as coisas são. É nessas alturas que todos os visionários são desmascarados e que os homens podem amadurecer mais um pouco.

Não sou eu quem se insurge contra o idealismo na juventude, porque eu creio que a obrigação e os prazeres nunca fizeram, por si só, um homem amadurecer verdadeiramente. Simplesmente, quando escolhemos os ideais cuja materialização não depende de nós, estamos a seguir por uma estrada que levará à desilusão ou que nem sequer lá chegará, que nos há-de servir para culpar tudo e todos pelos nossos fracassos e derrotas individuais. E isso é tão fácil que chega a ser indecente.

A juventude, que é a idade das sedes, aparece como uma grande esperança porque estamos prontos para algo que se assemelha ao início de um grande voo. Mais do que qualquer outra coisa, é a enorme oportunidade de construir a liberdade própria e eu penso que isso é o ideal à nossa dimensão. A maior prova de respeito pelos outros é querermos construir-nos a nós mesmos. Livre-nos Deus dos pais que dão tudo ou do Grande Pai Estado que, na sua generosidade cínica, nos estende os subsídios, o direito de voto e a maioridade na precocidade dos 18 anos, todos os direitos e preocupações para com os problemáticos jovenzinhos que precisam de muletas e de conselhos nacionais da juventude.

Hoje, da infância das pedinchices satisfeitas e da falta de espaço e de sol à juventude dos meninos e das meninas niilistas que cultivam o vício e se acham demasiado importantes para desempenhar obrigações cívicas, não vai distância nenhuma, antes um lento arrastar de sedes satisfeitas ou de birras porque ninguém as satisfaz. Há-de vir um dia em que, sentados na poltrona, esperaremos o cheque da Previdência para irmos ao bordel ou às bebidas e pouco mais haveremos de saber fazer. Não iremos à tropa, votaremos depois da quarta classe, poderemos viajar num mundo de betão e relvados e Deus seremos nós ou o futuro. Diremos que fazemos o que nos apetece, vendo nisso a liberdade. Só que algo, no caminho, ficou esquecido: a liberdade não é lutar contra o que existe nem ter tudo o que queremos, bastando para isso estalar os dedos; a liberdade é viver pelos próprios meios, é, sobretudo, ser senhor do seu próprio devir.

[Publicado no Diário de Notícias 13.09.1988, supl. DN Jovem, p. 31]

sexta-feira, maio 04, 2018

O rol da desonra


Sobre o processo de acusação em curso contra o ex-primeiro-ministro José Sócrates (e as ligações presumidas a processos similares contra o ex-ministro Manuel Pinho e o ex-banqueiro Ricardo Salgado), o atual primeiro-ministro, António Costa, declarou ontem que «Se essas ilegalidades se vierem a confirmar, serão certamente uma desonra para a nossa democracia».

Não, Sr. Costa! A democracia constitucional que temos não está nem ficará desonrada se se confirmarem, em sede judicial, os fundamentos destas acusações. Ela terá demonstrado, apesar de tudo, a saúde dos seus órgãos fiscalizadores e protetores da legalidade. Ela sai vencedora e mais forte por ter sobrevivido, ter identificado e se ter defendido daquela que é presumivelmente a maior e mais concertada ofensiva organizada e planeada para a captura criminosa e cleptocrática do Estado na história política portuguesa.

Quem sai desonrado é apenas um grupo de portugueses que foi conivente com aquela ofensiva, por atos ou omissões, e por baixo comportamento sectário, faccioso. Aqueles que foram e continuam a ser incapazes de condenar frontalmente, e de se demarcarem, dos crimes presumidos é que saem desonrados. Na melhor das hipóteses, fazem-no por orgulho, por saberem da solidariedade e da proteção que deram até demasiado tarde a um ex-primeiro-ministro sobre o qual existiam já suficientes suspeitas; teriam agora de admitir o sectarismo cego em que estavam e não o querem fazer.

Que a demarcação agora anunciada é tímida, insuficiente, contraditória (e, há que dizê-lo, moralmente inaceitável) é o que demonstram as infelizes e despropositadas declarações de Carlos César («José Sócrates deixou uma marca muito positiva em Portugal»).

[Ver também aqui.]