A PROPÓSITO DOS 50 ANOS DO "MAIO DE 68"
[Este texto foi escrito há trinta anos, quando eu tinha 20 anitos. Foi publicado num suplemento "literário" da imprensa diária que acolhia um pouco a contragosto os meus textos dissonantes. E eu gostava de provocar. Mas o que aqui digo era sentido. No graffito acima escolhido, o "conselho" atribuído de má-fé a De Gaulle não é necessariamente mau: sempre me pareceu que o problema dos "soixant-huitards" era a inflação de palavreado e a ausência de projetos de vida autênticos e viáveis, isto é, de verdadeiros ideais.]
Quando o jovem Frankenstein se matriculou na
Universidade de Ingolstadt, aos 17 anos, estava dominado pelos caprichos do
espírito, pelas ideias ambiciosas que queria aplicar neste mundo real com a
ajuda das ciências, com os obscuros ensinamentos de Cornelius Agrippa e Alberto
Magno. Ele próprio diz, recordando mais tarde esses tempos, já depois da
tormenta que devastou a sua vida, que o seu instinto de conservação havia sido
derrotado por essa sede mental que seria a sua perdição. Foi para a personagem
central do romance Frankenstein, de
Mary Shelley, a idade das sedes. E isso de sedes é o que o ser humano
experimenta desde que toma consciência de si até à altura em que atinge a
maturidade.
Na infância, a grande sede é a liberdade. Normalmente começamos
todos por ser um pouco Tom Sawyer. Fugimos do banho, detestamos a escola,
fazemos tudo para evitar a missa de Domingo, dissecamos insectos, temos horror
às tias beijoqueiras e queremos é os grandes espaços abertos e um bando de
amigos para nos estafarmos sendo chefes ou súbditos leais e depois, à noite,
aconchegarmo-nos no colo das nossas mães e adormecer com as meiguices.
Mas há
qualquer coisa que acontece, como se chegássemos à última página do livro de
Mark Twain e a liberdade que inconscientemente procurávamos viver
desaparecesse. Passamos a querer as grandes entregas, mesmo quando as
mascaramos de liberdade. Entregar-se ao saber, à verdade, às grandes causas,
aos grupos, aos rituais, aos grandes amores, aos caprichos próprios, às sedes
da idade é tudo o que a criança metamorfoseada em jovem passa a querer. Quem
disse que os jovens procuram a liberdade? Os jovens vivem demasiado obcecados
com a birra de quererem satisfazer as suas sedes, os seus caprichos. A
liberdade é uma desculpa, como o anti-semitismo para os florescentes skinheads neonazis. Poder-se-á, por
exemplo, acreditar que os jovenzinhos que andaram a brincar em Maio de 1968 nas
ruas de Paris prezavam a liberdade ou ao menos sabiam o que ela é? Tudo aquilo
não passou de uma enorme má-criação por a sociedade e a Polícia não alinharem
na brincadeira da revolução socialista.
A criança quer viver a liberdade, mas
o jovem é mais propenso a lutar por um ideal qualquer de liberdade. Tudo o que
um miúdo faz para ser livre é, como Tom Sawyer, sair pela janela de noite para
ir ao encontro dos mistérios de um cemitério assustador, é ir nadar ao rio,
apanhar rãs e sabe-se lá mais o quê! O jovem, que com a idade se torna
desajeitado nesse tipo de coisas, precisa de conquistar um ideal, algo que,
literalmente, o faça mexer-se, mas sem ter de andar a trepar às árvores ou a
arrastar-se pela lama. Por isso é tão fácil mergulharmos na angústia, na
revolta, nos intuitos demolidores, nas boas intenções para com os outros. Por
isso caímos na tentação de querer fazer coisas em nome de conceitos abstractos
como Justiça, Liberdade, Solidariedade – tudo com maiúsculas. E, enquanto isso,
estamos tão concentrados nos nossos ideais que nada fazemos para sermos
realmente justos, livres, solidários. Acho que era isto que os românticos
alemães queriam transmitir quando diziam que tudo se devia fazer “com” e nada
“por”. Porque a pretensão de estar a servir grandes ideais – revolucionários ou
contra-revolucionários, justicialistas ou solidaristas, libertadores ou outros
–, acaba por justificar quase todos os meios para chegar ao fim, torna as
pessoas cegas e de tal modo obstinadas, que se recusam a preferir a verdade.
Não essa verdade filosófica que nunca será encontrada, mas aquela verdade que
se torna nítida quando a poeira assenta e podemos ver por nós próprios como as
coisas são. É nessas alturas que todos os visionários são desmascarados e que
os homens podem amadurecer mais um pouco.
Não sou eu quem se insurge contra o
idealismo na juventude, porque eu creio que a obrigação e os prazeres nunca
fizeram, por si só, um homem amadurecer verdadeiramente. Simplesmente, quando
escolhemos os ideais cuja materialização não depende de nós, estamos a seguir
por uma estrada que levará à desilusão ou que nem sequer lá chegará, que nos
há-de servir para culpar tudo e todos pelos nossos fracassos e derrotas
individuais. E isso é tão fácil que chega a ser indecente.
A juventude, que é
a idade das sedes, aparece como uma grande esperança porque estamos prontos
para algo que se assemelha ao início de um grande voo. Mais do que qualquer
outra coisa, é a enorme oportunidade de construir a liberdade própria e eu
penso que isso é o ideal à nossa dimensão. A maior prova de respeito pelos
outros é querermos construir-nos a nós mesmos. Livre-nos Deus dos pais que dão
tudo ou do Grande Pai Estado que, na sua generosidade cínica, nos estende os
subsídios, o direito de voto e a maioridade na precocidade dos 18 anos, todos
os direitos e preocupações para com os problemáticos jovenzinhos que precisam
de muletas e de conselhos nacionais da juventude.
Hoje, da infância das
pedinchices satisfeitas e da falta de espaço e de sol à juventude dos meninos e
das meninas niilistas que cultivam o vício e se acham demasiado importantes
para desempenhar obrigações cívicas, não vai distância nenhuma, antes um lento
arrastar de sedes satisfeitas ou de birras porque ninguém as satisfaz. Há-de
vir um dia em que, sentados na poltrona, esperaremos o cheque da Previdência
para irmos ao bordel ou às bebidas e pouco mais haveremos de saber fazer. Não
iremos à tropa, votaremos depois da quarta classe, poderemos viajar num mundo
de betão e relvados e Deus seremos nós ou o futuro. Diremos que fazemos o que
nos apetece, vendo nisso a liberdade. Só que algo, no caminho, ficou esquecido:
a liberdade não é lutar contra o que existe nem ter tudo o que queremos,
bastando para isso estalar os dedos; a liberdade é viver pelos próprios meios,
é, sobretudo, ser senhor do seu próprio devir.
[Publicado
no Diário de Notícias 13.09.1988,
supl. DN Jovem, p. 31]