O filme The Swan [1956, de Charles Vidor] com Alec Guiness e Grace Kelly,
sobretudo o sublime diálogo entre ambos na varanda (cena final), é um dos
melhores retratos humanos da instituição monárquica tal como ela foi recriada
na Europa contemporânea.
A metáfora do cisne, aí usada para descrever a
condição do monarca e dos seus familiares também investidos das funções
dinásticas, coloca a importante questão de saber se tal condição e funções são
um “sacrifício” e se este “desumaniza” os seus protagonistas (por lhes exigir a
renúncia à “vida vulgar”): parece-me claro que é, de facto, um sacrifício e que este é inseparável da
própria missão da realeza (como aliás acontece em muitas outras missões que os
seres humanos se podem atribuir ou aceitar que lhes atribuam), mas é abusivo
dizer-se que desumaniza por princípio
– porque pressuporia que ser humano
se limita a ser viver a tal “vida vulgar” (e é defensável que o é na maior parte do tempo).
Mas, no
diálogo referido, Alec Guiness (o Crown
Prince do filme) não diz que o cisne, no fundo e em privado (nomeadamente
entre os seus ou na forma como ele e a sua Princess
sempre partilhariam experiências como aquelas que nos foram dadas ver no filme),
não seja um ganso – que “canta”,
desajeitado, em privado e na experiência da morte, mas não em público enquanto cisne.
O drama da falecida princesa [Diana] de
Gales foi que o sacrifício parecia
não ser assumido e o que a realeza não comporta, precisamente, é uma posição
dúbia nesse campo – ou se está no lago ou se está na margem (a posição
demagógica de dizer-se que quer aproximar-se da margem ou mesmo estar na margem
como cisne é pretender que se é cisne
por natureza, em si mesmo; ora, como é claro no diálogo do filme, ninguém é
realmente mais que ganso – o
deslizar, a brancura e a majestade são atributos do lago, não do cisne
individual, e que se degradam na margem).
É então o lago (a majestade – diferente de pompa – da realeza) uma
hipocrisia? Pode ser se o sacrifício
não estiver interiorizado pelos protagonistas, tornando-se assim vulneráveis ao
chamamento e à adulação das margens; a educação dos príncipes e infantes
deveria sempre orientá-los (e julgo que em geral orienta) para uma consciência
aguda da natureza da sua condição e funções, devendo eles optar solenemente pela
margem ou pelo lago.
Resta outra questão: é necessário à instituição monárquica
este paradigma do cisne e do lago (que não foi sempre o seu)? A minha convicção
pessoal é que esse paradigma (diferente do do rei pastor, do rei guerreiro
ou do rei déspota iluminado) é uma
recriação (ou reinvenção) histórica da instituição que a adaptou a uma função
constitucional moderadora e de partilha da soberania e que a preserva melhor do
desgaste quotidiano. Criou também, dentro do poder político constituído, um
género de reserva humana que transporta um importante capital cultural familiar
e que tem com a opinião pública uma relação mediada pela sua estrutura
simbólica que, pela sua continuidade, tem uma oportunidade única de
aperfeiçoar-se por constante reelaboração. Isso permite-lhe corrigir
permanentemente a sua relação com a opinião pública e, nela, fortalecer a base
de mútua confiança que só na realeza é, em alto grau, simultaneamente política
e humana.
Uma última questão, bem importante, é a de algumas pessoas acharem
que a vida privada do monarca e dos seus familiares deve ser de algum modo
“exemplar”; aqui há que desfazer este terrível mal-entendido, de que se servem
– não sem tremenda hipocrisia – muitos anti-monárquicos: ninguém deve saber da
vida privada do monarca e dos seus familiares e muito menos se deve cultivar a
ideia da “família real” como família-modelo seja do que for.
Essa rigorosa
privacidade é, aliás, condição do que aqui escrevi acerca do lago em que se move a instituição: essa
majestade é eminentemente política e simbólica (entre a realeza e os
súbditos) e não tem nenhum carácter de ideal comportamental privado. É evidente
que podemos preferir príncipes virtuosos – e muitos sê-lo-ão –, mas é absurdo
exigir que o sejam necessariamente; isso seria um peso que nenhuma instituição
aguentaria...
[Com o título Cisnes que são
gansos, ou a condição da realeza, esta nota foi publicada na revista Real n.º 49-50 (Nov. 2001-Nov. 2002), p.
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