JONAS E JÓNATAS [Texto escrito em 22.02.2002 para o site da Causa Liberal]
«Como caíram os heróis no meio do combate?/ Jónatas, a tua morte dilacerou-me o coração...» (2Samuel 1:25)
O embaixador de Portugal em Luanda comentou a morte
anunciada de Jonas Malheiro Savimbi com o desejo de que, agora, os resistentes
da UNITA entreguem as armas e se integrem na "vida normal" de Angola.
O senhor embaixador deveria ser chamado ao Parlamento para explicar ao País que
"vida normal" há em Angola e, já agora também, por que razão um alto
funcionário do Estado português toma partido, desta forma pública, num conflito
interno de Angola... Em plenos anos 80, ainda estudante do liceu, vi uma
reportagem televisiva sobre a UNITA e, nela, Savimbi dirigia-se a um grupo de
apoiantes; dizia-lhes qualquer coisa deste género: "querem-vos obrigar a
comprar tudo nos armazéns do povo e lá não tendes nada para comprar; nós
queremos que possais voltar a comprar na loja do sr. X ou do sr. Y, que têm o
que procurais e em quem vós confiais...". Escusado será dizer que me
tornei admirador de Savimbi e via nele um dos combatentes pela liberdade
naquele tempo de Guerra Fria, um dos resistentes ao expansionismo comunista,
sobretudo numa terra a que me ligam memórias familiares e de infância. Admirava
nele aquela capacidade anfíbia de ser guerrilheiro envergando um camuflado e
ser um político cordato e bem falante quando dava entrevistas; mostrava, acima
de tudo, ser inteligente, patriota e suficientemente pragmático nas alianças
que fazia (explicava que não era pró-americano nem pró-apartheid, simplesmente
que precisava dos apoios deles para sobreviver; e, embora sempre tivesse
acreditado num futuro de Angola com os Portugueses - ao contrário de outros -
irritava por cá muita gente distraída quando falava, com razão e desassombro,
da vergonhosa conivência portuguesa com a ditadura do MPLA). Nunca pensei que
fosse um líder imaculado, coisa que sei não existir, nem deixei de estremecer
quando eram feitas revelações sobre determinadas acções dos seus homens. O que
eu me perguntava era: se não vivesses no conforto e na paz em que te é dado
viver, se estivesses numa sociedade daquelas, como te comportarias? que
escolhas farias? É fácil achar, num apartamento em Cascais, que a resistência
armada dele não tinha sentido e que se deveria resistir com sensatez e
civilidade à corrupção reinante em Angola, à prepotência dos senhores do MPLA,
à venda a peso de todos os recursos do país para enriquecimento particular, de
um modo que nenhum colonizador do passado julgou sequer possível. Pensava ainda
outra coisa: Savimbi, tal como Holden Roberto (o líder terrorista de 61, por
quem não tenho qualquer simpatia), foi apeado da partilha do poder prevista nos
acordos de Alvor de 1975 por um MPLA que quis ficar sozinho em Luanda
(totalmente sozinho não, só com russos e cubanos...); mas ao contrário do
outro, não foi para um exílio dourado em Paris, preferiu ficar em Angola a
lutar por aquilo que julgava pertencer-lhe. Desde então tornou-se um
irrefutável símbolo de patriotismo e de coragem pessoal a abater, que jamais
seria tolerado por um MPLA que era cada vez mais o oposto dessa cultura de
sacrifício e de resistência. O mundo depois mudou e quiseram à pressa acabar
com a Guerra Fria em Angola, pensando que umas eleições dariam magicamente
lugar a uma sociedade pacificada e livre dos hábitos de arbitrariedade e
desvario alimentados pela guerra civil. Mas as coisas correram previsivelmente
mal e quiseram-nos então fazer acreditar que Savimbi era o responsável pela
continuação da guerra em Angola: um alegado mau perder numas eleições
apressadas, prematuras e duvidosas teria sido a causa de tudo... O massacre dos
dirigentes da UNITA em Luanda nessa época tornou-se um pequeno pormenor que não
poderia dar razão a Savimbi para desconfiar das intenções desse grande, democrático
e integríssimo político que é José Eduardo dos Santos! Este teve a sorte de ver
terminar a Guerra Fria e poder esperar que Washington se desinteressasse da
causa de Savimbi, ao mesmo tempo que Mobutu e a África do Sul deixavam de lhe
valer... Mesmo assim, Savimbi resistiu, abandonado por todos e tornado num
responsável cómodo pela "inexplicável" podridão moral e económica da
sociedade angolana, impedida por ele de ser convenientemente governada pelos
crioulos do MPLA. Há dias, integrado numa coluna com os seus guerrilheiros,
Savimbi foi surpreendido e liquidado por soldados do exército
"regular"; houve festejos "espontâneos" organizados pela
paródia de governo que existe em Angola e, sobre o cadáver ainda quente de
Savimbi, algumas luminárias saíram a terreiro falando nas possibilidades
abertas à paz. Que Deus lhes perdoe e perdoe também a Savimbi todos os seus
pecados. E a mim que me perdoe este sentimento, que não consigo reprimir no meu
espírito: que Jonas Malheiro Savimbi morreu como um herói...!