domingo, junho 28, 2020
Maddie merece que se desenterre o relatório intercalar de 2007
Até melhor prova, o caso do "desaparecimento" da menina Madeleine McCann na Praia da Luz, Algarve (então com 4 anos quase feitos), em 3 de maio de 2007, foi resolvido pela Polícia Judiciária no relatório intercalar (porque formalmente não definitivo) realizado quatro meses depois. Nada de substancial foi descoberto desde então além dos factos apurados naquela investigação oficial.
Por isso, o que deveria ser investigado, desde então, nomeadamente pela imprensa, não é o "desaparecimento" da menina. É a falta de vontade de prosseguir a investigação no sentido original que ela tomou e que produziu uma série consistente de evidências. Deveria ser investigada a insistência das autoridades britânicas, desde a primeira hora, na "tese" do rapto (aderindo a uma campanha nesse sentido lançada pelos próprios pais da menina menos de 24 horas depois), ignorando os resultados da investigação da PJ portuguesa (o que tem incluído um desfile de "suspeitos" de rapto ao longo dos anos, de que - agora com a entrada em cena da polícia alemã no caso - Christian Brueckner é o mais recente); deveria ser investigada a razão de as autoridades portuguesas terem desistido do caso após a picardia com a polícia britânica (o inspetor Gonçalo Amaral foi afastado da investigação e o procurador-geral Pinto Monteiro viria a mandar arquivar o caso a 21.7.2008, numa decisão puramente discricionária); deveria ser investigada a não colaboração dos pais da menina com a investigação portuguesa (nomeadamente, a recusa, conjunta com a dos amigos com que estavam naquela noite, de participarem numa reconstituição); deveria ser investigada a razão de os pais terem (aparentemente em colaboração com as autoridades britânicas) sonegado à investigação portuguesa a história clínica de Madeleine (relevante pelo coloboma que tinha no seu olho direito e pelo hábito dos pais de a sedarem e aos irmãos para dormirem); etc., etc. [Ver mais aqui.] Sem acusação pública, o caso "morreu" em Portugal, mas é bom lembrar que os tribunais portugueses -- naquilo em que puderam pronunciar-se -- estabeleceram uma orientação clara e promissora (nomeadamente a sentença de fevereiro de 2017 do Supremo Tribunal de Justiça, confirmando a decisão da Relação de Lisboa em 2010 do direito de G. Amaral publicar o seu livro A Verdade da Mentira, e que juntou no acórdão a constatação formal de que o arquivamento não equivalia a uma ilibação dos pais da menina no caso).
É difícil alguém minimamente inteligente, e informado sobre este caso, ignorar que o ex-inspetor Gonçalo Amaral apresenta factos muito mais consistentes do que as especulações alternativas. E alguém nessas condições achará também estranha a pouca curiosidade (já não digo das polícias e do ministério público, mas dos media) pela relação de proximidade, à época, dos pais da menina com o então primeiro-ministro britânico Gordon Brown. É que, de um lado, temos uma investigação real que produziu uma série consistente de evidências; e, do outro, sem continuidade com aquela investigação, temos uma "tese" de rapto não fundamentada e, a partir desta, uma procura de "suspeitos", bem como um conjunto de comportamentos (esses, sim, suspeitos), nunca explicados, de pessoas próximas da menina (e presentes no local do desaparecimento) e de agentes da autoridade do Estado com escolhas ainda mais difíceis de explicar pelo senso comum.
O desaparecimento da menina foi uma tragédia e, como diz Gonçalo Amaral, treze anos depois, estranhamente, sabe-se tão pouco sobre a própria vítima. Mas a verdadeira tragédia, à medida que o tempo passa, é perceber como este caso continua envolvido em tanta mistificação. A missão das autoridades policiais, e do Estado, é proteger a vítima. E isso inclui investigar até ao fim a verdade sobre o seu desaparecimento. De contrário, Madeleine será mais uma pessoa "anónima" (e, por sinal, tão frágil à época) tragada pelas conveniências dos mais fortes - sejam estes quem forem.