Ricardo Noronha – “A Banca ao Serviço do Povo”: Política e Economia durante o PREC (1974-1975), Lisboa: Imprensa de História Contemporânea, 2018, 356 p. [ISBN 978-989-98388-8-8]
[Publicado em Ler História, n.º 76 (2020), pp. 222-226.] Para versão em PDF, abrir aqui.
Julgo não faltar muito ao rigor se disser que Ricardo Noronha defende que o 25 de Abril ocorre com uma grave crise económica e bancária já instalada e que a revolução não a teria agravado. No entanto, parece claro que o súbito acentuar da pressão altista dos salários após abril de 1974 teve um efeito simétrico de acentuação da crise económica por ser simultâneo de uma fase de contração induzida do exterior e que requeria ajustamentos opostos aos que se deram. Tanto que, se a crise não se agravou na sequência do PREC, foi porque um ajustamento teve lugar logo no início de 1976, nomeadamente corrigindo a subida de cerca de 22% dos salários reais verificada em 1974-75, viabilizando assim muitas empresas privadas e sustendo a subida do desemprego (cf. José Silva Lopes in F. Rosas, coord., Portugal e a Transição para a Democracia, Lisboa: Colibri, 1998, p. 178). Pelo que poderá ser defensável concluir que, com aquela escalada salarial, associada ao controle dos preços e ao reforço do protecionismo, o PREC terá atrasado o ajustamento do tecido empresarial, dos rendimentos e do mercado laboral aos efeitos em Portugal da crise mundial. E não é impossível que, sem a rigidez introduzida pelos acontecimentos revolucionários, a quebra de -4,3% do PIB em 1975 pudesse ter ficado mais próxima da média da OCDE de -0,4% (já que Portugal vinha de anos com crescimento superior ao da OCDE, verificado ainda em 1974). O mesmo se pode dizer do crescimento da inflação, da despesa pública, do endividamento externo do Estado e da erosão dos ativos do Banco de Portugal, todos acelerando para financiar o custo do adiamento do ajustamento e da inflexibilidade reforçada no PREC.
Continuar a adiar aquele ajustamento, em nome de uma política de redistribuição do rendimento ou de uma nova “governamentalidade socialista”, não era sustentável, como é claro no que o próprio Mário Murteira disse em maio de 1975 à assembleia do MFA, assumindo ser necessário sacrificar “reivindicações salariais e outras” (p. 212). No fundo, a economia estatizada do pós-11 de Março teve de fazer (mais tarde e em condições agravadas) o mesmo ajustamento que a lógica do mercado pedia. Pelo défice de ponderação destes condicionalismos económicos, a historiografia com simpatia pelo socialismo revolucionário, e que se centra na análise puramente política do desfecho do PREC, acaba sempre por aproximar-se de explicações conspirativas mais ou menos assumidas e projetadas nos adversários de tal via (do meu ponto de vista, é isso que explica ainda hoje o processo de intenções marcadamente ideológico na leitura das movimentações dos apoiantes civis e militares de Spínola em torno do 28 de Setembro, os quais tinham, em boa medida, preocupações relativas ao que se estava a passar em termos económicos). Mas, quanto a este quadro historiográfico, é de elementar justiça reconhecer que Ricardo Noronha incorporou no seu estudo não só elementos económicos necessários a uma leitura mais crítica dos condicionalismos da “via socialista” (alguns relevantes, por exemplo do arquivo histórico do Ministério das Finanças e de relatórios do Banco de Portugal), mas também o contraditório empírico patente na exposição de opiniões publicadas na época por personalidades relevantes e críticas do curso da política económica (Alfredo de Sousa no Expresso, nomeadamente). No entanto, há no livro alguma confusão (p. 53) nos valores avançados do índice de preços ao consumidor (vg. “inflação”) que alguma da literatura referida esclarece. Já em relação aos dados sobre os resultados financeiros da gestão privada da banca antes da nacionalização (não incluindo aqui o caso bem conhecido do grupo de Jorge de Brito), conviria tratar de modo mais sistemático e crítico as fontes da época utilizadas.
Quanto às nacionalizações, fulcrais neste livro, o autor pretende claramente legitimá-las à luz do contexto económico e político, bem como defender de certa forma a sua “normalidade” na época. Nesse sentido não está propriamente muito afastado do mainstream historiográfico e até memorialístico de alguns protagonistas. Invoca um “apoio tão alargado e duradouro” no meio político dos anos 70 que explicaria a sua consagração constitucional, mas não esclarece diferenças de perceção (e respetivos “tempos”) entre os atores mobilizados da cena político-militar e entre estes e a (mais larga) opinião pública – além de que a solução adotada na sequência do 11 de Março não fazia então o pleno daqueles atores (veja-se o teor do “Plano Melo Antunes”, que não propunha essa opção). Quanto à “normalidade” da “economia mista” portuguesa saída da revolução, importaria talvez matizá-la. O Estado português (incluindo administrações e empresas públicas), segundo dados de João Confraria (na História Económica de Portugal 1700-2000, vol. 3, p. 406), representaria em 1976 cerca de 45% da formação bruta de capital fixo na economia (contra 19% em França em 1975 e 30% em Itália em 1974) e – importante diferença, reveladora de ineficiência pesada ao País – 24% do valor acrescentado (em França e Itália, respetivamente, 17% e 26%); digamos que não são valores propriamente equivalentes e, tendo em consideração que nenhum país ocidental tinha quase integralmente nacionalizada toda a banca (e seguros) – para não falar da grande indústria –, a “economia mista” portuguesa saída da revolução não estava exatamente dentro da “normalidade” do Mercado Comum da época.
Sobre a justificação “realista” das nacionalizações recorrendo à nebulosa constatação de que “o poder caiu na rua” (com “conflituosidade social” e “radicalização política”) e de que elas foram um meio político de apaziguamento, trata-se de um argumento inevitabilista que realmente não explica os desfechos históricos, como ficou patente na crua “contagem de espingardas” (até ao fim) no 25 de Novembro (e também, já agora, no 11 de Março). O mesmo é dizer que a análise histórica do PREC não pode perder de vista o apuramento do poder fático detido pelas fações preponderantes em cada conjuntura e que isso passa por reconstituir não só os mecanismos organizacionais de mobilização da “rua” (porque os houve), como de angariação de apoios nas Forças Armadas, nas empresas e no aparelho de Estado, identificando as principais forças organizadas em ação nessa disputa, que não foi – e não é nunca – indiferente às soluções momentaneamente vitoriosas. Não ter esta matriz bem clara (preferindo-a a uma contraposição da “espontaneidade” da luta e da reivindicação revolucionárias vs. a reposição da “ordem coerciva” pelos seus adversários) leva o autor a secundarizar completamente, do meu ponto de vista, a estratégia política do PCP como chave para entender não só a ocorrência das nacionalizações no tempo e na escala em que se deram, como todo o desenrolar do PREC. Aliás, o Sindicato dos Empregados Bancários de Lisboa (depois, do Sul e Ilhas), que está no centro desta “trama”, é um ponto de observação privilegiada da ascensão e queda da influência do PCP na contestação sindical, de meados da década de 60 ao fim do PREC (desde a criação das grandes expetativas reivindicativas em plena era de crescimento até à tentativa de enquadrá-las, já na revolução, num socialismo de Estado).
Concretizando: teria sido interessante que algum do espaço dedicado pelo autor à exposição do argumentário dos delegados sindicais contra aqueles que elegiam como seus adversários fosse utilizado para esclarecer a estrutura de poder dentro dos sindicatos de bancários (e as suas ramificações para a Intersindical e o PCP), fundamental para compreender o modus faciendi e a racionalidade política da interferência daqueles delegados na administração dos bancos ou nos saneamentos e no esforço evidente de alinhamento político dos restantes funcionários (pp. 233-236) – tanto mais que a conflituosidade interna foi patente mais tarde nas eleições de 31 de agosto de 1975, em que os próprios bancários afastaram as lideranças que operacionalizaram essas articulações políticas. Do mesmo modo, a “cooperação” da Intersindical com o Ministério do Trabalho (p. 214) deveria ser mais investigada, tal como a relação dos delegados sindicais nos bancos com o Serviço de Coordenação da Atividade Bancária, no âmbito do Banco de Portugal e responsável pelas decisões relativas à concessão de crédito (pp. 236-247). Estas concessões de crédito (aliás consideradas, por um lado, de “natureza precária” e, por outro, transformadoras das empresas ocupadas e/ou intervencionadas em “recuperadas” antes da sua devolução aos seus proprietários logo após o PREC) seriam um indicador fundamental da perceção pública da nacionalização da banca, tendo em consideração o que o autor revela dos inúmeros protestos por o mesmo crédito ser negado a pequenas e médias empresas ainda com gestão privada cujas atividades e manutenção de emprego subsistiam (p. 289ss). Haveria aqui uma atividade predatória sobre o crédito?
Também não seria indiferente ao apuramento da “economia política” do processo de nacionalização da banca aferir até que ponto a disponibilização de crédito a empresas (ainda) não nacionalizadas e geridas por comissões de trabalhadores e delegados sindicais (pp. 226-231) criava incentivos à sua atração a uma estatização funcional (através do financiamento direto de salários e despesas correntes pelo Estado ou por empréstimos por ele avalizados) – gerando-se, assim, uma lógica crua de “emprego político” sem tradução no valor acrescentado (aliás, de difícil mensuração sem o mecanismo de preços a funcionar) e que, objetivamente, criava um privilégio administrativo em relação àqueles que se sustentavam pelo seu trabalho fora deste enquadramento institucional. Só mais duas achegas: em articulação com o Ministério da Agricultura, estes incentivos funcionaram também no caso das unidades coletivas de produção (assunto abordado nas pp. 221-225) e, tal como no caso das empresas antes referidas, traziam-nas para a órbita do modelo de cogestão (estatal e sindical) fomentado pelo PCP e pela Intersindical e que para ambos era instrumental na criação de uma ampla clientela sindical e eleitoral no assalariado agrícola, industrial e dos serviços. E este assunto, conduzindo-nos ao fulcro do equilíbrio de forças e da direção dos acontecimentos no PREC – com consequências na paisagem política do País no período constitucional –, mostra bem que Ricardo Noronha identificou e tratou neste livro um ponto nevrálgico para o esclarecimento da história da “revolução dos cravos”.