Circular dentro da cidade, a possibilidade de o fazer, é um dos aspetos fundamentais da vida urbana. Sem essa possibilidade, a cidade morre ou fica gravemente doente. E, claro, quem circula são as pessoas. Dito assim, parece demasiado obvio. Mas não é.
Quando uma determinada rua fica intransitável (ou quase), por exemplo durante obras demoradas no asfalto, o comércio ressente-se porque as pessoas são afastadas daquela artéria: se uma tal situação for mais que provisória, os males causados também o serão.
Muitas vezes, quando se pensa em “circulação” pensa-se em veículos. Estes são fundamentais – desde sempre para a deslocação de bens dentro do espaço urbano, mas também, em termos históricos mais recentes, para a deslocação de pessoas, dada a crescente extensão do espaço urbano e a multiplicação de deslocações diárias no seu seio e a necessidade de maior velocidade para esse efeito. No entanto, como já foi sugerido anteriormente, a deslocação é ainda e sempre importante à escala do peão, daquele que se move a pé nas artérias da cidade.
Mesmo com a motorização da mobilidade, as pessoas têm de fazer percursos a pé entre a saída dos veículos (públicos ou privados) e o destino da sua viagem urbana; e em quase todas as artérias há deslocações diárias sem utilização de veículos, nomeadamente de domicílios ou locais de trabalho para lojas, cafés, farmácias, supermercados, etc. A qualidade dos passeios como vias pedonais é extremamente importante para esse efeito e terá de merecer atenção neste lugar, mas não é o objeto direto do presente comentário. O cruzamento das vias de circulação dos peões com as vias de circulação dos veículos é que nos ocupa agora. Esse cruzamento faz-se sempre que o trajeto do peão é interrompido, “intercetado”, pelas vias destinadas aos veículos.
O peão tem de poder circular em qualquer artéria da cidade – por uma razão obvia: é ele que tem de entrar nos edifícios que se estendem e sucedem ao longo das artérias. Há muitos casos em que é possível entrar num edifício dentro de um veículo, mas já é excecional que essa seja a única forma de lá entrar. Dada essa universalidade da necessidade de circulação do peão, os seus percursos pré-definidos é que são intercetados pelos dos veículos e não vice-versa.
No cruzamento de peões e veículos há ainda outro factor bastante obvio: o peão é a parte mais vulnerável em caso de colisão. Falar-se do “perigo” que os peões representam em certas situações para a condução de veículos não pode obscurecer aquele factor. Nas grandes e pequenas artérias urbanas foi necessário criar rotinas “rotativas” de circulação de peões e veículos, interrompendo-se alternadamente a circulação de uns para passarem os outros (recorrendo-se às “zebras” no asfalto e aos semáforos luminosos). Isto indicia uma conceção da circulação urbana de uma certa paridade entre peões e veículos, embora, forçosamente, com a consciência de que o peão é fisicamente mais vulnerável.
Mas o “estatuto” do peão na circulação não se caracteriza apenas por esta vulnerabilidade; insisto: a sua circulação é que é universal e, em termos de trajetos pré-definidos, está em todo o lado, forçosamente. (As vias rápidas para veículos dentro da cidade, sem interceções de vias pedonais, são uma exceção e configuram outra realidade.)
Apesar da mudança que a (omni)presença de veículos motorizados introduziu no ecossistema urbano, o peão deveria ser visto como o elemento basilar da circulação dentro da cidade. Outras formas de circulação são necessárias e ganharam o seu espaço e legitimidade, mas nenhum deles subsitui ou tem sentido sem a possibilidade de circular a pé (ou numa cadeira de rodas ou num carrinho de bebé, situações em que os seus ocupantes são claramente peões, pois circulam pelas vias pedonais).
Voltando ao início deste comentário – e para reforçar a explicação da “primazia” do peão enunciada no título –, imagine-se ou procure-se casos reais de artérias onde não há vias pedonais ou onde estas sejam virtualmente inexistentes. É algo que, infelizmente, acontece muito em vias suburbanas. Dentro da cidade, isso implica claramente que essa via ou artéria não é realmente uma rua ou avenida, mas um género de “via rápida” e dificilmente se encontrará aí habitações com portas de acesso viradas para a rua, lojas abertas para a rua ou o ambiente “humanizado” decorrente de se observarem pessoas a andar ou rostos para fitar. Trata-se de uma artéria sem vida urbana e em que, de certo modo, a morte da cidade – ou a fuga da cidade ou a procura da saída da cidade – parece pairar.
O cenário que acabei de descrever é muito diferente do de uma artéria em que passamos à noite, quase completamente sem peões a circular, mas com passeios que dão acesso a lojas e habitações. Esta última é “cidade”; a anterior é só uma via de acesso à “cidade” ou uma “interrupção” da “cidade”.
A "primazia" do peão também reside nisto: é ele realmente quem "faz" a cidade – talvez até porque, historicamente, as cidades nasceram com ele e para ele. E essa dimensão, apesar do "ruído" que a circulação motorizada (que não é má em si mesma) pode introduzir na nossa visão da cidade, não se alterou nem se alterará.