segunda-feira, agosto 28, 2017

PO:LIS:BOA (IV)

A menorização do peão (penosamente) explicada

Basta circular em grande parte das ruas de Lisboa para se constatar que os passeios, enquanto vias pedonais, demonstram a menorização do peão na vida urbana e na conceção de cidade (quase) dominante.

Uma grande parte dos passeios tem obstáculos colocados pelos próprios planeadores e gestores urbanos (ou pelos executantes das suas políticas e opções): sinais de trânsito, postes de iluminação pública, caixotes de lixo fixos, etc. O peão, para circular, tem de se desviar destes obstáculos e, muitas vezes, um carrinho de bebé ou uma cadeira de rodas fazem o desvio já com uma roda de fora do passeio. O à-vontade com que se interrompem estas vias pedonais por causa de obras em edifícios ou por abusos de estacionamento dizem muito, respetivamente, da permissividade demasiado natural das autoridades municipais e da cultura que se instalou entre grande parte dos munícipes.

As obras recentemente feitas nalgumas artérias da cidade, por exemplo a avenida da República, exibem às vezes passeios largos que nos poderiam fazer acreditar numa radical mudança de conceções. Tenho sobre isto as maiores dúvidas.

Os passeios, enquanto vias pedonais, não têm de ser necessariamente muito largos; se neles se puderem cruzar sem apertões dois carrinhos de bebé ou duas cadeiras de rodas, é suficiente. Certamente que é bom haver artérias com passeios mais largos, sobretudo se nestes existirem também árvores. Mas o passeio serve sobretudo para circular (algo que, aliás, alguns peões ocasionais parecem também não compreender bem, circulando pelo meio dos mesmos ou aos zigue-zagues ou plantando-se neles em amenas cavaqueiras sem preocupação com quem passa e não tem de pedir licença para o fazer).

Nos novos passeios da avenida da República parece haver uma ideia desviada de que aquelas vias vão servir para as pessoas estarem nelas e não para passarem nelas – concebida provavelmente por alguém que não está muito habituado a frequentar os espaços urbanos como peão. A utilidade daquela largura é discutível para a mera circulação, pelo que se colocaram bancos de jardim na calçada, como que justificando a opção. Mas o que é que alguém vai fazer ali sentado? Vai estar na posição desconfortável de sentir pessoas a desviarem-se, a passarem-lhe por trás ou a inalar os gases das viaturas de passagem?

À esquerda, uma esplanada natural (em Atenas); à direita, uma esplanada na imaginação delirante dos planeadores da "nova" praça Duque de Saldanha (em Lisboa e que serviu de modelo à Av. da República).






Os passeios podem ser lugares para estar se alguns estabelecimentos comerciais os usarem parcialmente como esplanadas. Mas, para provar a minha tese do planeador não pedonal das obras recentes, basta ver a forma como as antigas esplanadas da avenida da República foram transformadas coercivamente em áreas desconfortáveis e artificiais. Uma esplanada confortável e “natural” tem de estar junto à parede e porta(s) do estabelecimento a que pertence, por várias razões: facilita o serviço dos empregados de mesa numa parcela do passeio que não interfere com a parte do mesmo utilizada como via de circulação, dá a sensação de resguardo a quem está sentado (em relação ao movimento vizinho de peões) e também a sensação de estar perto do serviço do estabelecimento em que escolheu estar.

Pois bem, os planeadores e/ou gestores urbanos da nova avenida da República entenderam que junto às portas dos edifícios deveria haver uma faixa de cimento alternativa à calçada e que, sendo aquela destinada à circulação antiderrapante de peões, as esplanadas tinham de “descolar” dos respetivos estabelecimentos e ir para o meio do passeio. Resultado: quem nelas se senta passa a estar numa “ilha” artificial, com pessoas a passarem dos dois lados (na verdade, a desviarem-se ou, nalguns casos, a passarem entre mesas!) e os empregados de mesa a terem de atravessar a via de circulação de peões entre o estabelecimento e a esplanada. E o contacto visual entre os empregados e os clientes fica facilitadíssimo, claro! Alguém no seu perfeito juízo, e que frequente esplanadas urbanas, planearia uma coisa destas?

Na mesma avenida, a forma como foram plantadas ciclovias (às quais voltaremos em futuras crónicas, dada a sua importância) é eloquente da menorização mais ou menos consciente dos peões. As novas ciclovias são paralelas às vias de circulação dos veículos e, como estas, cruzam-se com as “zebras” ou “passadeiras” para peões. Mas se os automobilistas têm uma sinalização luminosa articulada com a destinada aos peões, já os ciclistas não têm e não é nada claro que devam guiar-se pela destinada aos automobilistas ou sequer que a consigam ver. Além disto, em grande parte das “passadeiras”, a ciclovia não deixa ao peão qualquer área para depois dela se colocar junto à estrada; aliás, nada na sinalética pintada no chão indica ao peão onde deve aguardar pelo sinal verde para si nem ao ciclista que a ciclovia é “cortada” por uma via pedonal.

O peão, para atravessar a meio da avenida, tem de se preparar para uma aventura: passar de seguida uma via automóvel lateral, uma ciclovia de dois sentidos, uma estrada com seis faixas de rodagem mais uma via automóvel lateral antes de chegar ao passeio do outro lado. Nesse percurso, tem de estar atento ao trânsito automóvel e ao trânsito de bicicletas (este último praticado por ciclistas ainda pouco conscientes de que têm de circular com a mesma disciplina e precaução para com os peões que as regras impõem ao trânsito automóvel).

Av. da República: a seta mostra o percurso de um peão para atravessar a avenida; a linha oval mostra a nesga de passeio entre a ciclovia e a estrada. Será que o peão deve aguardar antes da ciclovia? Com que segurança?





















Os novos grandes passeios da Av. da República, inseridos no complexo de vias de circulação de todo aquele espaço, estão, pois, longe de significar uma conceção urbana respeitadora dos peões. Aliás, o alargamento desnecessário dos passeios até incentivou a utilização selvagem dos mesmos por ciclistas pouco impressionados com os percursos rígidos das ciclovias e ainda e sempre pouco conscientes das regras que os obrigam a circular pelas faixas de rodagem (em alternativa às ciclovias) e não por vias pedonais (exclusivas dos peões). De um ponto de vista pedonal, é difícil não ver em muitos ciclistas uma atitude de incómodo com os peões que em tudo se assemelha à de há muito vista em grande número de automobilistas.

De certa forma, as ciclovias recentes (que não são um mal em si mesmas e às quais voltaremos) são uma afirmação pública do triunfo do lobby urbano dos ciclistas, mais do que a afirmação de uma nova conceção equilibrada do espaço urbano e da segurança viária. Já existia o lobby organizado dos automobilistas. Muito provavelmente faz falta um lobby pedonal. Os peões continuam menorizados na "nova" Av. da República.