Basta
circular em grande parte das ruas de Lisboa para se constatar que os passeios,
enquanto vias pedonais, demonstram a menorização do peão na vida urbana e na
conceção de cidade (quase) dominante.
Uma
grande parte dos passeios tem obstáculos colocados pelos próprios planeadores e
gestores urbanos (ou pelos executantes das suas políticas e opções): sinais de
trânsito, postes de iluminação pública, caixotes de lixo fixos, etc. O peão,
para circular, tem de se desviar destes obstáculos e, muitas vezes, um carrinho
de bebé ou uma cadeira de rodas fazem o desvio já com uma roda de fora do
passeio. O à-vontade com que se interrompem estas vias pedonais por causa de
obras em edifícios ou por abusos de estacionamento dizem muito, respetivamente,
da permissividade demasiado natural das autoridades municipais e da cultura que
se instalou entre grande parte dos munícipes.
As obras
recentemente feitas nalgumas artérias da cidade, por exemplo a avenida da
República, exibem às vezes passeios largos que nos poderiam fazer acreditar
numa radical mudança de conceções. Tenho sobre isto as maiores dúvidas.
Os
passeios, enquanto vias pedonais, não têm de ser necessariamente muito largos;
se neles se puderem cruzar sem apertões dois carrinhos de bebé ou duas cadeiras
de rodas, é suficiente. Certamente que é bom haver artérias com passeios mais
largos, sobretudo se nestes existirem também árvores. Mas o passeio serve
sobretudo para circular (algo que, aliás, alguns peões ocasionais parecem também
não compreender bem, circulando pelo meio dos mesmos ou aos zigue-zagues ou
plantando-se neles em amenas cavaqueiras sem preocupação com quem passa e não
tem de pedir licença para o fazer).
Nos novos
passeios da avenida da República parece haver uma ideia desviada de que aquelas
vias vão servir para as pessoas estarem
nelas e não para passarem nelas –
concebida provavelmente por alguém que não está muito habituado a frequentar os
espaços urbanos como peão. A utilidade daquela largura é discutível para a mera
circulação, pelo que se colocaram bancos de jardim na calçada, como que
justificando a opção. Mas o que é que alguém vai fazer ali sentado? Vai estar
na posição desconfortável de sentir pessoas a desviarem-se, a passarem-lhe por
trás ou a inalar os gases das viaturas de passagem?
Os
passeios podem ser lugares para estar
se alguns estabelecimentos comerciais os usarem parcialmente como esplanadas.
Mas, para provar a minha tese do planeador não pedonal das obras recentes,
basta ver a forma como as antigas esplanadas da avenida da República foram
transformadas coercivamente em áreas desconfortáveis e artificiais. Uma
esplanada confortável e “natural” tem de estar junto à parede e porta(s) do
estabelecimento a que pertence, por várias razões: facilita o serviço dos
empregados de mesa numa parcela do passeio que não interfere com a parte do
mesmo utilizada como via de circulação, dá a sensação de resguardo a quem está
sentado (em relação ao movimento vizinho de peões) e também a sensação de estar
perto do serviço do estabelecimento em que escolheu estar.
Pois bem,
os planeadores e/ou gestores urbanos da nova avenida da República entenderam
que junto às portas dos edifícios deveria haver uma faixa de cimento
alternativa à calçada e que, sendo aquela destinada à circulação antiderrapante
de peões, as esplanadas tinham de “descolar” dos respetivos estabelecimentos e
ir para o meio do passeio. Resultado: quem nelas se senta passa a estar numa
“ilha” artificial, com pessoas a passarem dos dois lados (na verdade, a
desviarem-se ou, nalguns casos, a passarem entre mesas!) e os empregados de
mesa a terem de atravessar a via de circulação de peões entre o estabelecimento
e a esplanada. E o contacto visual entre os empregados e os clientes fica
facilitadíssimo, claro! Alguém no seu perfeito juízo, e que frequente
esplanadas urbanas, planearia uma coisa destas?
Na mesma
avenida, a forma como foram plantadas ciclovias (às quais voltaremos em futuras
crónicas, dada a sua importância) é eloquente da menorização mais ou menos
consciente dos peões. As novas ciclovias são paralelas às vias de circulação
dos veículos e, como estas, cruzam-se com as “zebras” ou “passadeiras” para
peões. Mas se os automobilistas têm uma sinalização luminosa articulada com a
destinada aos peões, já os ciclistas não têm e não é nada claro que devam
guiar-se pela destinada aos automobilistas ou sequer que a consigam ver. Além
disto, em grande parte das “passadeiras”, a ciclovia não deixa ao peão qualquer
área para depois dela se colocar junto à estrada; aliás, nada na sinalética
pintada no chão indica ao peão onde deve aguardar pelo sinal verde para si nem
ao ciclista que a ciclovia é “cortada” por uma via pedonal.
O peão, para atravessar a meio da avenida, tem de se preparar para uma aventura: passar de seguida uma via automóvel lateral, uma ciclovia de dois sentidos, uma estrada com seis faixas de rodagem mais uma via automóvel lateral antes de chegar ao passeio do outro lado. Nesse percurso, tem de estar atento ao trânsito automóvel e ao trânsito de bicicletas (este último praticado por ciclistas ainda pouco conscientes de que têm de circular com a mesma disciplina e precaução para com os peões que as regras impõem ao trânsito automóvel).
O peão, para atravessar a meio da avenida, tem de se preparar para uma aventura: passar de seguida uma via automóvel lateral, uma ciclovia de dois sentidos, uma estrada com seis faixas de rodagem mais uma via automóvel lateral antes de chegar ao passeio do outro lado. Nesse percurso, tem de estar atento ao trânsito automóvel e ao trânsito de bicicletas (este último praticado por ciclistas ainda pouco conscientes de que têm de circular com a mesma disciplina e precaução para com os peões que as regras impõem ao trânsito automóvel).
Os novos grandes passeios da Av. da República, inseridos no complexo de vias de circulação de todo aquele espaço, estão, pois, longe de significar uma conceção urbana respeitadora dos peões. Aliás, o alargamento desnecessário dos passeios até incentivou a utilização selvagem dos mesmos por ciclistas pouco impressionados com os percursos rígidos das ciclovias e ainda e sempre pouco conscientes das regras que os obrigam a circular pelas faixas de rodagem (em alternativa às ciclovias) e não por vias pedonais (exclusivas dos peões). De um ponto de vista pedonal, é difícil não ver em muitos ciclistas uma atitude de incómodo com os peões que em tudo se assemelha à de há muito vista em grande número de automobilistas.
De certa forma, as ciclovias recentes (que não são um mal em si mesmas e às quais voltaremos) são uma afirmação pública do triunfo do lobby urbano dos ciclistas, mais do que a afirmação de uma nova conceção equilibrada do espaço urbano e da segurança viária. Já existia o lobby organizado dos automobilistas. Muito provavelmente faz falta um lobby pedonal. Os peões continuam menorizados na "nova" Av. da República.