segunda-feira, fevereiro 25, 2008

It's the lender of last resort, stupid!

J. P. Morgan e J. D. Rockefeller, heróis do estatismo financeiro.

Na sua linha de pedagogia económica para o grande público, na tradição da Escola Austríaca, o Mises Institute apresenta um documentário que mostra bem o divórcio entre os defensores sem compromissos do liberalismo económico (laissez faire) e o regime monetário e financeiro vigente nas "economias de mercado" actuais (ver a transcrição aqui). Num depoimento, Hans-Hermann Hoppe vai ao fundo da questão:

«The question is, however, whether it really is desirable to have such a thing as a lender of last resort. The correct position appears to me that every single bank should be responsible for its own debts and contractual obligations, and if banks through imprudent policy then go bankrupt, this should not be considered a bad thing, but in fact considered to be a magnificent thing, because bankruptcies or the danger of bankruptcies is precisely what makes banks adhere to sound policies.»

terça-feira, fevereiro 19, 2008

O Protestantismo em Portugal (IV): Bíblia, cultura e sensibilidades religiosas

Rev. Eduardo Moreira (1886-1980)

A Bíblia, os seus preceitos, a sua leitura e difusão, está associada ao esforço missionário do P. em Portugal desde a sua génese; quer Kalley, quer os três semeadores Pope, Stewart e Cassels começaram por patrocinar pequenos grupos de estudo bíblico que só depois se transformaram em congregações. Em 1884, os autores do primeiro livro litúrgico protestante português diziam ter «posto de parte o que nos pareceu mau e conservado e ampliado o que julgámos bom e bíblico» (Livro de Oração Comum, p. VII): a Bíblia era, na verdade, a cultura comum e o elemento diferenciador do meio para todos os protestantes no Portugal católico de Oitocentos. Opunha-se à prática religiosa devocional e sacramental dominante e, na visão protestante, era uma ligação aos primórdios do Cristianismo, à sua pureza e à sua verdade; evangelizar, fazer cristãos, era assim sinónimo de dar a conhecer a Bíblia. Daí que a história da presença em Portugal da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (S.B.B.E.) seja uma história de cooperação com as várias denominações protestantes na tarefa de «traduzir, imprimir e distribuir a Palavra de Deus»; instalada permanentemente em Portugal desde 1864 com uma agência em Lisboa, a S.B.B.E. usou as congregações protestantes como canais de desenvolvimento da sua missão, apoiando-as simultaneamente numa parte fundamental do trabalho evangelizador. Desde o início da segunda metade do século XIX, a S.B.B.E. distribuía no País Bíblias em Português impressas em Inglaterra [na verdade, desde 1864, impressas em Portugal] e baseadas quer na tradução clássica de João Ferreira de Almeida (Amsterdão, 1681) quer na do padre António Pereira de Figueiredo (a partir da Vulgata, Lisboa 1790); com a sua acção, aparece uma figura quase lendária do P. português, o “colporteur” (ou “colportor”, de forma aportuguesada): este corria o País ao serviço da S.B.B.E., levando Bíblias onde elas eram necessárias e, por vezes, enfrentando a hostilidade dos não-protestantes. Recentemente (1989), a agência da S.B.B.E. em Portugal transformou-se em Sociedade Bíblica de Portugal, com estatutos e direcção própria. A centralidade da Bíblia está bem patente nas primeiras tentativas feitas, entre os protestantes portugueses, de fundamentação teológica das suas concepções cristológicas e eclesiológicas; na Resposta à Instrução Pastoral do Excmo. Bispo do Porto D. Américo sobre o Protestantismo (Porto, 1879) de Guilherme Dias da Cunha (1844-1907), surge uma interessante defesa “evangélica” (isto é, abrangentemente protestante, não denominacional) da Salvação só pela fé, da autoridade das Escrituras sobre a tradição e dos dois únicos sacramentos considerados bíblicos (Baptismo e Ceia) a par de uma crítica, apoiada em referências bíblicas, do culto e das doutrinas católicas romanas. Em O que é a Missa (Lisboa, 1888), o mesmo autor, apoiado sobretudo na Epístola aos Hebreus, ataca a teologia sacrificial da missa e o sacerdócio clerical histórico, que considerava incompatíveis com os autênticos sacrifício e sacerdócio de Jesus Cristo; ambos os livros dão conta da preocupação central do P. português original de retorno à Bíblia como meio de reformar a vivência da fé cristã. O tom abrangente com que Dias da Cunha o fazia só era possível por as correntes espiritualistas mais radicais ainda não terem povoado o universo protestante português e por as questões mais polémicas como o acesso à Graça ou ao Dom da profecia não lhe merecerem a mesma atenção. Mas o potencial divisionista das velhas querelas entre as correntes protestantes ficou bem patente na discórdia entre Diogo Cassels e Joseph Charles Jones em 1888 quanto ao Baptismo de crianças e por aspersão e que originou a fundação, pelo segundo, de uma denominação especificamente Baptista em Portugal; o próprio Diogo Cassels rompera com o metodista Robert Moreton em 1880 por este último não aceitar a introdução de imagens nos templos através de vitrais e crucifixos, que considerava transgressora do preceito bíblico. No entanto, a falta de recursos e a presença hegemónica do adversário comum (a Igreja Romana) parece ter dissuadido o exacerbar das diferenças, assistindo-se, desde o início do P. português a uma multiplicação de caminhos que não excluiu a cooperação; a publicação, na década de 1890, de uma Bíblia Sagrada Ilustrada em fascículos (lançada por Herbert Cassels e a Sociedade Bíblica), com o apoio das várias denominações, foi exemplo disso. Da mesma forma, foi possível criar-se, numa base interdenominacional, uma série de instituições para-eclesiásticas desde o século XIX, como a União Cristã da Mocidade Portuguesa (fundada no Porto em 1894, estendida a Lisboa em 1898 e mais tarde designada Associação Cristã da Mocidade), cujas actividades especializadas para a juventude (incluindo as primeiras patrulhas de boy-scouts, a introdução no país de modalidades desportivas como o ping-pong e o basket-ball, a popularização do Esperanto e as visitas guiadas a bairros históricos) não seriam viáveis se restritas a uma denominação; estes mesmos factores explicam a natureza não-sectária de A Reforma, o primeiro periódico protestante português aparecido em 1877 (dirigido por Dias da Cunha), mesmo depois de se ter tornado «eco da Igreja Lusitana». Com O Evangelista (1892-1900), órgão dos Episcopalianos, a imprensa protestante atingiu um alto nível de qualidade onde está espelhada a actividade das denominações e as preocupações teológicas e sociais das suas cabeças pensantes; neste jornal colaborou, por exemplo, o erudito e heraldista (episcopaliano) major Guilherme Luís Santos Ferreira (1849-1931) que nele publicou a primeira parte da sua excelente obra A Bíblia em Portugal (Lisboa, 1906). A tendência desde então, dada a multiplicação denominacional, tem sido para a profusão de periódicos denominacionais de curta duração ou publicação irregular, sendo o Portugal Evangélico (1920), O Semeador Baptista (1926), a Revista Adventista (1938) e o órgão das Assembleias de Deus Novas de Alegria (1943) os mais antigos destes títulos ainda hoje existentes; o primeiro, publicado por Presbiterianos e Metodistas, é um caso de colaboração interdenominacional. Mas, por trás destes aspectos culturais, está a dimensão quotidiana e social: a vida das comunidades protestantes portuguesas desde o século XIX foi constituída pelas manifestações propriamente religiosas, nomeadamente os cultos, e o relacionamento social entre os crentes; estes tenderam muitas vezes a formar grupos autocentrados e a adquirirem a característica de uma minoria cultural dentro da sociedade portuguesa. Daí que, apesar de as suas actividades profissionais estarem em geral perfeitamente integradas na vida económica e social das zonas de residência, os protestantes tenderem a desenvolver espaços de sociabilidade autónoma normalmente centrados no local dos cultos, onde podiam decorrer convívios, quermesses, pregações de personalidades convidadas, festas para crianças ou aulas bíblicas. Tal tendência, porém, não impediu os protestantes de estarem ligados ao desenvolvimento de causas que transcenderam o seu círculo minoritário: são os casos de Alice Hulsenbos, fundadora no Porto da Sociedade Protectora dos Animais (1878), e de G. L. Santos Ferreira, durante várias décadas um dos grandes dirigentes da Cruz Vermelha Portuguesa. Do mesmo modo, quase todas as denominações tentaram manter escolas primárias, quer para os filhos dos membros das congregações, quer para crianças pobres cujas famílias eram assim cativadas a uma aproximação; com o maior desenvolvimento da rede escolar estatal, a partir dos meados do século XX, as escolas primárias protestantes mais antigas começaram a desaparecer, embora as denominações então com maior vigor missionário, como os Adventistas do Sétimo Dia (nomeadamente com o Colégio de Oliveira do Douro) e as Assembleias de Deus, tenham mantido bem viva esta tradição. Nas várias denominações, os cânticos, a leitura em voz alta das Escrituras e o sermão, eram a substância dos cultos, tendo sido levada a cabo a composição e publicação de hinários, sobre os quais escreveu um autor avalizado que a produção «portuguesa original é pobre, mas é relativamente rica a de tradução» (MOREIRA, A Situação, p. 16); como autores de hinos em língua portuguesa, traduzindo a letra da hinódia popular protestante anglo-americana ou, em menos casos, compondo com música original, destacaram-se (ainda de acordo com o mesmo autor) Robert R. Kalley e sua esposa Sarah Poulton Kalley na fase brasileira da sua obra missionária, Maxwell Wright, Richard Holden, G. L. Santos Ferreira, Dr. Silva Leite, Eurico de Figueiredo, Laura Luz e Leopoldina Rute da Conceição (compilação muito usada desde o século XIX são os Salmos e Hinos, várias vezes reeditados, mas existem também, publicados em Portugal já no século XX, entre outros, um Hinário Adventista e um Hinário Baptista) – ao metodista Robert Moreton deveu-se a difusão entre os protestantes portugueses do solfejo tónico de John Curwen, sistema que facilitava a aprendizagem do canto pelos crentes. A literatura piedosa desenvolveu-se muito cedo, ainda no século XIX, com obras como, por exemplo, as Homilias de Manuel António Pereira Júnior (1875) e as Horas de Conforto e Paz de Augusto Ferreira Torres (póstumo, 1900), mas também com as incursões em tom polémico de Dias da Cunha em temas históricos (Ecos de Roma; Vozes da História, 1885; O que é a confissão auricular?, 1889) ou edições destinadas aos dois públicos evangélicos de língua portuguesa como as Horas Dominicais: Leitura Cristã para Portugueses e Brasileiros (Lisboa, 1898). Estes géneros têm sido cultivados até à actualidade nas várias denominações, sendo comuns as pequenas obras piedosas ou de temas bíblicos e teológicos em língua portuguesa da autoria de um bom número de obreiros, pastores e missionários: só exemplificando dentro do campo pentecostal, poder-se-ia referir a actividade como polemista, cronista e contista do grande missionário Jarl Tage H. Stahlberg (Mistério dos Desaparecidos, As Dez Virgens, A Mulher e a Serpente) ou as obras de Abraão de Almeida (desde de um Tratado de Teologia Contemporânea até escritos como Israel, Gog e o Anticristo); as traduções de muitas obras clássicas da literatura protestante anglo-americana foram também levadas a cabo, desde O Peregrino de John Bunyan (por G. L. Santos Ferreira) até, por exemplo, às principais obras de Ellen G. White (como O Desejado de todas as nações, Aos pés de Cristo, O grande conflito). A actividade editorial no meio protestante português é, aliás, assinalável, bastando citar, além da Sociedade Bíblica, O Núcleo (dirigido pelo editor Fernando Resina de Almeida) ou a ex-Publicadora Atlântico (adventista); a filial portuguesa da Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, das Testemunhas de Jeová, é igualmente uma importante editora e distribuidora de periódicos (como A Sentinela, de periodicidade mensal), tratados e folhetos. Há também um pequeno universo de publicações (efémeras) de pendor cultural e de reflexão, de que se pode destacar a revista Bara, iniciada em 1983 por uma Associação Evangélica de Cultura a que pertenciam, entre outros, o pastor (pentecostal) António Costa Barata. No âmbito dos estudos bíblicos e da teologia – embora existam já nas principais denominações vários pastores com formação académica –, podem ser referidos entre eles, pela sua relevância: dentro da tradição exegética “histórico-gramatical” (tradicional), a trilogia de interpretação bíblica do pastor adventista Ernesto Ferreira com as obras Edificados sobre a Rocha (1987), O Senhor vem (1971, 2.ª ed. 1989) e Profecias cronológicas na história da Salvação (1992); e dentro da tradição exegética “histórico-crítica”, claramente minoritária no P. português, o magistério do pastor presbiteriano A. J. Dimas de Almeida (n. 1937), antigo docente do Seminário Evangélico de Teologia que actualmente lecciona na licenciatura de Ciências Religiosas na Universidade Lusófona, em Lisboa. Até meados do século XX, o P. português foi centrado na Palavra: bíblica, impressa, cantada, escutada; embora com algumas variantes (o pendor liturgista da Igreja Lusitana, a interpretação própria do Baptismo pelos seguidores de Jones), a leitura, a música e a exortação eram o centro da vida religiosa dos protestantes e a Ceia, sob as duas espécies (mensal ou trimestral), era obviamente o momento alto da vida das congregações. O grande crescimento do Pentecostalismo após a Segunda Guerra Mundial, sobretudo com as Assembleias de Deus, alterou a fisionomia desta vivência religiosa, fazendo-a entrar numa época claramente diferente da que se iniciara na segunda metade do século XIX. Nas décadas de cinquenta e sessenta, os Pentecostais introduziram uma vivência carismática da fé, dando ênfase aos dons do Espírito Santo segundo a tradição neotestamentária (dom das línguas, imposição das mãos, curas, profecia), imprimindo ao P. em Portugal uma nova dinâmica cultural e de crescimento. No entanto, a grande expansão do Pentecostalismo, que chegou mesmo a influenciar algumas franjas dos Baptistas e dos Irmãos, contribuiu para fraccionar o universo cultural da minoria protestante portuguesa que ficou mais dividida entre uma sensibilidade mais ligada à herança das Igrejas e denominações históricas vindas do século XIX (herança que é continuada, por exemplo, por grupos que mantêm a centralidade da Palavra, como os Adventistas do Sétimo Dia e as Testemunhas de Jeová) e uma sensibilidade de teor carismático. A capacidade das denominações se auto-organizarem e definirem estratégias de crescimento está ligada ao surgimento de focos de formação de ministros; na ausência de instituições especializadas para esse efeito, organizaram-se por vezes cursos teológicos esporádicos, como o de 1903-1904 na Igreja Lusitana e o Curso Teológico de Cooperação promovido pelos Presbiterianos, Metodistas e Congregacionalistas no período entre as duas guerras mundiais. A primeira denominação a estabelecer uma instituição de formação para o ministério foi a Baptista, em Viseu, em 1922, com Albert Ward Luper (1891-1977), a qual veio a encerrar em 1963; outros dois seminários baptistas funcionaram por períodos aproximados de dez anos e, em 1969, foi instalado em Queluz o actual Seminário Teológico Baptista. Em 1946, foi fundado o ainda existente Seminário Evangélico de Teologia, cujo primeiro reitor foi o missionário presbiteriano Michael P. Testa e ao qual estão ligadas as três Igrejas sinodais. Numa base interdenominacional, a Greater Europe Mission estabeleceu, desde 1974, na Póvoa de Santo Adrião, o Instituto Bíblico Português, dirigido por Gerald Carl Ericson. Ligado às Assembleias de Deus, surgiu em 1966 e instalou-se em 1975 em Fanhões, o Instituto Bíblico de Portugal. Desde então têm sido fundadas outras instituições congéneres de âmbito mais restrito, quer pelas denominações existentes, quer por organizações missionárias internacionais, apesar de algumas denominações, como os Adventistas do Sétimo Dia, formarem os seus ministros em escolas bíblicas e universidades denominacionais na Europa e na América do Norte. As Testemunhas de Jeová (cuja instituição de ensino principal é a Escola Bíblica de Gileade, em Nova Iorque) têm também em Portugal escolas de preparação para o ministério: a Escola de Serviço do Pioneiro e a Escola de Treinamento Ministerial. No campo da historiografia, o universo protestante português tem produzido desde o início algumas monografias; com A Reforma em Portugal de Diogo Cassels (1906) iniciou-se o interesse dos protestantes portugueses pela sua própria história, com seguidores no século XX (Santos Ferreira, Eduardo Moreira, Albert Aspey, Michael P. Testa, e mais recentemente, Manuel Pedro Cardoso e Herlânder Felizardo). A investigação histórica sobre o P. em Portugal, sobretudo sobre o sector das Igrejas sinodais, muito tem devido a investigadores denominacionais como os aqui referidos, tendo recebido depois o contributo crítico e enriquecedor de François Guichard, da Universidade de Bordéus, bem como dos investigadores (F. A. Costa Peixoto, J. M. Mendes Moreira, Narciso P. Ferreira de Oliveira, Maria Zita F. A. Ferreira da Costa e Joana S. Pina Cabral) saídos do seminário dirigido pelo Doutor João Marques no Mestrado de História Moderna da Faculdade de Letras do Porto. O pastor Manuel Pedro Cardoso destaca-se por, em 1985, ter publicado uma tentativa de síntese de uma história de século e meio, enquanto o pastor Herlânder Felizardo, mais recentemente, deu um importante contributo para o conhecimento do sector Baptista; merecem igualmente menção, pelas investigações relativas aos sectores Adventista e Pentecostal, respectivamente, o pastor Ernesto Ferreira e o pastor António Costa Barata. O antecessor de todos estes esforços foi seguramente Eduardo Henriques Moreira (1886-1980), o mais produtivo e prestigiado autor protestante do século XX; além de inúmeras traduções por si efectuadas, escreveu sobre uma grande variedade de assuntos religiosos, sociais e culturais, destacando-se: A Crise Nacional e a Solução Protestante (1910), História Sagrada para o Povo Decorar (1920), O Cortejo dos Heróis Desconhecidos (1925), A Situação Religiosa de Portugal (1935), Esboço da História da Igreja Lusitana (1949), Crisóstomo Português (1957), Vidas Convergentes (1958), Relação da Religião com a Política (1974); pastor, erudito e historiador no longo período da crise da monarquia constitucional à ruptura de 1974-75, Moreira foi um proponente metódico de uma sociedade pluralista que integrasse naturalmente a religião e as minorias religiosas na vida nacional, longe tanto do favorecimento político da hegemonia católica romana como do jacobinismo laicista.

[«Protestantismo» (vol. P-V-Apêndices, pp. 75-85), Dicionário de História Religiosa de Portugal (dir. Carlos Moreira Azevedo), Lisboa: Círculo de Leitores, 2000-2001.]

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domingo, fevereiro 10, 2008

Sobre a interrupção voluntária da gravidez

[Publicado no Blogue do Não entre Outubro e Dezembro de 2006.]

A minha declaração de intenções [23.10.2006]
No debate que agora se inicia sobre a proposta de liberalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG), muita gente de bem está no lado do “sim” e tem genuínas preocupações com a dignidade humana das mulheres que passaram e passam pela experiência da IVG. Julgo que devemos partir de uma atitude de profundo respeito por esses sentimentos, que dificilmente são estranhos aos que estão do lado do “não”. Acima de tudo, é muito importante que o debate que agora se inicia possa decorrer com elevação, sem processos de intenção de parte a parte. Para isso, seria importante que os apoiantes do “sim” à proposta de liberalização da IVG até às dez semanas tivessem em consideração um pequeno grande pormenor na argumentação do lado do “não”: o de que, deste lado, se considera estar envolvida OUTRA PESSOA além da mãe [o feto]. Já seria um grande avanço se pudessemos, de parte a parte, partir para a discussão dando como adquirido que o que move ambos os lados é a defesa da dignidade humana.

IVG e referendo [27.10.2006]
Numa coisa concordo com Pedro Arroja [«Até se tornar irrelevante», Blasfémias] (na verdade, em muitas outras): o referendo não é a melhor maneira de resolver a “questão moral” da IVG (vg. “aborto”). Nunca fui apoiante da democracia plebiscitária e, para mim, a mudar-se alguma coisa na lei (num assunto deste calibre) seria ao parlamento que caberia discutir e decidir. Com uma condição: a questão deveria ser proposta na presente legislatura e, na campanha da eleição geral seguinte, os candidatos a deputados (ou as várias listas em cada círculo) deveriam anunciar a respectiva posição sobre o assunto; deste modo, o parlamento eleito tomaria uma decisão mandatado para o efeito. Estando nós, porém, na circunstância política em que estamos (na qual até revisões constitucionais se fazem sem o processo que indiquei e a relação entre eleitos e eleitores é o que sabemos), o referendo pode, paradoxalmente, tornar-se um elemento corrector da excessiva concentração das decisões nos directórios partidários e no poder executivo.

Uma frase de Karl Barth [01.11.2006]
Se se acreditar que o fim da vida humana não é a morte, mas a ressurreição, viver ganha um valor imperativo que transcende todo o instinto de sobrevivência e de procura da felicidade – as duas coisas que nos fazem andar para a frente no dia-a-dia. A vida torna-se a experiência possível de consciencialização do ser humano individual sobre o fim para o qual foi criado. Que essa experiência tem de ser vivida por cada um, na sua autenticidade única, para poder orientar-se para o transcendente fim da criação, é o que quase a torna para nós um dever, mais do que um direito. Chegar a compreender-se para lá do instinto de sobrevivência e aprender a relatividade da felicidade é o caminho que nenhum acto deliberado, nosso ou de outrem, pode interromper. Nascer para viver para morrer para ressuscitar. É assim que o mistério da ressurreição diz tudo sobre o que podemos nem chegar a imaginar que está hoje em jogo.

Recolocar a questão moral [05.11.2006]
Há quem coloque o fulcro moral da questão da interrupção voluntária da gravidez (IVG) apenas no plano da consciência de cada um; a Lei e o Estado deveriam deixar essa questão à decisão moral dos indivíduos, para o que a liberalização se tornaria necessária. Esta solução seria alegadamente a mais correcta em termos morais porque confrontaria cada um com um exame de consciência do qual emergiria uma escolha mais verdadeira e autêntica. Como defenderei num post seguinte, uma das fraquezas dessa posição é que ela só seria real para as mulheres. A objecção que para já coloco a este modo de ver o problema da IVG é que essa posição não é admissível se estiver em causa a defesa da integridade de outra pessoa além do agente moral (quem toma a decisão). É por isso que, em nome dessa suposta correcção moral, não se defende a descriminalização de condutas atentatórias daquela integridade: ninguém diz “vamos descriminalizar a agressão física porque é mais saudável viver numa sociedade em que as pessoas tomam decisões morais genuínas e não porque a lei e a polícia as obrigam a isso”. O argumento da liberalização, que entrega aos indivíduos a responsabilidade plena dos seus actos, é, para mim, válido para a totalidade dos comportamentos comuns das pessoas que só as afectam a elas próprias; nesses casos, de facto, a lei e o Estado não se devem imiscuir. Pelo contrário, sob a alçada do Direito (e dos tribunais) ficam as regras recíprocas de justa conduta que permitem aos indivíduos conviver sem se agredirem nos seus direitos essenciais – sendo que o seu direito essencial primeiro é o de gozarem de toda a liberdade em relação aos comportamentos que só os afectam a si próprios. Ora, é para mim claro que a IVG afecta, isto é, interrompe por acto deliberado de segundo ou de terceiro, a vida de um ser humano – que tem, assim, a sua integridade violada de forma absoluta. E é por isso que, no meu entendimento, a IVG não está no plano dos actos morais que pertencem à responsabilidade plena do indivíduo, mas, pelo contrário, está sob a alçada do Direito e das garantias de que este deve cercar a integridade de cada ser humano. (É também por isso que a IVG pode ser admitida se uma gravidez colocar em perigo a integridade – a vida – da mãe, ou se essa gravidez tiver resultado de um acto que violou essa integridade.)

Que direitos (e deveres) tem o pai? [01.12.2006]
A concessão (sem condições) à mulher do direito de interromper voluntariamente a gravidez abre ao exercício da paternidade um complexo problema moral e jurídico. O facto de não o ver debatido não diminui a minha convicção sobre a gravidade da situação para a qual parecemos caminhar. Julgo que sempre se considerou que o acto da procriação resulta da decisão livre de um homem e de uma mulher (o problema de uma gravidez ocorrida numa relação não consentida está fora do âmbito desta argumentação). Um casal decide ter filhos ou decide não ter; ninguém lhes impõe essa decisão. Mas essa liberdade tem a correlativa responsabilidade de cuidar de um terceiro, no caso de ocorrer uma gravidez. Essa obrigação é igual para o pai e para a mãe. Ora, este equilíbrio moral e jurídico de direitos e deveres é quebrado quando é dado à mulher um direito soberano de vida ou de morte sobre o feto (até às dez semanas); isto, acrescento eu, como se o filho fosse só seu – ou, como defendem os que suportam a IVG com base no direito da mulher de “dispor do seu corpo”, como se o feto fosse simplesmente parte do seu corpo. E não é também parte do do pai? Não é isso que está pressuposto na lei quando o homem é obrigado a assumir a sua responsabilidade de paternidade? A defesa da IVG como um direito em abstracto tem, pois, um problema complicado: é um direito apenas das mulheres que, pela sua própria natureza, está duplamente vedado aos homens: primeiro porque não são os homens quem engravida, segundo porque são excluídos da decisão de a praticar. Trata-se, assim, de um “direito” ferido da impossibilidade de universalidade, característica que eu acreditava ser uma das bases do Direito das sociedades livres. Mas, a este problema, acresce um outro: o que é a paternidade? Com a atribuição, sem condições, do direito da mulher à IVG, a paternidade torna-se condicional, uma concessão da mulher ao homem. O exercício desse dever pelos homens passa a estar claramente enfraquecido porque, até às dez semanas de gravidez, uma decisão voluntária da mulher pode quebrar ou fazer desaparecer esse dever. Os homens que entendam a sua paternidade sobre o feto também como um direito passam igualmente a estar sujeitos à decisão da mulher para o exercer. Com a sua responsabilidade assim condicionada, os homens não estão a ser separados do que de mais íntimo e essencial os une à paternidade? Deste modo, as crianças passarão a nascer, não porque o pai e a mãe quiseram, mas porque a mãe quis. E o homem será pai também por decisão da mãe. Esta menorização dos homens, que juridicamente já é desastrosa, não poderá deixar de o ser também moralmente (a não ser que optemos por viver à margem da imoralidade das leis).

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Sair mais cedo

El-rei D. Carlos I (1863-1908)

Hoje é homenageado no Terreiro do Paço, às 17h00, el-rei D. Carlos I, no centenário do seu ignominioso assassinato. Poucas coisas me fariam sair mais cedo do trabalho nesta altura do ano. Mas não há plano editorial que se sobreponha hoje ao imperativo de dar testemunho de apego pessoal à liberdade e ao rei.


Deus proteja a Sereníssima Casa de Bragança