Como atitude religiosa no interior do Cristianismo, o Protestantismo (P.) teve origem no questionamento dos canais sacramentais e litúrgicos administrados por uma hierarquia sacerdotal como meios únicos ou privilegiados de comunicação dos fiéis com Deus e acesso à Graça e à Salvação. O aparecimento da designação de “protestante”, em 1529, na recusa de príncipes e cidades alemãs aceitarem o edicto imperial de Worms que perseguia em Martinho Lutero (1483-1546) a assunção radical desse questionamento, confere-lhe um duplo sentido de oposição (à cultura religiosa dominante) e afirmação (da espiritualização da fé como caminho de Salvação). No misticismo medieval o P. teve um precedente poderoso que desvalorizava os canais institucionais e, por isso mesmo, levantava desconfianças nas autoridades eclesiásticas. O exercício puramente espiritual da fé como único caminho de justificação do crente perante Deus não foi, pois, uma inovação de Lutero, mas uma tendência preexistente que ele seguiu e radicalizou ao ponto de desvalorizar publicamente a função mediadora do clero na conquista do perdão divino do pecado. De facto, Lutero colocava toda a ênfase na decisão interior do crente, recusando as formas rituais de expiação do pecado e dando à Penitência um conteúdo íntimo e espiritual; com a aceitação do Baptismo e da Ceia, conservou em parte os vínculos sacramentais na unidade visível dos crentes, mas dispensou a mediação sacerdotal nessas ocasiões. Lutero estabeleceu, assim, uma nova visão da economia da Salvação que abriu, historicamente, um amplo espaço de diferenciação no Cristianismo, ao lado do Catolicismo Romano e da Ortodoxia. A irrelevância conferida ao sacerdócio clerical como autoridade em questões de fé, deu à Bíblia uma centralidade que incentivou a sua aproximação do crente e permitiu a substituição de uma cultura religiosa devocional e sacramental por uma fé assente na intimidade do crente com a Palavra escrita. Mas os debates teológicos a que inevitavelmente os Protestantes foram conduzidos, como por exemplo em torno da Presença Real de Cristo na Eucaristia, revelaram que o confronto das várias leituras da Bíblia nem sempre era conclusivo e podia mesmo motivar divisões e incompatibilidades; estes problemas agudizaram-se quando serviram de pretexto a revoltas camponesas que Lutero se viu obrigado a condenar, legitimando as atribuições disciplinares dos poderes temporais. Outro caminho seguiu João Calvino (1509-64), que começou por aderir à concepção de Lutero da Igreja como essencialmente invisível, constituída pelos santos que só Deus conhece e distinta da organização temporal, histórica, dos crentes em comunidades cujo pastor é um mero delegado; porém, na esteira de Ecolampado em Basileia e Bucer em Estrasburgo, revalorizará a Igreja visível e a importância da disciplina no seu interior. Calvino seguiu, deste modo, a via da reforma da comunidade cristã como universo de vivência da santidade, elaborando nas Instituições da Religião Cristã (1536) o seu próprio modelo eclesiástico. A sua preocupação com a exteriorização e a visibilidade social da santidade conduziu-o, em Genebra, a uma eclesiologia fortemente institucional e recriadora das formas de sociabilidade, gerando aquilo a que Michael Oakeshott chamou um regime «teleocrático». Esta tendência foi retomada por todos os grupos cristãos que, depois de Calvino, expressaram a sua fé em termos de persecução ou realização de uma santidade que é vivida colectivamente e que, se os crentes se vêem a si mesmos como escolhidos, facilmente vai de par com a doutrina da Predestinação, já não entendida como o Plano divino da Salvação (no sentido em que a Paixão e Ressurreição de Cristo fora um plano divino) mas como a eleição prévia por Deus do grupo dos santos. O P. vive desde então uma dupla dinâmica, a experiência da fé como iluminação interior do crente individual e a busca da comunidade perfeita como realização social da santidade. Ambas as tendências, decorrentes do desconforto sentido no universo da prática tradicional, medieval, dos sacramentos, foram os elementos que fizeram explodir a unidade institucional do Cristianismo ocidental. Mas a vertigem da desintegração social causada por este questionamento, cedo forçou também os protestantes não-calvinistas a encontrarem novas formulações teológicas que estruturassem outras formas de sociabilidade dos crentes. Documentos escritos (catecismos e Confissões), juntamente com a apropriação pelos poderes temporais das competências disciplinares, foram dando corpo a novas Igrejas institucionais, nacionais, que enquadraram a nova piedade interiorizada e espiritualizada, impedindo assim a dessocialização da fé. Após algumas décadas de discórdias sobre a Predestinação e os sacramentos, as Igrejas luteranas chegaram, em 1580, a uma base comum, expressa na Fórmula de Concórdia (que proclamava a justificação do crente pela fé, afirmava o dever das boas obras, estabelecia a Presença Real de Cristo na Eucaristia – que, para os Calvinistas, era uma Presença só espiritual – e atenuava a doutrina da Predestinação – negando nesta a escolha prévia dos santos); foi com base nestes princípios que se edificaram as Igrejas luteranas alemãs e escandinavas, fortemente ligadas às autoridades estatais. Por seu lado, o Calvinismo expandiu-se para a França, algumas zonas da Alemanha, os Países Baixos e a Grã-Bretanha e tendeu a organizar-se de uma forma menos rígida que em Genebra, até por não ter nessas paragens o domínio do Estado; a forma congregacional (isto é, de comunidades religiosas locais com grande autonomia) foi a prevalecente, a partir da qual se construíram as Igrejas chamadas reformadas. Na Grã-Bretanha, os seguidores de Calvino influíram tanto na reorganização eclesiástica inglesa como na escocesa; o processo predominantemente político que levara, em Inglaterra, à ruptura com Roma, evoluiu depois para uma organização episcopal tutelada pelo rei e entrelaçada numa teologia de inspiração calvinista quanto aos sacramentos (codificada no Book of Common Prayer anglicano de Thomas Cranmer, 1549) . Na Escócia, o modelo congregacional das Igrejas reformadas designou-se de “presbiteriano” por oposição ao governo hierárquico do episcopalismo inglês, formalizando-se no Book of Discipline de 1560. A organização destas Igrejas luteranas, anglicana e calvinistas (reformadas e presbiteriana), estabilizou doutrinas e arranjos políticos com os poderes temporais e houve uma tendência generalizada para a «artrite tipográfica» das várias denominações (BOSSY, A Cristandade no Ocidente, p.123). Deste modo, o P. revelou muito cedo ter também os seus desadaptados, aqueles que precisamente pretendiam dar uma radicalidade à iluminação interior do crente ou à santidade da comunidade visível que não se satisfazia nos arranjos doutrinais e disciplinares em formação. Os mais significativos foram os Anabaptistas, que reservavam o Baptismo aos crentes conscientes (excluindo as crianças), transformando esse acto de um ritual de integração social num sinal profundamente interiorizado de conversão individual; deste modo, levavam às últimas consequências a espiritualização da fé, a sua dessocialização e desritualização, não aceitando as Confissões, os catecismos e os livros de disciplina. A partir daqui, a ideia de que Deus não está encerrado nos textos escritos (mesmo os da Bíblia), nem nos canais sacramentais (mesmo o Baptismo e a Ceia, aceites por Lutero e Calvino) e que tem outros meios puramente espirituais de comunicar com a humanidade, incendiará muitos espíritos e fará crescer, até à actualidade, os muitos grupos protestantes não-conformistas que colocam grande ênfase na inspiração directa do crente pelo Espírito Santo. As complicações advinham do facto destas inspirações poderem dar ao crente uma sensação tão compacta da sua comunicação com Deus que a própria mediação única e obrigatória de Jesus Cristo (como explicitada, por exemplo, na teologia da Epístola aos Hebreus) se perdesse; daí os reformadores “ortodoxos”, como Lutero e Calvino, terem visto na Palavra bíblica um suporte indispensável da comunicação do crente com Deus (da sua leitura ou audição é que nascia e se mantinha a fé). Este perigo ficou patente no caso dos Antitrinitários e dos seus descendentes, os Unitaristas, que evoluíram para concepções teológicas que punham em causa a cristologia ortodoxa (e não apenas a eclesiologia tradicional como os primeiros protestantes), entrando em ruptura com o entendimento aceite do conteúdo querigmático do Novo Testamento relativamente à participação de Jesus na divindade do Pai e do seu lugar na economia da Salvação. Sem estes excessos, embora na esteira da agitação do Espírito dos Anabaptistas, foram tomando forma (sobretudo nas terras de promissão da liberdade evangélica, os Países Baixos desde o século XVI, a Grã-Bretanha e a América do Norte desde o século XVII) novos grupos denominacionais de organização congregacionalista como os Baptistas e os Quakers no século XVII e os Metodistas no século XVIII: estes últimos foram a prova do desconforto de muitos crentes protestantes dentro das Igrejas estabelecidas com patrocínio estatal no século XVI, mas também da procura de um Cristianismo vivido com intensidade arrebatadora. John Wesley (1703-91), o fundador involuntário do Metodismo, iniciou um movimento de espiritualização e conversão pessoal cujo desenvolvimento acabou por levar para fora do Anglicanismo os seus seguidores. Nestes movimentos não-conformistas tomou forma uma das dinâmicas modelares do P., as cisões e multiplicação dos grupos que impedem este universo cristão de solidificar numa estrutura desvitalizada. Prova disto foi o grande período do Revival espiritual anglo-americano entre 1750 e 1850 que, além de ter revigorado as denominações já então existentes e de ter expandido o Metodismo, contribuiu para recuperar o profetismo como força religiosa dentro do Cristianismo histórico e reavivar fortes sentimentos expectantes numa iminente Segunda Vinda de Cristo, sobretudo com a pregação de William Miller (1782-1849); tal esperança deu a estes cristãos uma nova percepção «da realidade absoluta de Cristo» que introduzia uma tensão espiritual criadora e mobilizadora em face do ambiente social e cultural envolvente. Mas a posteridade deste movimento Adventista encontrou caminhos divergentes, ainda e sempre em torno da questão fundamental da cristologia: os Adventistas do Sétimo Dia, colocando grande ênfase na Segunda Vinda mas preservando a concepção trinitária, mantiveram-se no terreno da ortodoxia histórica do Cristianismo e do P. clássico, ao contrário do milenarismo das Testemunhas de Jeová, de raiz unitarista, que propõe uma leitura bíblica da natureza de Cristo que Lhe nega participação na divindade do Pai; o profetismo oitocentista assumira ainda outras formas de heterodoxia (no entender das correntes protestantes anteriores), como a da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, que acrescentou ao Cânone recebido das Escrituras um novo livro (Livro de Mórmon) que considera inspirado e continuador da Revelação bíblica. Estes dois últimos movimentos, em geral não aceites pelos restantes como protestantes, consideram-se a si mesmos, no entanto, inequivocamente cristãos. Surgido no início do século XX, o Pentecostalismo representa a camada histórica mais recente de renovação espiritual no campo cristão protestante, pretendendo desenvolver experiências de teor emocional que dêem ao crente uma sensação realista do Baptismo pelo Espírito Santo – o que, em geral, passa também pela fé na “cura divina” como reactualização dos carismas milagrosos relatados no Novo Testamento (vista com cepticismo por outras correntes protestantes, esta é também uma via de vivência da «realidade absoluta de Cristo» que, além do mais, preserva a concepção trinitária e a cristologia tradicional). Outras configurações tomadas pela “criatividade profética” (como, por exemplo, a Unification Church do coreano Rev. Moon) vêm lembrar a característica desestabilizadora destas “presenças do Espírito” nos edifícios sociais e doutrinais em que os cristãos muitas vezes se têm sentido demasiado confortáveis; mas vêm também confrontar o cristão com a premente questão da definição do ponto fixo da sua fé e com tudo o que isso significa em termos de atitude para consigo e no mundo.
[«Protestantismo» (vol. P-V-Apêndices pp. 75-85), Dicionário de história religiosa de Portugal (dir. Carlos Moreira Azevedo), Lisboa: Círculo de Leitores, 2000-2001.]