[Grão de Trigo, Agosto 2015, pp. 2-3.]
Os ministérios formais na igreja
As igrejas são a reunião dos crentes com o propósito de nos fazer
proclamar a Palavra, de velarmos uns pelos outros nos aspetos exteriores da fé
e de nos instruirmos mutuamente. Os dons que dão lugar aos ministérios
carismáticos – e informais – (de que tratámos no artigo anterior) são
fundadores e inspiradores para a igreja e representam formas excecionais de
liderança. Mas a igreja, na sua missão, não pode estar dependente do que é
excecional. Para ilustrarmos este argumento, as igrejas que em Portugal e no
Brasil adotaram como confissão a Breve
Exposição das Doutrinas Fundamentais do Cristianismo consideram
provavelmente o seu autor, o Dr. Roberto Kalley, um apóstolo no sentido lato de
1Cor. 4:9. Mas essas igrejas, para persistirem, não poderiam esperar encontrar
em cada geração, até ao presente, alguém tão dotado e reconhecido como Kalley.
O mesmo se poderia dizer relativamente a irmãos (se os houver) considerados
profetas ou doutores. Outros ministérios têm de servir às necessidades da
igreja no dia-a-dia, ajudando a dotá-la de uma regularidade sem a qual os
grupos humanos não sobrevivem. É, pois, necessário haver ministérios regulares
na igreja.
No Novo Testamento, é nos Atos dos Apóstolos e nas Epístolas que
surgem as referências a estes ministérios, precisamente porque é nesses livros
que se relatam acontecimentos ou se abordam problemas relacionados com as
primeiras comunidades cristãs. Os ministérios regulares ou de nomeação
eclesiástica são aqueles que a igreja mantém regularmente organizados e para os
quais, reunida em assembleia formal, nomeia ou chama ou confirma irmãos para os
exercerem. Nos Atos dos Apóstolos e nas Epístolas referem-se dois ministérios
regulares ou formais: o presbiterado e o diaconado.
Os diáconos
Etimologicamente, «diácono» será qualquer irmão que
exerça um ministério (ou serviço) na igreja. É por essa razão que Atos 6:1-6 é
muitas vezes considerada a passagem que testemunha a instituição do diaconado,
pois é aí que se conta que os apóstolos pediram à igreja em Jerusalém que escolhesse
do seu seio sete homens para servirem às mesas durante a partilha de alimentos.
O conjunto dos irmãos elegeu os sete e os apóstolos impuseram-lhes as mãos em
sinal de reconhecimento daquele ministério. Mas seria errado entender-se que,
por ter sido aquela a causa imediata da sua instituição, àquele tipo de tarefa
se reduza o serviço dos diáconos. Bem lida, o que aquela passagem nos diz é que
os apóstolos pediram à comunidade a designação de irmãos que trabalhassem
ativamente na resolução prática de uma necessidade que estava a criar mal-estar
dentro da igreja e a dar mau testemunho (o facto de as viúvas de irmãos de
língua grega estarem a ser prejudicadas voluntária ou involuntariamente por
irmãos de cultura judaica). Por essa razão, os escolhidos deveriam ser, de
acordo com a solicitação dos apóstolos, «de boa reputação, cheios do Espírito e
de sabedoria» (v. 3). Não eram pessoas que simplesmente soubessem servir às
mesas, mas que tivessem autoridade moral para serem respeitados e cujo
testemunho na igreja fosse entendido como guiado pelo Espírito Santo, patente
em palavras e atos sábios. Sem estas características não saberiam ser nem
seriam reconhecidos como portadores de qualidades suficientes para irem ao
encontro dos necessitados, dos perdidos ou dos desavindos dentro da igreja.
O
grau de exigência na escolha dos diáconos era elevado, pelo que não espanta que
um dos eleitos fosse Estêvão, o primeiro mártir e autor de um célebre discurso
perante o Sinédrio que comprova grande conhecimento das Escrituras e do
significado transcendente da pregação de Jesus (Atos 7:2-53). O apóstolo Paulo
segue a mesma linha exigente quando define, em 1Tim. 3:8-13, o perfil do
diácono.
Ao estarem orientados para o serviço por meio da solicitude (atenção
às necessidades espirituais, afetivas e materiais dos irmãos) e de uma retidão
de juízo, de propósitos e de atos, os diáconos assumem, assim, as qualidades
que idealmente deveriam existir em todos os irmãos no seu convívio na igreja.
Os diáconos são chamados a ser os guardiões ou os cultores dessas virtudes não
só para resolução prática de falhas ou de necessidades entre irmãos, mas também
para edificarem toda a comunidade, sendo agentes ativos e conscientes do bom
testemunho que a igreja deve dar a crentes e não crentes.
De acordo com as
características já referidas, os diáconos parecem também vocacionados para
ajudarem na resolução de conflitos entre irmãos no espírito de Mat. 18:15-22
(nomeadamente para serem as testemunhas a que se refere o v. 16).
Os presbíteros
É difícil conceber que
mais algum ministério formal possa ser exercido na igreja sem ter como base ou
ponto de partida as qualidades e virtudes atribuídas ao diácono. [Neste
sentido, pois, e não só no relevante e revelador sentido etimológico, todos os
ministros da igreja são diáconos.]. Se, como foi dito, o diácono assume as
características que idealmente todos os irmãos deveriam ter no convívio na
igreja, isso aplica-se ainda mais aos irmãos que assumem outros ministérios –
com destaque para os presbíteros.
O termo grego presbyteros era usado no tempo da igreja apostólica por associações
religiosas e profissionais do mundo romano com um sentido muito semelhante ao
que foi adotado nas assembleias (ekklesiai
em grego) ou igrejas cristãs [Philip A. Harland, Associations, Synagogues and Congregations, Minneapolis: Fortress
Press, 2003, p. 182]. Esse termo significava «ancião» e era usado como sinónimo
de «supervisor» ou «superintendente» (episkopos
em grego). Mas o termo «ancião» (zaqen
em hebraico) era também usado no Antigo Testamento, sendo originário do período
pré-monárquico da história de Israel. O termo surge em Êxodo 12:21 e Números
11:16, mas também, já no período monárquico, em 1Reis 21:8-14, Jer. 26:17 ou
Prov. 31:23, ou, no tempo do Segundo Templo, em Esdras 6:7-8 e 10:14. Os
anciãos da tradição judaica são também referidos no Novo Testamento, por
exemplo em Marcos 15:1 e Atos 5:21 e 22:5. Os anciãos eram chefes de famílias
extensas, exercendo autoridade religiosa e judicial sobre os seus parentes, sendo
criticados por Jesus em Marcos 7:3, 5, onde são associados aos fariseus [J. A.
Overman, s.v. «Elder», The Oxford
Companion to the Bible, 1993, p. 182]. Parece claro que os anciãos ou
presbíteros das primeiras comunidades cristãs, mencionados em Atos e nas
Epístolas, não têm relação direta nem semelhança formal – talvez apenas uma
filiação simbólica para os judaizantes – com o zaqen do Antigo Testamento.
Nas primeiras comunidades cristãs, os
anciãos podiam ser chamados ou nomeados pelos apóstolos (Atos 14:23 e Tito 1:5)
segundo o critério de pertencerem à família espiritual do Senhor e não à
posição familiar ou tribal na sociedade – tal como Jesus escolhera os próprios
apóstolos e os fizera seus parentes espirituais (Mat. 12:46-50). Na ausência
dos apóstolos, compete obviamente à assembleia dos irmãos reconhecer no seu
seio aqueles que revelam dons para o presbiterado. Paulo, depois de traçar o
perfil pessoal do presbítero, de uma forma que lembra o que para os diáconos
também estava estabelecido (Tito 1:6-8), considera-lhe atribuídas as funções de
ser «apegado à palavra fiel, que é segundo a doutrina, de modo que tenha poder
tanto para exortar pelo reto ensino como para convencer os que o contradizem»
(Tito 1:9). Em Tim. 5:17, o apóstolo considera-o digno de estima e honra
sobretudo se se dedicar à «palavra» e à «doutrina» (isto é, ao ensino). O
presbiterado é, assim, um ministério centrado na Palavra – no seu estudo,
proclamação e explanação. Ao presbiterado pertence trazer a Palavra para o
centro da vida espiritual da igreja, pois a Palavra é o «pão da vida» e o
«pasto» dos crentes.
Poder-se-ia dizer que a diferença substantiva entre um diácono e um presbítero é que o segundo tem a obrigação de pregar e ensinar regularmente (o que não invalida que o primeiro o possa fazer voluntária e esporadicamente).
Outros ministérios
formais
É neste contexto que aos presbíteros é concedida a função simbólica
de poderem ser «pastores», de «apascentarem» os seus irmãos na igreja, como
Jesus exortou Pedro a fazer (João 21:15-17). Nesse caso, o presbítero assume –
por solicitação ou reconhecimento da igreja – uma vocação que não é só a de
proclamar, ensinar e explanar a Palavra, mas que é também a de, através dela,
conduzir os seus irmãos ao «pasto» e ao «pão» que alimentam o seu coração pelas
veredas mais apropriadas às condições de cada um. Para isso, o presbítero que é
pastor tem também de dedicar-se aos irmãos com uma grande dose de solicitude,
de conhecimento e de dedicação a cada um, de modo que a proclamação que fizer
da Palavra seja adequada aos corações concretos que tem diante de si na
igreja.
Se incluirmos ainda no conjunto dos ministérios formais o de
evangelista (missionário ou obreiro como referido em 2Tim. 4:1-5), e que a
igreja pode querer designar para trabalho missionário de entre os presbíteros,
ficamos com os quatro ministérios elencados na Breve Exposição (artigo 22.º): diáconos, presbíteros, pastores e
evangelistas.
Conclusão sobre a estrutura formal da igreja
Daquilo que foi dito se pode concluir que a formalização dos ministérios na igreja não conduz a uma estrutura hierárquica, mas a uma estrutura concêntrica. Uma ilustração desta realidade pode ser a que se segue:
Podemos ser membros da igreja sem nela termos ministérios reconhecidos – desde que sejamos batizados e que tenhamos sido aceites na comunidade comungante e confessante. De entre os membros da igreja há, porém, aqueles que foram chamados ao exercício formal da diaconia (o ministério por excelência) – e como tal reconhecidos pela assembleia dos irmãos. E é do seio destes ministros que a igreja reconhece também os presbíteros, que são os «ministros» ou «diáconos» da Palavra.
terça-feira, novembro 22, 2016
Os ministérios bíblicos na igreja (I)
[Grão de Trigo, Abril 2015, pp. 2-3.]
Dos dons ao serviço: vocação individual em contexto eclesial
Na igreja, isto é, na reunião dos crentes com o propósito de proclamar a Palavra, todos têm, em maior ou menor medida, dons atribuídos pelo Criador. «Dom» é o mesmo que «carisma», termo grego que deriva de Χάρις (charis) e significa «graça» ou «favor», originando a palavra Χάρισμα (charisma), que significa «dom da graça». Daí que 1Ped. 4:10 afirme que os dons são a manifestação da «multiforme graça de Deus». Nalguns irmãos, os dons ou carismas são visíveis e/ou conscientes; noutros, estão ocultos, às vezes mesmo para quem os transporta. São muitas vezes as circunstâncias que revelam (aos próprios ou aos outros) esses dons escondidos. No entanto, é importante estarmos conscientes de que somos chamados a fazer frutificar os nossos dons (Mateus 25:14-30), o que implica conscientemente procurá-los e descobri-los.
Os dons ou carismas serão importantes na nossa relação pessoal com Deus, mas têm uma função ou um propósito sobretudo eclesial. Temos dons para servir Deus, a igreja e o próximo. E servir a proclamação da Palavra ou o Evangelho é, claro, servir na igreja. «Servir» ou «serviço» é o mesmo que «diaconia» (do termo grego diakonia). Carisma e diaconia, dom e serviço, estão, pois, ligados – a razão de ser do dom não é a autossatisfação do crente, mas a sua realização individual como crente no serviço da missão da igreja. Assim, usar os dons que temos significa colocá-los voluntariamente ao serviço da e na igreja. Mas, para esses dons serem serviço, têm de ser reconhecidos como tal na igreja. Os dons de cada um não podem ser impostos nem ao próprio (pela igreja) nem pelo próprio (à igreja). No espírito de 1Cor. 12:4-7, o dom de cada um deve ter «utilidade» ou um «fim proveitoso» na igreja (v. 7). Será, pois, a assembleia dos irmãos que manifestará o reconhecimento desses dons em alguns dos seus membros. Mas, para isso acontecer, esses dons têm, de alguma forma, de manifestar-se primeiramente perante todos.
Os dons, bem orientados, tornam-se, assim, serviço (ou diaconia). Ora, daquele que serve diz-se ser um ministro ou que exerce um ministério (uma atividade de serviço).
Os ministérios puramente carismáticos
Os dons ou carismas não podem ser confundidos com quaisquer atributos ou capacidades que possuímos e que podem ser úteis ou ter valor na vida secular. Estes podem até ser importantes no trabalho quotidiano da igreja enquanto comunidade, mas não são necessariamente carismas. Carismas são somente aqueles que apenas servem o Evangelho, a proclamação da Palavra. Paulo enumera-os em Rom. 12:6-8 (profecia, ministério, ensino, exortação, contribuição, presidência e misericórdia), em 1Cor. 12:8-10 (sabedoria, conhecimento, fé, cura, operar milagres, profecia, discernir espíritos, variedade de línguas e interpretação de línguas), em 1Cor. 12:28 (apostolado, profecia, ensino, milagres, cura, socorros, governo e variedade de línguas) e em Efésios 4:11 (apostolado, profecia, evangelismo, pastorado e ensino). Estes carismas manifestam-se nos crentes e são reconhecidos pela igreja, em geral de modo informal. De entre estes, Deus levantou, em certas ocasiões, profetas, apóstolos e doutores (ou mestres), pessoas marcadas por dons invulgares na pregação, na edificação, no ensino e na organização dos crentes.
«Profeta» é alguém que age e se expressa como mensageiro de Deus. No livro de Atos dos Apóstolos, várias figuras são referenciadas com esta qualidade (capítulos 11, 13, 15 e 19). Paulo reconhece a profecia como carisma ativo nas igrejas do seu tempo. Também na história cristã posterior, alguns grupos e igrejas reconheceram nalgumas personalidades esta qualidade. Mas tem havido prudência na sua atribuição, dada a consciência da sua excecionalidade.
«Apóstolo» significa «enviado» e, apesar de a sua obra ter de ser reconhecida também pela igreja, acreditamos que é alguém escolhido por Deus para realizar grandes feitos em seu nome. Além dos doze escolhidos diretamente por Jesus, e de Paulo, são igualmente chamados apóstolos outras figuras referidas no Novo Testamento (seguramente, Barnabé, Apolo, Silvano e Timóteo). Depois destes, certas personalidades poderão receber este qualificativo de determinadas igrejas ou grupos de crentes, mas, em certo sentido, numa aceção analógica relativamente àqueles que Jesus escolheu diretamente (e em que se inclui também Paulo).
«Doutor» (didaskalos em grego) é alguém a quem se reconhece qualidades excecionais na exposição das Escrituras. É defensável que este dom seja considerado um só com o do pastorado (como parece sugerir Efésios 4:11). Paulo refere também os evangelistas, cujo ministério parecia dirigir-se aos pagãos, pelo que podemos compará-lo com os obreiros ou missionários criadores de novas igrejas, distintos dos apóstolos.
Os ministérios formais em ambiente eclesial
De todos estes carismas e ministérios, vimos que pressupunham o reconhecimento da igreja para não serem apenas a manifestação de vocações pessoais. No entanto, a sua natureza é, em grande medida, informal, pois a igreja, embora beneficie do seu reconhecimento, não os mantém regularmente organizados nem nomeia pessoas para os exercer. Eles têm um carácter excecional ou invulgar e distinguem-se dos ministérios de nomeação eclesial, de que fazem parte, nomeadamente, o presbiterado e o diaconado. Este segundo tipo de ministérios na igreja será abordado num artigo do próximo número deste boletim.
[Continua]
Dos dons ao serviço: vocação individual em contexto eclesial
Na igreja, isto é, na reunião dos crentes com o propósito de proclamar a Palavra, todos têm, em maior ou menor medida, dons atribuídos pelo Criador. «Dom» é o mesmo que «carisma», termo grego que deriva de Χάρις (charis) e significa «graça» ou «favor», originando a palavra Χάρισμα (charisma), que significa «dom da graça». Daí que 1Ped. 4:10 afirme que os dons são a manifestação da «multiforme graça de Deus». Nalguns irmãos, os dons ou carismas são visíveis e/ou conscientes; noutros, estão ocultos, às vezes mesmo para quem os transporta. São muitas vezes as circunstâncias que revelam (aos próprios ou aos outros) esses dons escondidos. No entanto, é importante estarmos conscientes de que somos chamados a fazer frutificar os nossos dons (Mateus 25:14-30), o que implica conscientemente procurá-los e descobri-los.
Os dons ou carismas serão importantes na nossa relação pessoal com Deus, mas têm uma função ou um propósito sobretudo eclesial. Temos dons para servir Deus, a igreja e o próximo. E servir a proclamação da Palavra ou o Evangelho é, claro, servir na igreja. «Servir» ou «serviço» é o mesmo que «diaconia» (do termo grego diakonia). Carisma e diaconia, dom e serviço, estão, pois, ligados – a razão de ser do dom não é a autossatisfação do crente, mas a sua realização individual como crente no serviço da missão da igreja. Assim, usar os dons que temos significa colocá-los voluntariamente ao serviço da e na igreja. Mas, para esses dons serem serviço, têm de ser reconhecidos como tal na igreja. Os dons de cada um não podem ser impostos nem ao próprio (pela igreja) nem pelo próprio (à igreja). No espírito de 1Cor. 12:4-7, o dom de cada um deve ter «utilidade» ou um «fim proveitoso» na igreja (v. 7). Será, pois, a assembleia dos irmãos que manifestará o reconhecimento desses dons em alguns dos seus membros. Mas, para isso acontecer, esses dons têm, de alguma forma, de manifestar-se primeiramente perante todos.
Os dons, bem orientados, tornam-se, assim, serviço (ou diaconia). Ora, daquele que serve diz-se ser um ministro ou que exerce um ministério (uma atividade de serviço).
Os ministérios puramente carismáticos
Os dons ou carismas não podem ser confundidos com quaisquer atributos ou capacidades que possuímos e que podem ser úteis ou ter valor na vida secular. Estes podem até ser importantes no trabalho quotidiano da igreja enquanto comunidade, mas não são necessariamente carismas. Carismas são somente aqueles que apenas servem o Evangelho, a proclamação da Palavra. Paulo enumera-os em Rom. 12:6-8 (profecia, ministério, ensino, exortação, contribuição, presidência e misericórdia), em 1Cor. 12:8-10 (sabedoria, conhecimento, fé, cura, operar milagres, profecia, discernir espíritos, variedade de línguas e interpretação de línguas), em 1Cor. 12:28 (apostolado, profecia, ensino, milagres, cura, socorros, governo e variedade de línguas) e em Efésios 4:11 (apostolado, profecia, evangelismo, pastorado e ensino). Estes carismas manifestam-se nos crentes e são reconhecidos pela igreja, em geral de modo informal. De entre estes, Deus levantou, em certas ocasiões, profetas, apóstolos e doutores (ou mestres), pessoas marcadas por dons invulgares na pregação, na edificação, no ensino e na organização dos crentes.
«Profeta» é alguém que age e se expressa como mensageiro de Deus. No livro de Atos dos Apóstolos, várias figuras são referenciadas com esta qualidade (capítulos 11, 13, 15 e 19). Paulo reconhece a profecia como carisma ativo nas igrejas do seu tempo. Também na história cristã posterior, alguns grupos e igrejas reconheceram nalgumas personalidades esta qualidade. Mas tem havido prudência na sua atribuição, dada a consciência da sua excecionalidade.
«Apóstolo» significa «enviado» e, apesar de a sua obra ter de ser reconhecida também pela igreja, acreditamos que é alguém escolhido por Deus para realizar grandes feitos em seu nome. Além dos doze escolhidos diretamente por Jesus, e de Paulo, são igualmente chamados apóstolos outras figuras referidas no Novo Testamento (seguramente, Barnabé, Apolo, Silvano e Timóteo). Depois destes, certas personalidades poderão receber este qualificativo de determinadas igrejas ou grupos de crentes, mas, em certo sentido, numa aceção analógica relativamente àqueles que Jesus escolheu diretamente (e em que se inclui também Paulo).
«Doutor» (didaskalos em grego) é alguém a quem se reconhece qualidades excecionais na exposição das Escrituras. É defensável que este dom seja considerado um só com o do pastorado (como parece sugerir Efésios 4:11). Paulo refere também os evangelistas, cujo ministério parecia dirigir-se aos pagãos, pelo que podemos compará-lo com os obreiros ou missionários criadores de novas igrejas, distintos dos apóstolos.
Os ministérios formais em ambiente eclesial
De todos estes carismas e ministérios, vimos que pressupunham o reconhecimento da igreja para não serem apenas a manifestação de vocações pessoais. No entanto, a sua natureza é, em grande medida, informal, pois a igreja, embora beneficie do seu reconhecimento, não os mantém regularmente organizados nem nomeia pessoas para os exercer. Eles têm um carácter excecional ou invulgar e distinguem-se dos ministérios de nomeação eclesial, de que fazem parte, nomeadamente, o presbiterado e o diaconado. Este segundo tipo de ministérios na igreja será abordado num artigo do próximo número deste boletim.
[Continua]
terça-feira, novembro 08, 2016
PO:LIS:BOA (II)
Um
happening com a senhora agente
A minha perspetiva pedonal (de peão, isto é, de alguém que faz a sua «guerra» urbana diária sobretudo a pé) teve há umas semanas um happening com uma agente da Polícia Municipal. Quis vê-lo como sintomático de muita coisa.
A senhora agente estava de manhãzinha no troço da avenida da República, ainda e sempre em obras, junto à estação de Entre Campos. Dirigi-me a ela para a alertar que os separadores de plástico, colocados no início do quarteirão, para improvisar uma passagem para peões, roubando um pouco à estrada, estavam todos desalinhados, não permitindo a travessia em segurança até ao passeio (ou ao que restava dele).
A resposta instintiva da agente foi qualquer coisa como «Mas o senhor tem de perceber que isto está em obras». Ela não ouvira bem o que eu lhe disse e – julgo eu – não percebeu o alcance da sua atitude, mesmo depois de ter entendido aproximadamente o que eu lhe queria dizer. Ela estava sobretudo a certificar-se de que tudo corria bem entre a obra e os automobilistas. Era o que a posição dela naquele cenário dizia de todas as formas.
Os peões, com ou sem passagens seguras no meio de toda aquela confusão, seriam um género de figurantes que não têm propriamente um papel a desempenhar nem merecem muita atenção. Ora, os peões eram – apenas – os elementos fisicamente mais vulneráveis e em maior perigo naquele cenário. Mas a senhora agente não tinha claramente interiorizado esse facto na forma como via o que ali se passava e como desempenhava a sua função. Se tivesse, teria logo querido saber onde estava e como se encontrava aquela passagem perigosa de que lhe falei.
Tudo o que obtive foi uma promessa vaga de que iria lá ver «logo que possível» (quando a abordei estava a conversar com outro agente). Tive de ir apanhar o comboio e não faço ideia se lá foi ou não, mas ainda ouvi o esclarecimento de que arrumar os separadores não era com ela, mas com os responsáveis da obra. Não me passou pela cabeça tal coisa, mas, mais uma vez, não era nada claro para aquela agente que uma função natural que aquela farda lhe impõe é zelar em absoluto pela segurança das pessoas que estão na área sob o seu policiamento – e que os peões eram, naquele cenário, as mais vulneráveis das pessoas que por ali passavam.
A obrigação dela era alertar imediatamente os responsáveis da obra para a situação de insegurança em que os peões estavam a ser colocados e providenciar a resolução do problema o quanto antes – nem que a obra tivesse de ser interrompida por uns minutos. Posso estar a ser injusto, mas o que pareceu é que a senhora agente entendia a sua missão mais como protetora da obra (prevenindo a possível interferência do trânsito automobilístico na mesma) e do bom curso dos trabalhos, quiçá com vista mais ou menos consciente nos prazos de execução, do que como representante, protetora e agente dos direitos dos munícipes. Direitos que incluem a segurança física.
Neste episódio, vejo duas coisas distintas. Por um lado, uma Polícia Municipal que faz jus à imagem antiga do agente só interessado nas multas de trânsito que permitem apresentar serviço e dar mais renda à Câmara Municipal, ou seja, um governo municipal autocentrado, sem cultura de serviço fora dos exercícios retóricos; por outro lado, mais uma faceta da situação de menoridade de direitos de que em Lisboa gozam os munícipes enquanto peões. Voltaremos mais vezes nesta coluna a esta segunda situação.
Perante situações destas, não tenho qualquer dúvida de que devemos ser insistentes, dizendo a agentes como aquela o que devem fazer, as vezes que for necessário. Cada um tem de fazer o que está certo sempre que for necessário. É a única forma consequente de não desistirmos da cidade, de não a entregar de bandeja, sem luta, ao monopólio funcional dos incompetentes e dos abusadores – com farda e sem ela, com crachá da Câmara Municipal ou sem ele.
terça-feira, novembro 01, 2016
PO:LIS:BOA (I)
A
melhor forma de vida
Nasci
em Lisboa, na Avenida António Augusto de Aguiar (Clínica Cabral Sacadura). O
meu pai era madeirense, mas veio para Lisboa na juventude, para estudar e
trabalhar. A minha mãe, embora nascida em Cascais, viveu a maior parte da sua
vida de solteira em Lisboa (Avenida Almirante Reis e Avenidas Novas) e aqui
também se formou em enfermagem. Foi em Lisboa que os meus pais se conheceram.
Depois das andanças pelo Ultramar (o meu pai era oficial do Exército), vivi
sempre perto de Lisboa (em Oeiras e, mais tempo, em Cascais), mas comecei a
fazer a minha vida na capital desde que em 1987 entrei na universidade. Resido
nesta cidade desde 2004 e, uns anos antes, foi aqui que conheci a minha mulher.
Sinto-me lisboeta, sem qualquer sombra de dúvida. Adoro viver em Lisboa, embora
sinta que pudesse viver igualmente bem noutras grandes cidades. Lisboa tem
especificidades de que gosto mais ou menos, mas é através dela que participo da
experiência universal e milenária da vida em grandes urbes – com a convicção de
que é a melhor forma de vida.
Há
alguns anos (na verdade, há já mais de um bom quarto de século) fui o que eu
próprio chamava “um ruralista”. Acreditava que a vida rural era mais saudável,
mais virtuosa e mais potenciadora de felicidade do que a vida em cidades. No
entanto, nada na minha infância ou adolescência, sempre passadas em cenários
urbanos ou suburbanos, me permitia ter essas ideias a partir de experiência
vivida. Antes de fazer 20 anos até escrevi um género de manifesto, inspirado
num contacto literário em segunda mão com o grupo de Andrew Lytle («Os
Desterrados», Diário de Notícias, 19.01.1988, supl. DN Jovem). O
meu conceito de ruralidade era todo abstrato, literário ou ideológico, menos
apoiado em impressões de curtas viagens do que em imagens de filmes e
construções mentais – era, ironicamente, um “mito urbano”, uma fantasia
projetada no tempo histórico sem qualquer relação com uma perceção refletida da
realidade passada ou presente.
Bastante
mais tarde viria a descobrir que a satisfação estética e sensorial procurada no
utopismo “naturalista” e paisagístico, implícita no ruralismo (pelo menos
naquele que era o meu), tem muito mais possibilidades de aplicação nos jardins
em espaço urbano do que nas grandes extensões do espaço rural – sobretudo se
pensarmos no tipo de jardim inglês (oposto ao geometrismo do jardim francês),
que procura “copiar” a Natureza, até “melhorá-la” esteticamente, mas
domesticando-a. O jardim urbano, que, desta forma, pode ser visto como uma
aplicação da noção estética de Aristóteles, mostra como a cidade transforma e
humaniza o espaço. Os jardins botânicos e zoológicos participam deste utopismo
(são versões “conservacionistas” do mesmo) – mas são também criações das
cidades.
Com
o passar dos anos, foi a História que me foi despertando para a importância das
cidades como espaço de plena realização do ser humano. Obviamente, este novo
olhar sobre as cidades implicava ter em consideração o que de menos agradável
há e houve nelas – mas implicava também olhar dessa forma para o espaço rural.
Um elemento “disfuncional” na minha ideia anterior de ruralidade era o
conhecimento histórico que tinha da atratividade das cidades para as populações
rurais, mesmo que a reduzisse a miragem a que sucumbiam os mais “fracos” de
carácter. É evidente que esse juízo romântico não resistiu a um conhecimento
mais aprofundado das motivações económicas daquela atração. E eu ainda nem
estava desperto para a abordagem desta problemática da perspetiva mcneilliana –
das cidades como sorvedouros mortais de migrantes rurais até à era da vacinação
massificada. W. H. McNeill explorou extensivamente essa temática no seu livro,
já clássico, Plagues and Peoples
(1976), mas de que se pode ter um “cheirinho” no seu ensaio «Cities and Their Consequences» (2007).
Uma
perspetiva histórica mais informada da relação do Homem com o meio ambiente
também foi importante para a alteração da minha perceção das cidades. A par de
W. H. McNeill, que me deu uma consciência global e cosmopolita da condição
humana no tempo e no espaço no seu ainda e sempre magnífico e completo The Rise of the West: A History of the Human
Community (1964, reed. 1991), foi fundamental para mim a visão de
longuíssima duração da abordagem histórico-biológica de Alfred W. Crosby em Ecological Imperialism: The Biological
Expansion of Europe (1986). Este autor mostrou-me como os grupos humanos
sempre alteraram os ecossistemas em que se estabeleceram, por regra
profundamente, e que a “ruralidade” colocada nesta perspetiva era uma alteração
do meio ambiente historicamente construída e não tão distinta do ambiente
urbano como à primeira vista podia parecer. Em relação ao espaço rural, as
cidades aparecem, ao longo da história, mais como um tipo de povoamento
diferenciado (concentrado) do que como uma descontinuidade artificial em
relação à restante ocupação humana do espaço geográfico. O povoamento disperso
caracteriza o “campo” e o concentrado a “cidade”.
A
experiência histórica de viver num espaço concentrado surgiu-me rapidamente
como desafiante e cheia de possibilidades.
Não
que os riscos não estejam lá. McNeill realçou a facilidade de transmissão de
vírus onde os seres humanos se juntam em espaços de grande densidade
populacional; mas, de acordo com a chamada “lei de McNeill” (apresentada em Plagues and Peoples), as populações
urbanas assim massacradas rapidamente se tornavam agentes coletivos de
domesticação desses perigos biológicos para a espécie e ganhavam uma
resiliência que explica boa parte da evolução da civilização até aos nossos
dias. A revolução da vacinação massificada no século XX tornou depois as
cidades em espaços mais aprazíveis para quem vinha do “campo” – e, na verdade,
para toda a gente. Mas, naquele século, outros perigos foram criados, mais ou
menos involuntariamente, pela tecnologia bélica (que tornava as cidades alvos
preferenciais da guerra total) e, mais corriqueiramente, pelas boas intenções
ou obsessões totalmente humanas dos reguladores e dos planeadores urbanos. O
economista sueco Assar Lindbeck escreveu um dia que a regulação do mercado de
arrendamento era a segunda forma mais eficaz de destruir uma cidade – a seguir
a um bombardeamento aéreo. E Jane Jacobs, no seu imortal Death and Life of
Great American Cities (1961), explicou com perspicácia como a planificação
urbana obcecada com a funcionalidade abstrata pode tornar as cidades
disfuncionais para os seus habitantes concretos. Mas as cidades sobreviveram a
todos estes tipos de perigos – aos últimos, sobretudo com o senso comum e a
espontaneidade do “viver habitualmente”, que são a forma mais eficaz de
resistência às planeadas pressões dos disciplinadores administrativos.
A
propósito da espontaneidade do “viver habitualmente” em cidade, muito haveria a
dizer sobre o papel humanizador e possibilitador da vida urbana desempenhado
pelo comércio de rua. Este fenómeno económico urbano, que é uma complexa teia
de iniciativas individuais e relações de mercado, não é planificado por ninguém
e é o que de mais funcional pode haver numa grande cidade. As lojas em piso
térreo e abertas para a rua são uma conquista civilizacional em que nem
pensamos. Já era assim em todas as cidades romanas, que são as que nos deixaram
vestígios arqueológicos mais eloquentes. As lojas de víveres, de roupas, de
serviços, de consumo, de o que quer que seja, são não só o esteio económico da
vida urbana, disseminado por absolutamente todas as ruas de qualquer grande
cidade, mas também a mais forte e extensa rede de sociabilidade e contacto
humano dentro do espaço urbano. O comércio vai até à mais pobre e recôndita
rua, como nenhum esforço planeado saberia fazer. A sua presença e a forma como
se anuncia, virando-se para a rua com tabuletas, montras, esplanadas, dá cor e
sinais de vida às artérias e aos bairros, mesmo os mais pobres ou sombrios. O
conceito de montra, em que o comerciante, com arte ou método, comunica a quem
passa o que vende – e contribui para embelezar e enriquecer de diversidade os
percursos de quem calcorreia cada rua –, é uma das glórias da cidade.
A
diversidade patente no comércio é um indício muito visual de que as cidades,
pela concentração populacional, favorecem a especialização associada ao
processo de divisão do trabalho explicado por Adam Smith, mas também a
consolidação social da pluralidade de crenças, gostos, opções
e modos de vida, que dão aos seus habitantes possibilidades viáveis e
acrescidas de sociabilidade fora da família e da vizinhança. Esta é uma das
razões mais claras para as cidades serem consideradas um espaço de liberdade –
porque as escolhas são mais amplas e realmente viabilizadoras da
autodeterminação do indivíduo. Mas aquelas diversidade e concentração foram
igualmente a fonte de uma recriação do trabalho, assente já não só em ofícios
que teriam um futuro industrial, mas em profissionais de serviços múltiplos que
foram revelando uma civilização cada vez mais talentosa e capaz de gerar um
refinamento crescente da vida comunitária e privada.
A
arquitetura urbana não deixa de ser uma analogia construída desta criatividade
institucional que foi paralela da especialização económica e cultural. No seu
desenvolvimento técnico, estilístico e monumental, é patente como a
criatividade humana encontra na cidade o “ecossistema” adequado para prosperar e
se fixar no espaço, reinventando-o e até multiplicando-o onde ele mais
escasseia – daí a aventura tipicamente urbana de construir em altura. Essas
possibilidades arquitetónicas, aliadas à concentração populacional, explicam a
forma material de instituições eminentemente urbanas e tão diversas quanto os
hospitais, as universidades, os teatros, os clubes desportivos, as grandes
empresas ou as grandes áreas comerciais que se conceberam – como as antigas
ruas da Baixa – numa densa «cidade» de oferta comercial concentrada.
As
cidades são as pessoas que as habitam – e, como J. Jacobs bem viu, devem ter a
“dimensão” dessas pessoas. Não se trata de uma dimensão territorial, mas de uma
dimensão sensória e de raio de ação, à escala do indivíduo. As ruas, as artérias
das cidades, devem ter residentes e permitir a circulação das pessoas a pé, sem
que isso obste a que circulem veículos e a que outras pessoas aí trabalhem.
Ruas sem habitantes nem peões, ou sem lojas, são o começo do inferno – isto é,
da morte da cidade. Ter peões significa ter passeios e ter habitantes significa
que aqueles têm de ser amplos e seguros para crianças e idosos, que não podem
viver confinados ao interior dos edifícios. Os parques e jardins são ótimos,
mas são outra questão.
A
presença dos idosos nas ruas é, aliás, um fator fundamental para a manutenção das
relações de vizinhança no espaço urbano, pois são eles quem tem mais tempo para
as cultivar no dia-a-dia na área onde vivem, transportando um historial de
conhecimentos e relações pessoais que facilita a apropriação do espaço. Como
ensinou J. Jacobs, tanto quanto as lojas de rua, estes residentes idosos ajudam
numa função descurada mas vital de «vigilância» informal que põe em sentido
«amigos do alheio» e praticantes de violência pública ou privada. É uma
demonstração de como as cidades precisam de residentes e de comércio em cada
rua para serem espaços aprazíveis e seguros.
O
governo municipal, tal como o governo central, pode ser o maior inimigo desta
escala humana da cidade. Ele concentra o poder de agir coletivamente a uma
dimensão que pode amplificar desastradamente a propensão humana para o
disparate – sobretudo quando lhe falta ponderação e humildade ou abundam o
entusiasmo e a prepotência. Talvez seja abusivo considerar o governo municipal
outra das glórias urbanas, mas, mesmo sem discutir a sua origem, é indiscutível
que as cidades se adaptaram bem a ele e deram um contributo fundamental para a
sua evolução.
O
governo da cidade sempre tendeu a ser coisa de poucos, permeável a interesses
fortes e ativos e a ser submisso ao poder central. É isso que explica o
potencial que o entusiasmo ou a prepotência dos decisores nas questões públicas
têm para fazer estragos na vida dos outros habitantes da cidade. Essas decisões
condicionam e podem destruir aquilo que os habitantes sabem fazer por si, nas
suas relações económicas e de sociabilidade. O controlo democrático daquelas
decisões, mesmo que por entrepostos representantes eleitos, tem e terá sempre
limites de eficácia, mas é uma garantia valiosa. Outro mecanismo limitador dos
estragos potenciais da concentração do poder é a descentralização – que na
cidade portuguesa tem na paróquia ou freguesia urbana um recipiente obvio. Dada
a sua dimensão de maior proximidade às relações de vizinhança e aos ambientes
de rua, a freguesia pode ser mais eficazmente controlada por munícipes
motivados pela defesa dos seus interesses e pontos de vista – e este controlo
democrático mais localizado pode tornar as freguesias um contrapeso limitador e
questionador do governo municipal e da sua articulação com os interesses fortes
mais ou menos organizados.
Uma
grande cidade como Lisboa, com um porto aberto ao mar, sempre deu aos seus
habitantes uma possibilidade fática ou simbólica de saída – o que é uma
condição acrescida de liberdade. O porto é também, claro, um meio e um sinal de
abertura ao mundo, sobretudo ao restante mundo urbano, e, portanto, um pólo
económico e cultural de cosmopolitismo. Quem diz porto, diz hoje grande central
ferroviária internacional ou aeroporto. A entrada e a saída (do residente ou do
viajante) é fundamental para explicar a condição humana e civilizacional da
cidade; esta, para ser a melhor forma de vida, não pode ser autárcica.
As pequenas polis que assim viviam, fechadas sobre si mesmas, não eram
verdadeiras cidades como hoje as entendemos. Foi a comunicação através do mar
ou a sua integração numa vasta rede de trocas, favorecida pelos espaços
imperiais da Antiguidade, que fez de alguns desses aglomerados realidades em
que já reconhecemos cidades (urbes).
Cada
cidade é sem dúvida única no seu nome, na sua história, nos seus edifícios e
praças emblemáticas, em certos hábitos dos seus habitantes – e, por isso,
portadora de uma identidade inegável; mas, para ser cidade, não
tem apenas as características gerais aqui referidas, encontradas também nas
outras cidades. Para quem a habita, cada cidade é a realidade mais genuína e
tangível da civilização – assim como cada um o é para si próprio da humanidade.
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