terça-feira, novembro 08, 2016

PO:LIS:BOA (II)

Um happening com a senhora agente


A minha perspetiva pedonal (de peão, isto é, de alguém que faz a sua «guerra» urbana diária sobretudo a pé) teve há umas semanas um happening com uma agente da Polícia Municipal. Quis vê-lo como sintomático de muita coisa.

A senhora agente estava de manhãzinha no troço da avenida da República, ainda e sempre em obras, junto à estação de Entre Campos. Dirigi-me a ela para a alertar que os separadores de plástico, colocados no início do quarteirão, para improvisar uma passagem para peões, roubando um pouco à estrada, estavam todos desalinhados, não permitindo a travessia em segurança até ao passeio (ou ao que restava dele).

A resposta instintiva da agente foi qualquer coisa como «Mas o senhor tem de perceber que isto está em obras». Ela não ouvira bem o que eu lhe disse e – julgo eu – não percebeu o alcance da sua atitude, mesmo depois de ter entendido aproximadamente o que eu lhe queria dizer. Ela estava sobretudo a certificar-se de que tudo corria bem entre a obra e os automobilistas. Era o que a posição dela naquele cenário dizia de todas as formas.

Os peões, com ou sem passagens seguras no meio de toda aquela confusão, seriam um género de figurantes que não têm propriamente um papel a desempenhar nem merecem muita atenção. Ora, os peões eram – apenas – os elementos fisicamente mais vulneráveis e em maior perigo naquele cenário. Mas a senhora agente não tinha claramente interiorizado esse facto na forma como via o que ali se passava e como desempenhava a sua função. Se tivesse, teria logo querido saber onde estava e como se encontrava aquela passagem perigosa de que lhe falei.

Tudo o que obtive foi uma promessa vaga de que iria lá ver «logo que possível» (quando a abordei estava a conversar com outro agente). Tive de ir apanhar o comboio e não faço ideia se lá foi ou não, mas ainda ouvi o esclarecimento de que arrumar os separadores não era com ela, mas com os responsáveis da obra. Não me passou pela cabeça tal coisa, mas, mais uma vez, não era nada claro para aquela agente que uma função natural que aquela farda lhe impõe é zelar em absoluto pela segurança das pessoas que estão na área sob o seu policiamento – e que os peões eram, naquele cenário, as mais vulneráveis das pessoas que por ali passavam.

A obrigação dela era alertar imediatamente os responsáveis da obra para a situação de insegurança em que os peões estavam a ser colocados e providenciar a resolução do problema o quanto antes – nem que a obra tivesse de ser interrompida por uns minutos. Posso estar a ser injusto, mas o que pareceu é que a senhora agente entendia a sua missão mais como protetora da obra (prevenindo a possível interferência do trânsito automobilístico na mesma) e do bom curso dos trabalhos, quiçá com vista mais ou menos consciente nos prazos de execução, do que como representante, protetora e agente dos direitos dos munícipes. Direitos que incluem a segurança física.

Neste episódio, vejo duas coisas distintas. Por um lado, uma Polícia Municipal que faz jus à imagem antiga do agente só interessado nas multas de trânsito que permitem apresentar serviço e dar mais renda à Câmara Municipal, ou seja, um governo municipal autocentrado, sem cultura de serviço fora dos exercícios retóricos; por outro lado, mais uma faceta da situação de menoridade de direitos de que em Lisboa gozam os munícipes enquanto peões. Voltaremos mais vezes nesta coluna a esta segunda situação.

Perante situações destas, não tenho qualquer dúvida de que devemos ser insistentes, dizendo a agentes como aquela o que devem fazer, as vezes que for necessário. Cada um tem de fazer o que está certo sempre que for necessário. É a única forma consequente de não desistirmos da cidade, de não a entregar de bandeja, sem luta, ao monopólio funcional dos incompetentes e dos abusadores – com farda e sem ela, com crachá da Câmara Municipal ou sem ele.