[Grão de Trigo, Abril 2015, pp. 2-3.]
Dos dons ao serviço: vocação
individual em contexto eclesial
Na igreja, isto é, na reunião dos crentes
com o propósito de proclamar a Palavra, todos têm, em maior ou menor medida,
dons atribuídos pelo Criador. «Dom» é o mesmo que «carisma», termo grego que
deriva de Χάρις
(charis) e
significa «graça» ou «favor», originando a palavra Χάρισμα (charisma), que significa «dom da graça». Daí que 1Ped. 4:10 afirme que os dons são a manifestação da
«multiforme graça de Deus». Nalguns irmãos, os dons ou carismas são visíveis
e/ou conscientes; noutros, estão ocultos, às vezes mesmo para quem os
transporta. São muitas vezes as circunstâncias que revelam (aos próprios ou aos
outros) esses dons escondidos. No entanto, é importante estarmos conscientes de
que somos chamados a fazer frutificar os nossos dons (Mateus 25:14-30), o que
implica conscientemente procurá-los e descobri-los.
Os dons ou carismas serão
importantes na nossa relação pessoal com Deus, mas têm uma função ou um
propósito sobretudo eclesial. Temos dons para
servir Deus, a igreja e o próximo. E servir a proclamação da Palavra ou o
Evangelho é, claro, servir na igreja.
«Servir» ou «serviço» é o mesmo que «diaconia» (do termo grego diakonia). Carisma e diaconia, dom e
serviço, estão, pois, ligados – a razão de ser do dom não é a autossatisfação
do crente, mas a sua realização individual como crente no serviço da missão da
igreja. Assim, usar os dons que temos significa colocá-los voluntariamente ao
serviço da e na igreja. Mas, para esses dons serem serviço, têm de ser
reconhecidos como tal na igreja. Os dons de cada um não podem ser impostos nem
ao próprio (pela igreja) nem pelo próprio (à igreja). No espírito de 1Cor.
12:4-7, o dom de cada um deve ter «utilidade» ou um «fim proveitoso» na igreja
(v. 7). Será, pois, a assembleia dos irmãos que manifestará o reconhecimento
desses dons em alguns dos seus membros. Mas, para isso acontecer, esses dons
têm, de alguma forma, de manifestar-se primeiramente perante todos.
Os dons,
bem orientados, tornam-se, assim, serviço (ou diaconia). Ora, daquele que serve
diz-se ser um ministro ou que exerce um ministério (uma atividade de serviço).
Os ministérios puramente carismáticos
Os
dons ou carismas não podem ser confundidos com quaisquer atributos ou
capacidades que possuímos e que podem ser úteis ou ter valor na vida secular.
Estes podem até ser importantes no trabalho quotidiano da igreja enquanto
comunidade, mas não são necessariamente carismas. Carismas são somente aqueles
que apenas servem o Evangelho, a proclamação da Palavra. Paulo enumera-os em
Rom. 12:6-8 (profecia, ministério, ensino, exortação, contribuição, presidência
e misericórdia), em 1Cor. 12:8-10 (sabedoria, conhecimento, fé, cura, operar
milagres, profecia, discernir espíritos, variedade de línguas e interpretação
de línguas), em 1Cor. 12:28 (apostolado, profecia, ensino, milagres, cura,
socorros, governo e variedade de línguas) e em Efésios 4:11 (apostolado,
profecia, evangelismo, pastorado e ensino). Estes carismas manifestam-se nos
crentes e são reconhecidos pela igreja, em geral de modo informal. De entre
estes, Deus levantou, em certas ocasiões, profetas, apóstolos e doutores (ou
mestres), pessoas marcadas por dons invulgares na pregação, na edificação, no
ensino e na organização dos crentes.
«Profeta» é alguém que age e se expressa
como mensageiro de Deus. No livro de Atos dos Apóstolos, várias figuras são
referenciadas com esta qualidade (capítulos 11, 13, 15 e 19). Paulo reconhece a
profecia como carisma ativo nas igrejas do seu tempo. Também na história cristã
posterior, alguns grupos e igrejas reconheceram nalgumas personalidades esta
qualidade. Mas tem havido prudência na sua atribuição, dada a consciência da
sua excecionalidade.
«Apóstolo» significa «enviado» e, apesar de a sua obra
ter de ser reconhecida também pela igreja, acreditamos que é alguém escolhido
por Deus para realizar grandes feitos em seu nome. Além dos doze escolhidos
diretamente por Jesus, e de Paulo, são igualmente chamados apóstolos outras
figuras referidas no Novo Testamento (seguramente, Barnabé, Apolo, Silvano e
Timóteo). Depois destes, certas personalidades poderão receber este
qualificativo de determinadas igrejas ou grupos de crentes, mas, em certo
sentido, numa aceção analógica relativamente àqueles que Jesus escolheu
diretamente (e em que se inclui também Paulo).
«Doutor» (didaskalos em grego) é alguém a quem se reconhece qualidades
excecionais na exposição das Escrituras. É defensável que este dom seja
considerado um só com o do pastorado (como parece sugerir Efésios 4:11). Paulo
refere também os evangelistas, cujo ministério parecia dirigir-se aos pagãos,
pelo que podemos compará-lo com os obreiros ou missionários criadores de novas
igrejas, distintos dos apóstolos.
Os
ministérios formais em ambiente eclesial
De todos estes carismas e
ministérios, vimos que pressupunham o reconhecimento da igreja para não serem
apenas a manifestação de vocações pessoais. No entanto, a sua natureza é, em
grande medida, informal, pois a igreja, embora beneficie do seu reconhecimento,
não os mantém regularmente organizados nem nomeia pessoas para os exercer. Eles
têm um carácter excecional ou invulgar e distinguem-se dos ministérios de
nomeação eclesial, de que fazem parte, nomeadamente, o presbiterado e o
diaconado. Este segundo tipo de ministérios na igreja será abordado num artigo
do próximo número deste boletim.
[Continua]