terça-feira, novembro 01, 2016

PO:LIS:BOA (I)


A melhor forma de vida

Nasci em Lisboa, na Avenida António Augusto de Aguiar (Clínica Cabral Sacadura). O meu pai era madeirense, mas veio para Lisboa na juventude, para estudar e trabalhar. A minha mãe, embora nascida em Cascais, viveu a maior parte da sua vida de solteira em Lisboa (Avenida Almirante Reis e Avenidas Novas) e aqui também se formou em enfermagem. Foi em Lisboa que os meus pais se conheceram. Depois das andanças pelo Ultramar (o meu pai era oficial do Exército), vivi sempre perto de Lisboa (em Oeiras e, mais tempo, em Cascais), mas comecei a fazer a minha vida na capital desde que em 1987 entrei na universidade. Resido nesta cidade desde 2004 e, uns anos antes, foi aqui que conheci a minha mulher. Sinto-me lisboeta, sem qualquer sombra de dúvida. Adoro viver em Lisboa, embora sinta que pudesse viver igualmente bem noutras grandes cidades. Lisboa tem especificidades de que gosto mais ou menos, mas é através dela que participo da experiência universal e milenária da vida em grandes urbes – com a convicção de que é a melhor forma de vida.

Há alguns anos (na verdade, há já mais de um bom quarto de século) fui o que eu próprio chamava “um ruralista”. Acreditava que a vida rural era mais saudável, mais virtuosa e mais potenciadora de felicidade do que a vida em cidades. No entanto, nada na minha infância ou adolescência, sempre passadas em cenários urbanos ou suburbanos, me permitia ter essas ideias a partir de experiência vivida. Antes de fazer 20 anos até escrevi um género de manifesto, inspirado num contacto literário em segunda mão com o grupo de Andrew Lytle («Os Desterrados», Diário de Notícias, 19.01.1988, supl. DN Jovem). O meu conceito de ruralidade era todo abstrato, literário ou ideológico, menos apoiado em impressões de curtas viagens do que em imagens de filmes e construções mentais – era, ironicamente, um “mito urbano”, uma fantasia projetada no tempo histórico sem qualquer relação com uma perceção refletida da realidade passada ou presente.

Bastante mais tarde viria a descobrir que a satisfação estética e sensorial procurada no utopismo “naturalista” e paisagístico, implícita no ruralismo (pelo menos naquele que era o meu), tem muito mais possibilidades de aplicação nos jardins em espaço urbano do que nas grandes extensões do espaço rural – sobretudo se pensarmos no tipo de jardim inglês (oposto ao geometrismo do jardim francês), que procura “copiar” a Natureza, até “melhorá-la” esteticamente, mas domesticando-a. O jardim urbano, que, desta forma, pode ser visto como uma aplicação da noção estética de Aristóteles, mostra como a cidade transforma e humaniza o espaço. Os jardins botânicos e zoológicos participam deste utopismo (são versões “conservacionistas” do mesmo) – mas são também criações das cidades.

Com o passar dos anos, foi a História que me foi despertando para a importância das cidades como espaço de plena realização do ser humano. Obviamente, este novo olhar sobre as cidades implicava ter em consideração o que de menos agradável há e houve nelas – mas implicava também olhar dessa forma para o espaço rural. Um elemento “disfuncional” na minha ideia anterior de ruralidade era o conhecimento histórico que tinha da atratividade das cidades para as populações rurais, mesmo que a reduzisse a miragem a que sucumbiam os mais “fracos” de carácter. É evidente que esse juízo romântico não resistiu a um conhecimento mais aprofundado das motivações económicas daquela atração. E eu ainda nem estava desperto para a abordagem desta problemática da perspetiva mcneilliana – das cidades como sorvedouros mortais de migrantes rurais até à era da vacinação massificada. W. H. McNeill explorou extensivamente essa temática no seu livro, já clássico, Plagues and Peoples (1976), mas de que se pode ter um “cheirinho” no seu ensaio «Cities and Their Consequences» (2007).

Uma perspetiva histórica mais informada da relação do Homem com o meio ambiente também foi importante para a alteração da minha perceção das cidades. A par de W. H. McNeill, que me deu uma consciência global e cosmopolita da condição humana no tempo e no espaço no seu ainda e sempre magnífico e completo The Rise of the West: A History of the Human Community (1964, reed. 1991), foi fundamental para mim a visão de longuíssima duração da abordagem histórico-biológica de Alfred W. Crosby em Ecological Imperialism: The Biological Expansion of Europe (1986). Este autor mostrou-me como os grupos humanos sempre alteraram os ecossistemas em que se estabeleceram, por regra profundamente, e que a “ruralidade” colocada nesta perspetiva era uma alteração do meio ambiente historicamente construída e não tão distinta do ambiente urbano como à primeira vista podia parecer. Em relação ao espaço rural, as cidades aparecem, ao longo da história, mais como um tipo de povoamento diferenciado (concentrado) do que como uma descontinuidade artificial em relação à restante ocupação humana do espaço geográfico. O povoamento disperso caracteriza o “campo” e o concentrado a “cidade”.

A experiência histórica de viver num espaço concentrado surgiu-me rapidamente como desafiante e cheia de possibilidades.

Não que os riscos não estejam lá. McNeill realçou a facilidade de transmissão de vírus onde os seres humanos se juntam em espaços de grande densidade populacional; mas, de acordo com a chamada “lei de McNeill” (apresentada em Plagues and Peoples), as populações urbanas assim massacradas rapidamente se tornavam agentes coletivos de domesticação desses perigos biológicos para a espécie e ganhavam uma resiliência que explica boa parte da evolução da civilização até aos nossos dias. A revolução da vacinação massificada no século XX tornou depois as cidades em espaços mais aprazíveis para quem vinha do “campo” – e, na verdade, para toda a gente. Mas, naquele século, outros perigos foram criados, mais ou menos involuntariamente, pela tecnologia bélica (que tornava as cidades alvos preferenciais da guerra total) e, mais corriqueiramente, pelas boas intenções ou obsessões totalmente humanas dos reguladores e dos planeadores urbanos. O economista sueco Assar Lindbeck escreveu um dia que a regulação do mercado de arrendamento era a segunda forma mais eficaz de destruir uma cidade – a seguir a um bombardeamento aéreo. E Jane Jacobs, no seu imortal Death and Life of Great American Cities (1961), explicou com perspicácia como a planificação urbana obcecada com a funcionalidade abstrata pode tornar as cidades disfuncionais para os seus habitantes concretos. Mas as cidades sobreviveram a todos estes tipos de perigos – aos últimos, sobretudo com o senso comum e a espontaneidade do “viver habitualmente”, que são a forma mais eficaz de resistência às planeadas pressões dos disciplinadores administrativos.

A propósito da espontaneidade do “viver habitualmente” em cidade, muito haveria a dizer sobre o papel humanizador e possibilitador da vida urbana desempenhado pelo comércio de rua. Este fenómeno económico urbano, que é uma complexa teia de iniciativas individuais e relações de mercado, não é planificado por ninguém e é o que de mais funcional pode haver numa grande cidade. As lojas em piso térreo e abertas para a rua são uma conquista civilizacional em que nem pensamos. Já era assim em todas as cidades romanas, que são as que nos deixaram vestígios arqueológicos mais eloquentes. As lojas de víveres, de roupas, de serviços, de consumo, de o que quer que seja, são não só o esteio económico da vida urbana, disseminado por absolutamente todas as ruas de qualquer grande cidade, mas também a mais forte e extensa rede de sociabilidade e contacto humano dentro do espaço urbano. O comércio vai até à mais pobre e recôndita rua, como nenhum esforço planeado saberia fazer. A sua presença e a forma como se anuncia, virando-se para a rua com tabuletas, montras, esplanadas, dá cor e sinais de vida às artérias e aos bairros, mesmo os mais pobres ou sombrios. O conceito de montra, em que o comerciante, com arte ou método, comunica a quem passa o que vende – e contribui para embelezar e enriquecer de diversidade os percursos de quem calcorreia cada rua –, é uma das glórias da cidade.

A diversidade patente no comércio é um indício muito visual de que as cidades, pela concentração populacional, favorecem a especialização associada ao processo de divisão do trabalho explicado por Adam Smith, mas também a consolidação social da pluralidade de crenças, gostos, opções e modos de vida, que dão aos seus habitantes possibilidades viáveis e acrescidas de sociabilidade fora da família e da vizinhança. Esta é uma das razões mais claras para as cidades serem consideradas um espaço de liberdade – porque as escolhas são mais amplas e realmente viabilizadoras da autodeterminação do indivíduo. Mas aquelas diversidade e concentração foram igualmente a fonte de uma recriação do trabalho, assente já não só em ofícios que teriam um futuro industrial, mas em profissionais de serviços múltiplos que foram revelando uma civilização cada vez mais talentosa e capaz de gerar um refinamento crescente da vida comunitária e privada.

A arquitetura urbana não deixa de ser uma analogia construída desta criatividade institucional que foi paralela da especialização económica e cultural. No seu desenvolvimento técnico, estilístico e monumental, é patente como a criatividade humana encontra na cidade o “ecossistema” adequado para prosperar e se fixar no espaço, reinventando-o e até multiplicando-o onde ele mais escasseia – daí a aventura tipicamente urbana de construir em altura. Essas possibilidades arquitetónicas, aliadas à concentração populacional, explicam a forma material de instituições eminentemente urbanas e tão diversas quanto os hospitais, as universidades, os teatros, os clubes desportivos, as grandes empresas ou as grandes áreas comerciais que se conceberam – como as antigas ruas da Baixa – numa densa «cidade» de oferta comercial concentrada.

As cidades são as pessoas que as habitam – e, como J. Jacobs bem viu, devem ter a “dimensão” dessas pessoas. Não se trata de uma dimensão territorial, mas de uma dimensão sensória e de raio de ação, à escala do indivíduo. As ruas, as artérias das cidades, devem ter residentes e permitir a circulação das pessoas a pé, sem que isso obste a que circulem veículos e a que outras pessoas aí trabalhem. Ruas sem habitantes nem peões, ou sem lojas, são o começo do inferno – isto é, da morte da cidade. Ter peões significa ter passeios e ter habitantes significa que aqueles têm de ser amplos e seguros para crianças e idosos, que não podem viver confinados ao interior dos edifícios. Os parques e jardins são ótimos, mas são outra questão.

A presença dos idosos nas ruas é, aliás, um fator fundamental para a manutenção das relações de vizinhança no espaço urbano, pois são eles quem tem mais tempo para as cultivar no dia-a-dia na área onde vivem, transportando um historial de conhecimentos e relações pessoais que facilita a apropriação do espaço. Como ensinou J. Jacobs, tanto quanto as lojas de rua, estes residentes idosos ajudam numa função descurada mas vital de «vigilância» informal que põe em sentido «amigos do alheio» e praticantes de violência pública ou privada. É uma demonstração de como as cidades precisam de residentes e de comércio em cada rua para serem espaços aprazíveis e seguros.

O governo municipal, tal como o governo central, pode ser o maior inimigo desta escala humana da cidade. Ele concentra o poder de agir coletivamente a uma dimensão que pode amplificar desastradamente a propensão humana para o disparate – sobretudo quando lhe falta ponderação e humildade ou abundam o entusiasmo e a prepotência. Talvez seja abusivo considerar o governo municipal outra das glórias urbanas, mas, mesmo sem discutir a sua origem, é indiscutível que as cidades se adaptaram bem a ele e deram um contributo fundamental para a sua evolução.

O governo da cidade sempre tendeu a ser coisa de poucos, permeável a interesses fortes e ativos e a ser submisso ao poder central. É isso que explica o potencial que o entusiasmo ou a prepotência dos decisores nas questões públicas têm para fazer estragos na vida dos outros habitantes da cidade. Essas decisões condicionam e podem destruir aquilo que os habitantes sabem fazer por si, nas suas relações económicas e de sociabilidade. O controlo democrático daquelas decisões, mesmo que por entrepostos representantes eleitos, tem e terá sempre limites de eficácia, mas é uma garantia valiosa. Outro mecanismo limitador dos estragos potenciais da concentração do poder é a descentralização – que na cidade portuguesa tem na paróquia ou freguesia urbana um recipiente obvio. Dada a sua dimensão de maior proximidade às relações de vizinhança e aos ambientes de rua, a freguesia pode ser mais eficazmente controlada por munícipes motivados pela defesa dos seus interesses e pontos de vista – e este controlo democrático mais localizado pode tornar as freguesias um contrapeso limitador e questionador do governo municipal e da sua articulação com os interesses fortes mais ou menos organizados.

Uma grande cidade como Lisboa, com um porto aberto ao mar, sempre deu aos seus habitantes uma possibilidade fática ou simbólica de saída – o que é uma condição acrescida de liberdade. O porto é também, claro, um meio e um sinal de abertura ao mundo, sobretudo ao restante mundo urbano, e, portanto, um pólo económico e cultural de cosmopolitismo. Quem diz porto, diz hoje grande central ferroviária internacional ou aeroporto. A entrada e a saída (do residente ou do viajante) é fundamental para explicar a condição humana e civilizacional da cidade; esta, para ser a melhor forma de vida, não pode ser autárcica. As pequenas polis que assim viviam, fechadas sobre si mesmas, não eram verdadeiras cidades como hoje as entendemos. Foi a comunicação através do mar ou a sua integração numa vasta rede de trocas, favorecida pelos espaços imperiais da Antiguidade, que fez de alguns desses aglomerados realidades em que já reconhecemos cidades (urbes).


Cada cidade é sem dúvida única no seu nome, na sua história, nos seus edifícios e praças emblemáticas, em certos hábitos dos seus habitantes – e, por isso, portadora de uma identidade inegável; mas, para ser cidade, não tem apenas as características gerais aqui referidas, encontradas também nas outras cidades. Para quem a habita, cada cidade é a realidade mais genuína e tangível da civilização – assim como cada um o é para si próprio da humanidade.