A
melhor forma de vida
Nasci
em Lisboa, na Avenida António Augusto de Aguiar (Clínica Cabral Sacadura). O
meu pai era madeirense, mas veio para Lisboa na juventude, para estudar e
trabalhar. A minha mãe, embora nascida em Cascais, viveu a maior parte da sua
vida de solteira em Lisboa (Avenida Almirante Reis e Avenidas Novas) e aqui
também se formou em enfermagem. Foi em Lisboa que os meus pais se conheceram.
Depois das andanças pelo Ultramar (o meu pai era oficial do Exército), vivi
sempre perto de Lisboa (em Oeiras e, mais tempo, em Cascais), mas comecei a
fazer a minha vida na capital desde que em 1987 entrei na universidade. Resido
nesta cidade desde 2004 e, uns anos antes, foi aqui que conheci a minha mulher.
Sinto-me lisboeta, sem qualquer sombra de dúvida. Adoro viver em Lisboa, embora
sinta que pudesse viver igualmente bem noutras grandes cidades. Lisboa tem
especificidades de que gosto mais ou menos, mas é através dela que participo da
experiência universal e milenária da vida em grandes urbes – com a convicção de
que é a melhor forma de vida.
Há
alguns anos (na verdade, há já mais de um bom quarto de século) fui o que eu
próprio chamava “um ruralista”. Acreditava que a vida rural era mais saudável,
mais virtuosa e mais potenciadora de felicidade do que a vida em cidades. No
entanto, nada na minha infância ou adolescência, sempre passadas em cenários
urbanos ou suburbanos, me permitia ter essas ideias a partir de experiência
vivida. Antes de fazer 20 anos até escrevi um género de manifesto, inspirado
num contacto literário em segunda mão com o grupo de Andrew Lytle («Os
Desterrados», Diário de Notícias, 19.01.1988, supl. DN Jovem). O
meu conceito de ruralidade era todo abstrato, literário ou ideológico, menos
apoiado em impressões de curtas viagens do que em imagens de filmes e
construções mentais – era, ironicamente, um “mito urbano”, uma fantasia
projetada no tempo histórico sem qualquer relação com uma perceção refletida da
realidade passada ou presente.
Bastante
mais tarde viria a descobrir que a satisfação estética e sensorial procurada no
utopismo “naturalista” e paisagístico, implícita no ruralismo (pelo menos
naquele que era o meu), tem muito mais possibilidades de aplicação nos jardins
em espaço urbano do que nas grandes extensões do espaço rural – sobretudo se
pensarmos no tipo de jardim inglês (oposto ao geometrismo do jardim francês),
que procura “copiar” a Natureza, até “melhorá-la” esteticamente, mas
domesticando-a. O jardim urbano, que, desta forma, pode ser visto como uma
aplicação da noção estética de Aristóteles, mostra como a cidade transforma e
humaniza o espaço. Os jardins botânicos e zoológicos participam deste utopismo
(são versões “conservacionistas” do mesmo) – mas são também criações das
cidades.
Com
o passar dos anos, foi a História que me foi despertando para a importância das
cidades como espaço de plena realização do ser humano. Obviamente, este novo
olhar sobre as cidades implicava ter em consideração o que de menos agradável
há e houve nelas – mas implicava também olhar dessa forma para o espaço rural.
Um elemento “disfuncional” na minha ideia anterior de ruralidade era o
conhecimento histórico que tinha da atratividade das cidades para as populações
rurais, mesmo que a reduzisse a miragem a que sucumbiam os mais “fracos” de
carácter. É evidente que esse juízo romântico não resistiu a um conhecimento
mais aprofundado das motivações económicas daquela atração. E eu ainda nem
estava desperto para a abordagem desta problemática da perspetiva mcneilliana –
das cidades como sorvedouros mortais de migrantes rurais até à era da vacinação
massificada. W. H. McNeill explorou extensivamente essa temática no seu livro,
já clássico, Plagues and Peoples
(1976), mas de que se pode ter um “cheirinho” no seu ensaio «Cities and Their Consequences» (2007).
Uma
perspetiva histórica mais informada da relação do Homem com o meio ambiente
também foi importante para a alteração da minha perceção das cidades. A par de
W. H. McNeill, que me deu uma consciência global e cosmopolita da condição
humana no tempo e no espaço no seu ainda e sempre magnífico e completo The Rise of the West: A History of the Human
Community (1964, reed. 1991), foi fundamental para mim a visão de
longuíssima duração da abordagem histórico-biológica de Alfred W. Crosby em Ecological Imperialism: The Biological
Expansion of Europe (1986). Este autor mostrou-me como os grupos humanos
sempre alteraram os ecossistemas em que se estabeleceram, por regra
profundamente, e que a “ruralidade” colocada nesta perspetiva era uma alteração
do meio ambiente historicamente construída e não tão distinta do ambiente
urbano como à primeira vista podia parecer. Em relação ao espaço rural, as
cidades aparecem, ao longo da história, mais como um tipo de povoamento
diferenciado (concentrado) do que como uma descontinuidade artificial em
relação à restante ocupação humana do espaço geográfico. O povoamento disperso
caracteriza o “campo” e o concentrado a “cidade”.
A
experiência histórica de viver num espaço concentrado surgiu-me rapidamente
como desafiante e cheia de possibilidades.
Não
que os riscos não estejam lá. McNeill realçou a facilidade de transmissão de
vírus onde os seres humanos se juntam em espaços de grande densidade
populacional; mas, de acordo com a chamada “lei de McNeill” (apresentada em Plagues and Peoples), as populações
urbanas assim massacradas rapidamente se tornavam agentes coletivos de
domesticação desses perigos biológicos para a espécie e ganhavam uma
resiliência que explica boa parte da evolução da civilização até aos nossos
dias. A revolução da vacinação massificada no século XX tornou depois as
cidades em espaços mais aprazíveis para quem vinha do “campo” – e, na verdade,
para toda a gente. Mas, naquele século, outros perigos foram criados, mais ou
menos involuntariamente, pela tecnologia bélica (que tornava as cidades alvos
preferenciais da guerra total) e, mais corriqueiramente, pelas boas intenções
ou obsessões totalmente humanas dos reguladores e dos planeadores urbanos. O
economista sueco Assar Lindbeck escreveu um dia que a regulação do mercado de
arrendamento era a segunda forma mais eficaz de destruir uma cidade – a seguir
a um bombardeamento aéreo. E Jane Jacobs, no seu imortal Death and Life of
Great American Cities (1961), explicou com perspicácia como a planificação
urbana obcecada com a funcionalidade abstrata pode tornar as cidades
disfuncionais para os seus habitantes concretos. Mas as cidades sobreviveram a
todos estes tipos de perigos – aos últimos, sobretudo com o senso comum e a
espontaneidade do “viver habitualmente”, que são a forma mais eficaz de
resistência às planeadas pressões dos disciplinadores administrativos.
A
propósito da espontaneidade do “viver habitualmente” em cidade, muito haveria a
dizer sobre o papel humanizador e possibilitador da vida urbana desempenhado
pelo comércio de rua. Este fenómeno económico urbano, que é uma complexa teia
de iniciativas individuais e relações de mercado, não é planificado por ninguém
e é o que de mais funcional pode haver numa grande cidade. As lojas em piso
térreo e abertas para a rua são uma conquista civilizacional em que nem
pensamos. Já era assim em todas as cidades romanas, que são as que nos deixaram
vestígios arqueológicos mais eloquentes. As lojas de víveres, de roupas, de
serviços, de consumo, de o que quer que seja, são não só o esteio económico da
vida urbana, disseminado por absolutamente todas as ruas de qualquer grande
cidade, mas também a mais forte e extensa rede de sociabilidade e contacto
humano dentro do espaço urbano. O comércio vai até à mais pobre e recôndita
rua, como nenhum esforço planeado saberia fazer. A sua presença e a forma como
se anuncia, virando-se para a rua com tabuletas, montras, esplanadas, dá cor e
sinais de vida às artérias e aos bairros, mesmo os mais pobres ou sombrios. O
conceito de montra, em que o comerciante, com arte ou método, comunica a quem
passa o que vende – e contribui para embelezar e enriquecer de diversidade os
percursos de quem calcorreia cada rua –, é uma das glórias da cidade.
A
diversidade patente no comércio é um indício muito visual de que as cidades,
pela concentração populacional, favorecem a especialização associada ao
processo de divisão do trabalho explicado por Adam Smith, mas também a
consolidação social da pluralidade de crenças, gostos, opções
e modos de vida, que dão aos seus habitantes possibilidades viáveis e
acrescidas de sociabilidade fora da família e da vizinhança. Esta é uma das
razões mais claras para as cidades serem consideradas um espaço de liberdade –
porque as escolhas são mais amplas e realmente viabilizadoras da
autodeterminação do indivíduo. Mas aquelas diversidade e concentração foram
igualmente a fonte de uma recriação do trabalho, assente já não só em ofícios
que teriam um futuro industrial, mas em profissionais de serviços múltiplos que
foram revelando uma civilização cada vez mais talentosa e capaz de gerar um
refinamento crescente da vida comunitária e privada.
A
arquitetura urbana não deixa de ser uma analogia construída desta criatividade
institucional que foi paralela da especialização económica e cultural. No seu
desenvolvimento técnico, estilístico e monumental, é patente como a
criatividade humana encontra na cidade o “ecossistema” adequado para prosperar e
se fixar no espaço, reinventando-o e até multiplicando-o onde ele mais
escasseia – daí a aventura tipicamente urbana de construir em altura. Essas
possibilidades arquitetónicas, aliadas à concentração populacional, explicam a
forma material de instituições eminentemente urbanas e tão diversas quanto os
hospitais, as universidades, os teatros, os clubes desportivos, as grandes
empresas ou as grandes áreas comerciais que se conceberam – como as antigas
ruas da Baixa – numa densa «cidade» de oferta comercial concentrada.
As
cidades são as pessoas que as habitam – e, como J. Jacobs bem viu, devem ter a
“dimensão” dessas pessoas. Não se trata de uma dimensão territorial, mas de uma
dimensão sensória e de raio de ação, à escala do indivíduo. As ruas, as artérias
das cidades, devem ter residentes e permitir a circulação das pessoas a pé, sem
que isso obste a que circulem veículos e a que outras pessoas aí trabalhem.
Ruas sem habitantes nem peões, ou sem lojas, são o começo do inferno – isto é,
da morte da cidade. Ter peões significa ter passeios e ter habitantes significa
que aqueles têm de ser amplos e seguros para crianças e idosos, que não podem
viver confinados ao interior dos edifícios. Os parques e jardins são ótimos,
mas são outra questão.
A
presença dos idosos nas ruas é, aliás, um fator fundamental para a manutenção das
relações de vizinhança no espaço urbano, pois são eles quem tem mais tempo para
as cultivar no dia-a-dia na área onde vivem, transportando um historial de
conhecimentos e relações pessoais que facilita a apropriação do espaço. Como
ensinou J. Jacobs, tanto quanto as lojas de rua, estes residentes idosos ajudam
numa função descurada mas vital de «vigilância» informal que põe em sentido
«amigos do alheio» e praticantes de violência pública ou privada. É uma
demonstração de como as cidades precisam de residentes e de comércio em cada
rua para serem espaços aprazíveis e seguros.
O
governo municipal, tal como o governo central, pode ser o maior inimigo desta
escala humana da cidade. Ele concentra o poder de agir coletivamente a uma
dimensão que pode amplificar desastradamente a propensão humana para o
disparate – sobretudo quando lhe falta ponderação e humildade ou abundam o
entusiasmo e a prepotência. Talvez seja abusivo considerar o governo municipal
outra das glórias urbanas, mas, mesmo sem discutir a sua origem, é indiscutível
que as cidades se adaptaram bem a ele e deram um contributo fundamental para a
sua evolução.
O
governo da cidade sempre tendeu a ser coisa de poucos, permeável a interesses
fortes e ativos e a ser submisso ao poder central. É isso que explica o
potencial que o entusiasmo ou a prepotência dos decisores nas questões públicas
têm para fazer estragos na vida dos outros habitantes da cidade. Essas decisões
condicionam e podem destruir aquilo que os habitantes sabem fazer por si, nas
suas relações económicas e de sociabilidade. O controlo democrático daquelas
decisões, mesmo que por entrepostos representantes eleitos, tem e terá sempre
limites de eficácia, mas é uma garantia valiosa. Outro mecanismo limitador dos
estragos potenciais da concentração do poder é a descentralização – que na
cidade portuguesa tem na paróquia ou freguesia urbana um recipiente obvio. Dada
a sua dimensão de maior proximidade às relações de vizinhança e aos ambientes
de rua, a freguesia pode ser mais eficazmente controlada por munícipes
motivados pela defesa dos seus interesses e pontos de vista – e este controlo
democrático mais localizado pode tornar as freguesias um contrapeso limitador e
questionador do governo municipal e da sua articulação com os interesses fortes
mais ou menos organizados.
Uma
grande cidade como Lisboa, com um porto aberto ao mar, sempre deu aos seus
habitantes uma possibilidade fática ou simbólica de saída – o que é uma
condição acrescida de liberdade. O porto é também, claro, um meio e um sinal de
abertura ao mundo, sobretudo ao restante mundo urbano, e, portanto, um pólo
económico e cultural de cosmopolitismo. Quem diz porto, diz hoje grande central
ferroviária internacional ou aeroporto. A entrada e a saída (do residente ou do
viajante) é fundamental para explicar a condição humana e civilizacional da
cidade; esta, para ser a melhor forma de vida, não pode ser autárcica.
As pequenas polis que assim viviam, fechadas sobre si mesmas, não eram
verdadeiras cidades como hoje as entendemos. Foi a comunicação através do mar
ou a sua integração numa vasta rede de trocas, favorecida pelos espaços
imperiais da Antiguidade, que fez de alguns desses aglomerados realidades em
que já reconhecemos cidades (urbes).
Cada
cidade é sem dúvida única no seu nome, na sua história, nos seus edifícios e
praças emblemáticas, em certos hábitos dos seus habitantes – e, por isso,
portadora de uma identidade inegável; mas, para ser cidade, não
tem apenas as características gerais aqui referidas, encontradas também nas
outras cidades. Para quem a habita, cada cidade é a realidade mais genuína e
tangível da civilização – assim como cada um o é para si próprio da humanidade.