[Grão de Trigo, Agosto 2015, pp. 2-3.]
Os ministérios formais na igreja
As igrejas são a reunião dos crentes com o propósito de nos fazer
proclamar a Palavra, de velarmos uns pelos outros nos aspetos exteriores da fé
e de nos instruirmos mutuamente. Os dons que dão lugar aos ministérios
carismáticos – e informais – (de que tratámos no artigo anterior) são
fundadores e inspiradores para a igreja e representam formas excecionais de
liderança. Mas a igreja, na sua missão, não pode estar dependente do que é
excecional. Para ilustrarmos este argumento, as igrejas que em Portugal e no
Brasil adotaram como confissão a Breve
Exposição das Doutrinas Fundamentais do Cristianismo consideram
provavelmente o seu autor, o Dr. Roberto Kalley, um apóstolo no sentido lato de
1Cor. 4:9. Mas essas igrejas, para persistirem, não poderiam esperar encontrar
em cada geração, até ao presente, alguém tão dotado e reconhecido como Kalley.
O mesmo se poderia dizer relativamente a irmãos (se os houver) considerados
profetas ou doutores. Outros ministérios têm de servir às necessidades da
igreja no dia-a-dia, ajudando a dotá-la de uma regularidade sem a qual os
grupos humanos não sobrevivem. É, pois, necessário haver ministérios regulares
na igreja.
No Novo Testamento, é nos Atos dos Apóstolos e nas Epístolas que
surgem as referências a estes ministérios, precisamente porque é nesses livros
que se relatam acontecimentos ou se abordam problemas relacionados com as
primeiras comunidades cristãs. Os ministérios regulares ou de nomeação
eclesiástica são aqueles que a igreja mantém regularmente organizados e para os
quais, reunida em assembleia formal, nomeia ou chama ou confirma irmãos para os
exercerem. Nos Atos dos Apóstolos e nas Epístolas referem-se dois ministérios
regulares ou formais: o presbiterado e o diaconado.
Os diáconos
Etimologicamente, «diácono» será qualquer irmão que
exerça um ministério (ou serviço) na igreja. É por essa razão que Atos 6:1-6 é
muitas vezes considerada a passagem que testemunha a instituição do diaconado,
pois é aí que se conta que os apóstolos pediram à igreja em Jerusalém que escolhesse
do seu seio sete homens para servirem às mesas durante a partilha de alimentos.
O conjunto dos irmãos elegeu os sete e os apóstolos impuseram-lhes as mãos em
sinal de reconhecimento daquele ministério. Mas seria errado entender-se que,
por ter sido aquela a causa imediata da sua instituição, àquele tipo de tarefa
se reduza o serviço dos diáconos. Bem lida, o que aquela passagem nos diz é que
os apóstolos pediram à comunidade a designação de irmãos que trabalhassem
ativamente na resolução prática de uma necessidade que estava a criar mal-estar
dentro da igreja e a dar mau testemunho (o facto de as viúvas de irmãos de
língua grega estarem a ser prejudicadas voluntária ou involuntariamente por
irmãos de cultura judaica). Por essa razão, os escolhidos deveriam ser, de
acordo com a solicitação dos apóstolos, «de boa reputação, cheios do Espírito e
de sabedoria» (v. 3). Não eram pessoas que simplesmente soubessem servir às
mesas, mas que tivessem autoridade moral para serem respeitados e cujo
testemunho na igreja fosse entendido como guiado pelo Espírito Santo, patente
em palavras e atos sábios. Sem estas características não saberiam ser nem
seriam reconhecidos como portadores de qualidades suficientes para irem ao
encontro dos necessitados, dos perdidos ou dos desavindos dentro da igreja.
O
grau de exigência na escolha dos diáconos era elevado, pelo que não espanta que
um dos eleitos fosse Estêvão, o primeiro mártir e autor de um célebre discurso
perante o Sinédrio que comprova grande conhecimento das Escrituras e do
significado transcendente da pregação de Jesus (Atos 7:2-53). O apóstolo Paulo
segue a mesma linha exigente quando define, em 1Tim. 3:8-13, o perfil do
diácono.
Ao estarem orientados para o serviço por meio da solicitude (atenção
às necessidades espirituais, afetivas e materiais dos irmãos) e de uma retidão
de juízo, de propósitos e de atos, os diáconos assumem, assim, as qualidades
que idealmente deveriam existir em todos os irmãos no seu convívio na igreja.
Os diáconos são chamados a ser os guardiões ou os cultores dessas virtudes não
só para resolução prática de falhas ou de necessidades entre irmãos, mas também
para edificarem toda a comunidade, sendo agentes ativos e conscientes do bom
testemunho que a igreja deve dar a crentes e não crentes.
De acordo com as
características já referidas, os diáconos parecem também vocacionados para
ajudarem na resolução de conflitos entre irmãos no espírito de Mat. 18:15-22
(nomeadamente para serem as testemunhas a que se refere o v. 16).
Os presbíteros
É difícil conceber que
mais algum ministério formal possa ser exercido na igreja sem ter como base ou
ponto de partida as qualidades e virtudes atribuídas ao diácono. [Neste
sentido, pois, e não só no relevante e revelador sentido etimológico, todos os
ministros da igreja são diáconos.]. Se, como foi dito, o diácono assume as
características que idealmente todos os irmãos deveriam ter no convívio na
igreja, isso aplica-se ainda mais aos irmãos que assumem outros ministérios –
com destaque para os presbíteros.
O termo grego presbyteros era usado no tempo da igreja apostólica por associações
religiosas e profissionais do mundo romano com um sentido muito semelhante ao
que foi adotado nas assembleias (ekklesiai
em grego) ou igrejas cristãs [Philip A. Harland, Associations, Synagogues and Congregations, Minneapolis: Fortress
Press, 2003, p. 182]. Esse termo significava «ancião» e era usado como sinónimo
de «supervisor» ou «superintendente» (episkopos
em grego). Mas o termo «ancião» (zaqen
em hebraico) era também usado no Antigo Testamento, sendo originário do período
pré-monárquico da história de Israel. O termo surge em Êxodo 12:21 e Números
11:16, mas também, já no período monárquico, em 1Reis 21:8-14, Jer. 26:17 ou
Prov. 31:23, ou, no tempo do Segundo Templo, em Esdras 6:7-8 e 10:14. Os
anciãos da tradição judaica são também referidos no Novo Testamento, por
exemplo em Marcos 15:1 e Atos 5:21 e 22:5. Os anciãos eram chefes de famílias
extensas, exercendo autoridade religiosa e judicial sobre os seus parentes, sendo
criticados por Jesus em Marcos 7:3, 5, onde são associados aos fariseus [J. A.
Overman, s.v. «Elder», The Oxford
Companion to the Bible, 1993, p. 182]. Parece claro que os anciãos ou
presbíteros das primeiras comunidades cristãs, mencionados em Atos e nas
Epístolas, não têm relação direta nem semelhança formal – talvez apenas uma
filiação simbólica para os judaizantes – com o zaqen do Antigo Testamento.
Nas primeiras comunidades cristãs, os
anciãos podiam ser chamados ou nomeados pelos apóstolos (Atos 14:23 e Tito 1:5)
segundo o critério de pertencerem à família espiritual do Senhor e não à
posição familiar ou tribal na sociedade – tal como Jesus escolhera os próprios
apóstolos e os fizera seus parentes espirituais (Mat. 12:46-50). Na ausência
dos apóstolos, compete obviamente à assembleia dos irmãos reconhecer no seu
seio aqueles que revelam dons para o presbiterado. Paulo, depois de traçar o
perfil pessoal do presbítero, de uma forma que lembra o que para os diáconos
também estava estabelecido (Tito 1:6-8), considera-lhe atribuídas as funções de
ser «apegado à palavra fiel, que é segundo a doutrina, de modo que tenha poder
tanto para exortar pelo reto ensino como para convencer os que o contradizem»
(Tito 1:9). Em Tim. 5:17, o apóstolo considera-o digno de estima e honra
sobretudo se se dedicar à «palavra» e à «doutrina» (isto é, ao ensino). O
presbiterado é, assim, um ministério centrado na Palavra – no seu estudo,
proclamação e explanação. Ao presbiterado pertence trazer a Palavra para o
centro da vida espiritual da igreja, pois a Palavra é o «pão da vida» e o
«pasto» dos crentes.
Poder-se-ia dizer que a diferença substantiva entre um diácono e um presbítero é que o segundo tem a obrigação de pregar e ensinar regularmente (o que não invalida que o primeiro o possa fazer voluntária e esporadicamente).
Outros ministérios
formais
É neste contexto que aos presbíteros é concedida a função simbólica
de poderem ser «pastores», de «apascentarem» os seus irmãos na igreja, como
Jesus exortou Pedro a fazer (João 21:15-17). Nesse caso, o presbítero assume –
por solicitação ou reconhecimento da igreja – uma vocação que não é só a de
proclamar, ensinar e explanar a Palavra, mas que é também a de, através dela,
conduzir os seus irmãos ao «pasto» e ao «pão» que alimentam o seu coração pelas
veredas mais apropriadas às condições de cada um. Para isso, o presbítero que é
pastor tem também de dedicar-se aos irmãos com uma grande dose de solicitude,
de conhecimento e de dedicação a cada um, de modo que a proclamação que fizer
da Palavra seja adequada aos corações concretos que tem diante de si na
igreja.
Se incluirmos ainda no conjunto dos ministérios formais o de
evangelista (missionário ou obreiro como referido em 2Tim. 4:1-5), e que a
igreja pode querer designar para trabalho missionário de entre os presbíteros,
ficamos com os quatro ministérios elencados na Breve Exposição (artigo 22.º): diáconos, presbíteros, pastores e
evangelistas.
Conclusão sobre a estrutura formal da igreja
Daquilo que foi dito se pode concluir que a formalização dos ministérios na igreja não conduz a uma estrutura hierárquica, mas a uma estrutura concêntrica. Uma ilustração desta realidade pode ser a que se segue:
Podemos ser membros da igreja sem nela termos ministérios reconhecidos – desde que sejamos batizados e que tenhamos sido aceites na comunidade comungante e confessante. De entre os membros da igreja há, porém, aqueles que foram chamados ao exercício formal da diaconia (o ministério por excelência) – e como tal reconhecidos pela assembleia dos irmãos. E é do seio destes ministros que a igreja reconhece também os presbíteros, que são os «ministros» ou «diáconos» da Palavra.