[Grão de Trigo, Maio 2013, p. 4]
Martinho Lutero, cuja
teologia é mais “reformada” do que as práticas eclesiais históricas das igrejas
europeias vulgarmente conhecidas como “luteranas”, é uma inspiração permanente
para aqueles que se reclamam do calvinismo.
Para percebermos como o primeiro
reformador entendia o sacramento, vamos pedir ajuda a Paul Althaus e ao seu
livro A Teologia de Martinho Lutero (cap. 25), pois os escritos de
Lutero são muitos e dispersos no tempo e por diferentes obras, e a
interpretação sistemática de um bom teólogo (competente e leal) é em tal
situação o melhor auxílio.
Para Lutero, o sacramento está ancorado numa
promessa de salvação feita por Deus através da Sua Palavra e é, assim, um acto
visível que funciona como analogia de uma realidade invisível e prometida; é,
pois, na forma, um símbolo.
Porém, nem todos os símbolos são sacramentos, dado
que, para o serem, têm de decorrer da própria revelação divina, que promete o
perdão dos pecados e, assim, vida e salvação – e de ser identificáveis como tal
na Bíblia.
Para Lutero, nem o casamento nem a confirmação cumpriam esta
condição, pois falta-lhes a promessa de salvação; por outro lado, a oração, a
penitência e a leitura e meditação da Palavra, a que Deus associou a promessa,
não têm a forma clara de acto visível e simbólico, pelo que não podem ser
propriamente considerados sacramentos.
Só o Baptismo e a Ceia preenchem esta
dupla condição da promessa e do símbolo. A ambos pertence também dirigirem-se a
cada crente individualmente, serem um vínculo do crente individual com a
promessa divina, enquanto o ministério do anúncio da Palavra (a pregação) – que
só por si terá de valer outro texto – se dirige a todos os crentes, em geral e
indistintamente.
O carácter físico do sacramento (o contacto do nosso corpo com
a água, o pão e o vinho) significa que tudo em nós (até a nossa carne) está
destinado à vida eterna. Ora, para Lutero, o sacramento só é válido, só passa
de forma a conteúdo – e a vínculo –, se estiver intimamente ligado no indivíduo
à fé na Palavra divina; sem isso, é um ritual ineficaz para esse indivíduo.
A
fé é tão fundamental que Lutero chega a dizer, a partir de Marcos 16:16, que
alguém que a tenha e seja privado dos sacramentos se pode salvar.
No entanto,
os dois sacramentos, como actos visíveis praticados pela Igreja, não perdem o
seu carácter de promessa por serem administrados a indivíduos sem fé, ao
contrário do que defenderam os Anabaptistas no século XVI e com quem Lutero
polemizou. E os crentes não devem privar-se dos sacramentos por terem fé, pois
foram convocados pela Palavra a neles viverem também a sua fé.
DESAFIO… Lutero defendeu o baptismo de crianças. De
acordo com a sua concepção de sacramento, o que pensar disso? Sem a consciência
da fé pode o baptismo ser eficaz (vínculo com a promessa divina)? E a Ceia, pelas
mesmas razões, a quem e em que idade e em que condições deve ser ministrada na
Igreja?
quarta-feira, junho 12, 2013
O cristianismo em retirada?
[Grão de Trigo, Janeiro 2013, p. 2]
O anuário The World In 2013, editado pela revista britânica The Economist, tem um artigo de Edward Lucas (p. 24) que traça um cenário pouco promissor para o cristianismo em 2013.
Segundo este autor, o novo ano tornará mais visível a crise e a perda de influência que afetam sobretudo as igrejas históricas. A tentativa destas de resistirem à hegemonia dos valores seculares, que ameaçam tornar o cristianismo numa subcultura em luta pela sobrevivência no mundo ocidental, será em grande medida uma batalha perdida.
A Comunhão Anglicana é indicada por Lucas como exemplar desta situação, dilacerada por uma resistência a tendências avassaladoras do secularismo, como a «cruzada» a favor do «casamento» homossexual, e a falta de rumo causada por um liberalismo teológico representado pelo arcebispo de Cantuária cessante, Rowan Williams. A rutura das igrejas africanas da Comunhão é muito provável, como já aconteceu com algumas comunidades episcopais na América.
Mesmo na América do Norte, onde a prática religiosa cristã sempre foi mais intensa e numerosa do que na Europa, as igrejas estão estagnadas e o secularismo progride entre os mais jovens e mais instruídos. Embora Lucas não o diga explicitamente, as igrejas pentecostais e neopentecostais, outrora tão dinâmicas no Ocidente, parecem também ter atingido um limite de crescimento.
A Igreja Católica Romana, acossada por outros males e escândalos, e apesar de gozar exteriormente de uma disciplina maior, não está melhor.
Por outro lado, as igrejas históricas no Médio Oriente (Palestina, Egito, Síria e Iraque), e um pouco por todo o mundo islâmico, parecem cercadas por maiorias hostis, levando muitos cristãos a sair desses países.
Mas é este o retrato de todo o cristianismo em 2013? Não. A exceção parece ser um conjunto de igrejas protestantes do Extremo Oriente (Coreia do Sul, China e Taiwan), que estão a crescer em número e influência numa das regiões mais populosas do Planeta, mantendo a esperança de que o cristianismo possa continuar a expandir-se, mesmo que de forma localizada, num mundo em que a população global ainda está a crescer.
DESAFIO… Perante este panorama, com todos os riscos de haver erros de perceção neste retrato da realidade, o que devem pensar e fazer os cristãos individuais das igrejas concretas (como a nossa Lisbonense)? Estamos na ampla parte do Mundo onde o cristianismo parece em retirada em termos de número de crentes e de influência pública. Inverter isso depende de nós em princípio, mas dificilmente na prática. Se o cristianismo se vier a parecer com uma subcultura minoritária, que isso não nos amedronte – já foi essa a condição da Igreja apostólica. Não temos de ver nisso nem o nosso «destino» nem uma inevitabilidade colorida de castigo divino. Temos é de nos fortalecer interiormente e no testemunho – com cultura bíblica, prática eclesial e adesão ao Evangelho.
O anuário The World In 2013, editado pela revista britânica The Economist, tem um artigo de Edward Lucas (p. 24) que traça um cenário pouco promissor para o cristianismo em 2013.
Segundo este autor, o novo ano tornará mais visível a crise e a perda de influência que afetam sobretudo as igrejas históricas. A tentativa destas de resistirem à hegemonia dos valores seculares, que ameaçam tornar o cristianismo numa subcultura em luta pela sobrevivência no mundo ocidental, será em grande medida uma batalha perdida.
A Comunhão Anglicana é indicada por Lucas como exemplar desta situação, dilacerada por uma resistência a tendências avassaladoras do secularismo, como a «cruzada» a favor do «casamento» homossexual, e a falta de rumo causada por um liberalismo teológico representado pelo arcebispo de Cantuária cessante, Rowan Williams. A rutura das igrejas africanas da Comunhão é muito provável, como já aconteceu com algumas comunidades episcopais na América.
Mesmo na América do Norte, onde a prática religiosa cristã sempre foi mais intensa e numerosa do que na Europa, as igrejas estão estagnadas e o secularismo progride entre os mais jovens e mais instruídos. Embora Lucas não o diga explicitamente, as igrejas pentecostais e neopentecostais, outrora tão dinâmicas no Ocidente, parecem também ter atingido um limite de crescimento.
A Igreja Católica Romana, acossada por outros males e escândalos, e apesar de gozar exteriormente de uma disciplina maior, não está melhor.
Por outro lado, as igrejas históricas no Médio Oriente (Palestina, Egito, Síria e Iraque), e um pouco por todo o mundo islâmico, parecem cercadas por maiorias hostis, levando muitos cristãos a sair desses países.
Mas é este o retrato de todo o cristianismo em 2013? Não. A exceção parece ser um conjunto de igrejas protestantes do Extremo Oriente (Coreia do Sul, China e Taiwan), que estão a crescer em número e influência numa das regiões mais populosas do Planeta, mantendo a esperança de que o cristianismo possa continuar a expandir-se, mesmo que de forma localizada, num mundo em que a população global ainda está a crescer.
DESAFIO… Perante este panorama, com todos os riscos de haver erros de perceção neste retrato da realidade, o que devem pensar e fazer os cristãos individuais das igrejas concretas (como a nossa Lisbonense)? Estamos na ampla parte do Mundo onde o cristianismo parece em retirada em termos de número de crentes e de influência pública. Inverter isso depende de nós em princípio, mas dificilmente na prática. Se o cristianismo se vier a parecer com uma subcultura minoritária, que isso não nos amedronte – já foi essa a condição da Igreja apostólica. Não temos de ver nisso nem o nosso «destino» nem uma inevitabilidade colorida de castigo divino. Temos é de nos fortalecer interiormente e no testemunho – com cultura bíblica, prática eclesial e adesão ao Evangelho.
Um sinónimo de Reforma? Fidelidade!
[Grão de
Trigo, Out. 2012, pp. 4-5]
Na apreciação que fazemos daqueles que nos antecederam na fé há dois tipos de atitude que devemos evitar: aquilo que C. S. Lewis chamava “snobismo cronológico” (quando julgamos que somos mais inteligentes e “avançados” do que os nossos antepassados) ou a atitude de veneração desses antepassados quase como se fossem semideuses (por os considerarmos mais próximos de Deus do que nós próprios podemos hoje estar). Ora, Deus está a igual distância de todos os séculos – e, portanto, dos homens do passado, do presente e (o que é mais difícil de entender) do futuro. Pensemos nisto: haverá épocas históricas em que a graça de Deus é mais intensa do que noutras? Creio que não.
Estas reflexões vêm a propósito do dia da Reforma, em que comemoramos a atitude e a ação de (re)afirmação da fé evangélica por muitos antepassados nossos, com destaque para os chamados reformadores do século XVI (Lutero, Calvino, Melâncton, Bullinger). Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa, um dos significados da palavra “protesto” é “afirmação feita de modo convicto e insistente” e é deste significado (e não de “reclamar contra qualquer coisa”) que deriva o nome de “protestante” que foi dado àqueles reformadores e a quem com eles concordava. Estes reformadores foram chamados “protestantes” porque afirmaram convicta e insistentemente que havia uma forma correta de entender o Evangelho – aquela que Lutero resumiu nas famosas “cinco solas” (só a Deus glória; somente Cristo; só a Graça; só a Fé; só a Escritura).
Ao comemorarmos o dia da Reforma estamos a atualizar essa adesão aos princípios convicta e insistentemente afirmados no século XVI pelos reformadores protestantes. Esses princípios foram explicados em numerosos e, nalguns casos, longos textos escritos pelos reformadores daquele século. Esses textos ensinaram as gerações seguintes de protestantes (ou cristãos reformados) sobre a forma correta de entender o Evangelho e constituem, por isso, um ensinamento sobre a fé ou um “magistério”. Por isso se chama “Reforma Magisterial” ao conjunto daqueles textos e às atitudes e escolhas por eles inspirados. Ao contrário do que muitas vezes dizem os detratores da Reforma, os textos dos reformadores não foram nem quiseram ser “criativos” ou inovadores, pois são uma leitura refletida, pensada, sobre a Bíblia e sempre em diálogo com os principais autores cristãos de vários séculos, começando pelos da chamada Patrística (teólogos dos séculos I a IV).
Para os reformadores, a Reforma era uma purificação. A Igreja precisava de ser reformada para ser Igreja e não para ser outra coisa; precisava de ser reformada para ser o que fora no início e não para ser uma coisa “nova”. Quem inovava era quem pensava que a tradição dos homens (os hábitos sedimentados ao longo dos anos e dos séculos) podia ombrear em verdade e legitimidade com o Evangelho, com os episódios da Revelação que o anunciaram no Antigo Testamento e com os textos do Novo Testamento que entraram no Cânone como os seus melhores e mais inspirados relatos e interpretações. O propósito dos reformadores era restaurar, reatar e fazer reviver a Igreja. Como disse um autor inglês do século XVIII, somos protestantes por sermos zelosos e não por sermos indiferentes.
A esta luz, o que são ou o que devem ser para nós os reformadores do século XVI? A “Reforma Magisterial” não é um “Novíssimo Testamento” que se acrescente ao Antigo e ao Novo. A obra literária e eclesial dos reformadores do século XVI (que inclui as confissões e catecismos então elaborados) não pretendeu acrescentar uma vírgula ao que já fora revelado ou ao que já estava no Cânone. Não pretendia sequer instaurar um género de interpretação exclusiva dos Textos Sagrados, como acusaram hipocritamente alguns autores que aceitaram e aceitam a interpretação exclusiva e, para alguns, infalível de papas e/ou concílios (por mais “ecuménicos” que sejam).
A Reforma reafirmou a soberania de Deus, omnipotente, omnipresente e omnisciente, e a qualidade da Bíblia como regra de fé e único ponto de apoio para compreendermos o lugar de Cristo na relação que temos com Deus. Deus não se adapta às nossas necessidades e conveniências para se tornar menos omnisciente e mais moldável às nossas teorias mundanas sobre a liberdade do ser humano. Ao contrário do que vêm repetindo há séculos os detratores da Reforma, se a omnisciência de Deus e a liberdade humana (necessária aos atos morais) parecem incompatíveis é porque a nossa razão é limitada e não porque Deus não possa conhecer perfeitamente o futuro de cada um de nós até à consumação dos tempos. E, se afirmamos a falibilidade da razão humana perante a Bíblia, nunca foi, desde os reformadores do século XVI, para concluir (como vêm dizendo os nossos detratores) que a razão não é o instrumento por excelência para lermos a Bíblia, mas sim que a devemos usar uma vida inteira com a humildade e o cuidado com que preservamos e cultivamos o que é frágil e escasso.
A Reforma foi, pois, um exercício de, nas nossas consciências individuais e na vida da Igreja, dar a Deus o que é de Deus e aos homens o que é dos homens. Deus é o Deus da Bíblia e não o Deus da razão. Para O compreendermos, temos de deixar operar a Sua graça por meio da leitura e do estudo (muito estudo) da Sagrada Escritura. O livre exame (a liberdade de todos lerem a Bíblia) é para cada um de nós um dever de humilde estudo para toda a vida e não um direito de súbita instrumentalização do Texto pela nossa soberba ou vontade de poder (o que fizeram os radicais que se aproveitaram da Reforma, mas também faziam e fazem os detratores da Reforma que diziam e dizem ser essa a consequência do livre exame). Por seu lado, a razão é uma faculdade humana, uma luz que nos foi dada por Deus, como tudo o que temos e somos; e como luz que pertence a seres imperfeitos, mortais e pecadores, a razão é intermitente, fraca e muito limitada, mas é o que temos de melhor em nós mesmos e, como nós mesmos, só cresce e frutifica auxiliada pela graça e num caminho de humilde e fiel procura.
A Reforma é fidelidade e não inovação. Somos chamados, acima de tudo, a ser fiéis. Fiéis como Abraão foi no monte do Templo; fiéis como Moisés foi no monte Sinai; fiéis, enfim e sobretudo, como o Jesus humano foi no monte de Gólgota. Porque nesse ponto central de toda a história da Salvação – a Paixão de Cristo que a sua cruz representa – está gravada com força inquebrantável e para sempre a fidelidade como nosso destino, nosso caminho e nossa redenção. Em Jesus, o homem foi fiel a Deus até ao fim, até ao limite das suas forças; e Deus foi fiel à promessa de nos proporcionar um salvador eficaz porque capaz de ser um mediador perfeito (divino e humano) como nenhum homem ou ser celestial poderia ser. Em Cristo, visto de baixo, a partir da nossa condição humana, temos um irmão capaz de rasgar, como pioneiro, o caminho da perfeita fidelidade; no Cristo eterno e celestial, como só o podemos ver pela graça e pela Revelação, temos o próprio Deus que se acercou de nós, fazendo-se um de nós, e revelando-nos “em verdade e em vida” o nosso propósito – o nosso destino, caminho e salvação.
Este é o grande e fundamental legado dos reformadores do século XVI e da sua “Reforma Magisterial”. Como ser, no nosso tempo, fiel à Aliança que celebrámos com Deus? Cada um, individualmente, e a Igreja, como expressão do testemunho visível e público de cada um congregado com os seus irmãos na fé. Este foi o grande desafio que levou Lutero e Calvino, no tempo em que viveram, a mudarem as suas vidas e a pregarem e escreverem o que ainda hoje podemos ler. A Reforma é uma história humana (e, claro, auxiliada pela graça) de procura da fidelidade. E permanece, como bem intuiu Lutero, uma procura do significado mais verdadeiro da cruz de Cristo, um caminho cujas pegadas continuamos, de olhos postos na face e no corpo humano do nosso Deus – fidelidade, intensa fidelidade e até ao fim.
Na apreciação que fazemos daqueles que nos antecederam na fé há dois tipos de atitude que devemos evitar: aquilo que C. S. Lewis chamava “snobismo cronológico” (quando julgamos que somos mais inteligentes e “avançados” do que os nossos antepassados) ou a atitude de veneração desses antepassados quase como se fossem semideuses (por os considerarmos mais próximos de Deus do que nós próprios podemos hoje estar). Ora, Deus está a igual distância de todos os séculos – e, portanto, dos homens do passado, do presente e (o que é mais difícil de entender) do futuro. Pensemos nisto: haverá épocas históricas em que a graça de Deus é mais intensa do que noutras? Creio que não.
Estas reflexões vêm a propósito do dia da Reforma, em que comemoramos a atitude e a ação de (re)afirmação da fé evangélica por muitos antepassados nossos, com destaque para os chamados reformadores do século XVI (Lutero, Calvino, Melâncton, Bullinger). Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa, um dos significados da palavra “protesto” é “afirmação feita de modo convicto e insistente” e é deste significado (e não de “reclamar contra qualquer coisa”) que deriva o nome de “protestante” que foi dado àqueles reformadores e a quem com eles concordava. Estes reformadores foram chamados “protestantes” porque afirmaram convicta e insistentemente que havia uma forma correta de entender o Evangelho – aquela que Lutero resumiu nas famosas “cinco solas” (só a Deus glória; somente Cristo; só a Graça; só a Fé; só a Escritura).
Ao comemorarmos o dia da Reforma estamos a atualizar essa adesão aos princípios convicta e insistentemente afirmados no século XVI pelos reformadores protestantes. Esses princípios foram explicados em numerosos e, nalguns casos, longos textos escritos pelos reformadores daquele século. Esses textos ensinaram as gerações seguintes de protestantes (ou cristãos reformados) sobre a forma correta de entender o Evangelho e constituem, por isso, um ensinamento sobre a fé ou um “magistério”. Por isso se chama “Reforma Magisterial” ao conjunto daqueles textos e às atitudes e escolhas por eles inspirados. Ao contrário do que muitas vezes dizem os detratores da Reforma, os textos dos reformadores não foram nem quiseram ser “criativos” ou inovadores, pois são uma leitura refletida, pensada, sobre a Bíblia e sempre em diálogo com os principais autores cristãos de vários séculos, começando pelos da chamada Patrística (teólogos dos séculos I a IV).
Para os reformadores, a Reforma era uma purificação. A Igreja precisava de ser reformada para ser Igreja e não para ser outra coisa; precisava de ser reformada para ser o que fora no início e não para ser uma coisa “nova”. Quem inovava era quem pensava que a tradição dos homens (os hábitos sedimentados ao longo dos anos e dos séculos) podia ombrear em verdade e legitimidade com o Evangelho, com os episódios da Revelação que o anunciaram no Antigo Testamento e com os textos do Novo Testamento que entraram no Cânone como os seus melhores e mais inspirados relatos e interpretações. O propósito dos reformadores era restaurar, reatar e fazer reviver a Igreja. Como disse um autor inglês do século XVIII, somos protestantes por sermos zelosos e não por sermos indiferentes.
A esta luz, o que são ou o que devem ser para nós os reformadores do século XVI? A “Reforma Magisterial” não é um “Novíssimo Testamento” que se acrescente ao Antigo e ao Novo. A obra literária e eclesial dos reformadores do século XVI (que inclui as confissões e catecismos então elaborados) não pretendeu acrescentar uma vírgula ao que já fora revelado ou ao que já estava no Cânone. Não pretendia sequer instaurar um género de interpretação exclusiva dos Textos Sagrados, como acusaram hipocritamente alguns autores que aceitaram e aceitam a interpretação exclusiva e, para alguns, infalível de papas e/ou concílios (por mais “ecuménicos” que sejam).
A Reforma reafirmou a soberania de Deus, omnipotente, omnipresente e omnisciente, e a qualidade da Bíblia como regra de fé e único ponto de apoio para compreendermos o lugar de Cristo na relação que temos com Deus. Deus não se adapta às nossas necessidades e conveniências para se tornar menos omnisciente e mais moldável às nossas teorias mundanas sobre a liberdade do ser humano. Ao contrário do que vêm repetindo há séculos os detratores da Reforma, se a omnisciência de Deus e a liberdade humana (necessária aos atos morais) parecem incompatíveis é porque a nossa razão é limitada e não porque Deus não possa conhecer perfeitamente o futuro de cada um de nós até à consumação dos tempos. E, se afirmamos a falibilidade da razão humana perante a Bíblia, nunca foi, desde os reformadores do século XVI, para concluir (como vêm dizendo os nossos detratores) que a razão não é o instrumento por excelência para lermos a Bíblia, mas sim que a devemos usar uma vida inteira com a humildade e o cuidado com que preservamos e cultivamos o que é frágil e escasso.
A Reforma foi, pois, um exercício de, nas nossas consciências individuais e na vida da Igreja, dar a Deus o que é de Deus e aos homens o que é dos homens. Deus é o Deus da Bíblia e não o Deus da razão. Para O compreendermos, temos de deixar operar a Sua graça por meio da leitura e do estudo (muito estudo) da Sagrada Escritura. O livre exame (a liberdade de todos lerem a Bíblia) é para cada um de nós um dever de humilde estudo para toda a vida e não um direito de súbita instrumentalização do Texto pela nossa soberba ou vontade de poder (o que fizeram os radicais que se aproveitaram da Reforma, mas também faziam e fazem os detratores da Reforma que diziam e dizem ser essa a consequência do livre exame). Por seu lado, a razão é uma faculdade humana, uma luz que nos foi dada por Deus, como tudo o que temos e somos; e como luz que pertence a seres imperfeitos, mortais e pecadores, a razão é intermitente, fraca e muito limitada, mas é o que temos de melhor em nós mesmos e, como nós mesmos, só cresce e frutifica auxiliada pela graça e num caminho de humilde e fiel procura.
A Reforma é fidelidade e não inovação. Somos chamados, acima de tudo, a ser fiéis. Fiéis como Abraão foi no monte do Templo; fiéis como Moisés foi no monte Sinai; fiéis, enfim e sobretudo, como o Jesus humano foi no monte de Gólgota. Porque nesse ponto central de toda a história da Salvação – a Paixão de Cristo que a sua cruz representa – está gravada com força inquebrantável e para sempre a fidelidade como nosso destino, nosso caminho e nossa redenção. Em Jesus, o homem foi fiel a Deus até ao fim, até ao limite das suas forças; e Deus foi fiel à promessa de nos proporcionar um salvador eficaz porque capaz de ser um mediador perfeito (divino e humano) como nenhum homem ou ser celestial poderia ser. Em Cristo, visto de baixo, a partir da nossa condição humana, temos um irmão capaz de rasgar, como pioneiro, o caminho da perfeita fidelidade; no Cristo eterno e celestial, como só o podemos ver pela graça e pela Revelação, temos o próprio Deus que se acercou de nós, fazendo-se um de nós, e revelando-nos “em verdade e em vida” o nosso propósito – o nosso destino, caminho e salvação.
Este é o grande e fundamental legado dos reformadores do século XVI e da sua “Reforma Magisterial”. Como ser, no nosso tempo, fiel à Aliança que celebrámos com Deus? Cada um, individualmente, e a Igreja, como expressão do testemunho visível e público de cada um congregado com os seus irmãos na fé. Este foi o grande desafio que levou Lutero e Calvino, no tempo em que viveram, a mudarem as suas vidas e a pregarem e escreverem o que ainda hoje podemos ler. A Reforma é uma história humana (e, claro, auxiliada pela graça) de procura da fidelidade. E permanece, como bem intuiu Lutero, uma procura do significado mais verdadeiro da cruz de Cristo, um caminho cujas pegadas continuamos, de olhos postos na face e no corpo humano do nosso Deus – fidelidade, intensa fidelidade e até ao fim.
O dízimo na Bíblia
[Grão de Trigo, Jun. 2011, pp. 3 e 8]
O dízimo é a décima parte de um rendimento, em espécies ou em dinheiro. A primeira vez que surge na Bíblia é logo no livro de Génesis (14:20) e associado à figura de Abraão. O primeiro dízimo foi, assim, pago pelo nosso pai na fé e entregue a Melquisedeque, «sacerdote do Deus altíssimo» antes da instituição do sacerdócio araónico e levítico e cujo nome em hebraico (melech = rei, zedek = justiça) tem grande significado. Nesta figura quase misteriosa de um «rei da justiça» a quem Abraão paga o dízimo, e que é referida novamente no Salmo 110 e na Epístola aos Hebreus, é difícil não ver a prefiguração de Jesus Cristo e do seu sacerdócio eterno, consumado após a sua Paixão e Ressurreição. De facto, o Salmo 110 anuncia um rei-sacerdote «segundo a ordem de Melquisedeque», a que associa David, e o autor de Hebreus claramente projecta em Jesus essa realeza sacerdotal que era um dos símbolos religiosos mais fortes do Antigo Testamento. Se a Nova Aliança está latente na Antiga e esta patente na Nova, então Abraão pagou o primeiro dízimo a Deus por meio de um rei-sacerdote, para nós prefiguração de Cristo, antes mesmo de Deus lhe prometer descendência (Gn 15:4).
Ainda em Génesis (28:22), o dízimo ressurge, agora como promessa e pela boca de Jacó, associado à aliança com Deus e como sinal de gratidão e compensação pelas graças recebidas do Altíssimo. O sentido aqui é que tudo aquilo que geramos para nos sustentarmos é uma dádiva de Deus, a Quem devemos, em sinal de gratidão, devolver a décima parte. Como se percebe no fim de Levítico, com a instituição do sacerdócio histórico judaico, a décima parte de todos os produtos agrícolas recolhidos passou a ser dada à tribo sacerdotal de Levi, como se fosse entregue a Deus (Lv 27:30-34). Isto torna-se mais claro em Números, onde o dízimo é mencionado como concessão a essa tribo pelo serviço prestado ao povo no culto a Deus (18:21, 24 e 28). Em Deuteronómio (14:22 e 26:12), a entrega do dízimo aos sacerdotes devia tornar-se uma ocasião de partilha dos crentes com os levitas e com os pobres, os órfãos, as viúvas e os estrangeiros, que em conjunto comeriam uma porção; esta idealização alivia a imagem do dízimo como tributo religioso e parece prefigurar agora o sagrado convívio e a comunhão da Santa Ceia instituída por Jesus. Tanto em Neemias (10:37) como pelo profeta Malaquias (3:8), o dízimo é visto como sinal de obediência à Lei, cuja falta Malaquias considera mesmo um «roubo». Ao longo do Antigo Testamento, o dízimo de Abraão institucionaliza-se, torna-se um preceito da Lei, embora fosse possível olhá-lo como um sinal mais espiritual de acção de graças ou de partilha sagrada.
No Novo Testamento, o dízimo só aparece numa advertência de Jesus em Mateus 23:23 (= Lucas 11:42) – alertando os fariseus para o formalismo vazio da sua prática, pagando a décima parte da hortelã, do endro e do cominho e esquecendo a justiça, a misericórdia e a fé – e em Hebreus 7:2, 9 com as referências já mencionadas a Abraão e a Melquisedeque. Jesus não condena o dízimo, apenas realça o absurdo de a esse acto exterior não corresponder uma atitude interior que o deveria motivar. Mas a abolição ou inutilização do sacerdócio levítico pelo sacrifício de Jesus Cristo na cruz necessariamente tornou o dízimo institucionalizado do Antigo Testamento uma prática deslocada e anacrónica para os cristãos. Não há mais sacerdotes que sacrifiquem ao Deus altíssimo; o véu do templo antigo rasgou-se e Jesus operou em si mesmo o único sacrifício válido para sempre. Todos aqueles que o confessam como o Cristo são sacerdotes e membros do novo povo eleito. A quem, pois, haveríamos de pagar o dízimo?
Já não estamos sob a obrigação da Lei (o dízimo institucionalizado), mas também Abraão não estava – e pagou-o. Abraão entregou a Melquisedeque a décima parte do que tinha, num acto de motivação espiritual e de decisão individual. Com esse acto, ancorava na sua vida a aliança com Deus. Como Abraão, fora do jugo da Lei, também nós individualmente somos chamados a actos exteriores que ancorem a nossa fé e explicitem o nosso compromisso com Deus, dando graças sob a forma da devolução, como Jacó. Na Nova Aliança, o dízimo já não é obrigação; é uma interpelação ao cristão sobre a ancoragem da fé na sua vida, fortalecida por actos consequentes.
Post scriptum [O dízimo na nossa história protestante]:
As igrejas protestantes instalaram-se em Portugal por iniciativa particular. Isso contrastava com o que sucedera ao longo da história do nosso país, em que a Igreja Católica se confundira com o Estado e em que os reis foram quase sempre os patronos principais da sua estrutura, provendo os meios necessários à sua manutenção. Diferente é a nossa história. As igrejas protestantes, depois de um período de implantação, em que eram missões apoiadas por igrejas estrangeiras irmãs mais vigorosas, tornaram-se comunidades eclesiais que tinham de se bastar a si mesmas. Cabia, assim, aos seus membros prover os meios necessários à sua manutenção. Onde a igreja oficial contava com o braço forte do Estado, as igrejas protestantes alicerçavam-se no empenho e nos recursos particulares dos seus membros. Por isso eram igrejas livres, no melhor sentido da palavra, constituídas por cristãos que se reviam num cristianismo livre porque alheio a dependências do poder político e daqueles que não eram seus membros.
Os estatutos das igrejas protestantes mais antigas no nosso país (chamadas «históricas»), como a nossa, previam que os membros aceites na sua comunhão contribuíssem com uma quantia fixa mínima e que só excepcionalmente (e temporariamente) fossem isentos dessa obrigação. Ser membro implicava contribuir para as necessidades materiais da igreja. A Igreja Evangélica Lisbonense, fundada em 1898, consagrou nos seus estatutos de 1915 (ainda em vigor) essa obrigação [artigo 5.º, 1.º]. Era e é uma forma de responsabilização de cada membro, tornando a sua decisão de aderir mais ponderada e reflectida porque implica disponibilizar à igreja uma parte daquilo que, pelo trabalho, geramos para nos sustentarmos na vida de todos os dias. Só há responsabilidade se formos capazes de um sacrifício e só há sacrifício se estivermos empenhados. Logo, só havia e só há igrejas livres se autosustentadas no empenho dos seus membros.
A esta contribuição dos membros da igreja chamamos habitualmente «dízimo» por tradição bíblica. Sabemos que não se trata exactamente do dízimo instituído na Lei mosaica (ver texto acima), mas talvez não seja má ideia mantermos esse paralelo, mesmo que simbolicamente. Interessa manter o seu espírito, sobretudo como aparece expresso no livro de Génesis (14:20 e 28:22), embora não tenhamos necessariamente de o traduzir nuns exactos 10%. Usando a nossa liberdade cristã e o sentido de responsabilidade que lhe está associado, saberemos disponibilizar o que não penaliza excessivamente outras obrigações sem, ao mesmo tempo, descurar a dignidade daquilo que em nome do Senhor nos junta na mesma igreja aos nossos irmãos na fé.
O dízimo é a décima parte de um rendimento, em espécies ou em dinheiro. A primeira vez que surge na Bíblia é logo no livro de Génesis (14:20) e associado à figura de Abraão. O primeiro dízimo foi, assim, pago pelo nosso pai na fé e entregue a Melquisedeque, «sacerdote do Deus altíssimo» antes da instituição do sacerdócio araónico e levítico e cujo nome em hebraico (melech = rei, zedek = justiça) tem grande significado. Nesta figura quase misteriosa de um «rei da justiça» a quem Abraão paga o dízimo, e que é referida novamente no Salmo 110 e na Epístola aos Hebreus, é difícil não ver a prefiguração de Jesus Cristo e do seu sacerdócio eterno, consumado após a sua Paixão e Ressurreição. De facto, o Salmo 110 anuncia um rei-sacerdote «segundo a ordem de Melquisedeque», a que associa David, e o autor de Hebreus claramente projecta em Jesus essa realeza sacerdotal que era um dos símbolos religiosos mais fortes do Antigo Testamento. Se a Nova Aliança está latente na Antiga e esta patente na Nova, então Abraão pagou o primeiro dízimo a Deus por meio de um rei-sacerdote, para nós prefiguração de Cristo, antes mesmo de Deus lhe prometer descendência (Gn 15:4).
Ainda em Génesis (28:22), o dízimo ressurge, agora como promessa e pela boca de Jacó, associado à aliança com Deus e como sinal de gratidão e compensação pelas graças recebidas do Altíssimo. O sentido aqui é que tudo aquilo que geramos para nos sustentarmos é uma dádiva de Deus, a Quem devemos, em sinal de gratidão, devolver a décima parte. Como se percebe no fim de Levítico, com a instituição do sacerdócio histórico judaico, a décima parte de todos os produtos agrícolas recolhidos passou a ser dada à tribo sacerdotal de Levi, como se fosse entregue a Deus (Lv 27:30-34). Isto torna-se mais claro em Números, onde o dízimo é mencionado como concessão a essa tribo pelo serviço prestado ao povo no culto a Deus (18:21, 24 e 28). Em Deuteronómio (14:22 e 26:12), a entrega do dízimo aos sacerdotes devia tornar-se uma ocasião de partilha dos crentes com os levitas e com os pobres, os órfãos, as viúvas e os estrangeiros, que em conjunto comeriam uma porção; esta idealização alivia a imagem do dízimo como tributo religioso e parece prefigurar agora o sagrado convívio e a comunhão da Santa Ceia instituída por Jesus. Tanto em Neemias (10:37) como pelo profeta Malaquias (3:8), o dízimo é visto como sinal de obediência à Lei, cuja falta Malaquias considera mesmo um «roubo». Ao longo do Antigo Testamento, o dízimo de Abraão institucionaliza-se, torna-se um preceito da Lei, embora fosse possível olhá-lo como um sinal mais espiritual de acção de graças ou de partilha sagrada.
No Novo Testamento, o dízimo só aparece numa advertência de Jesus em Mateus 23:23 (= Lucas 11:42) – alertando os fariseus para o formalismo vazio da sua prática, pagando a décima parte da hortelã, do endro e do cominho e esquecendo a justiça, a misericórdia e a fé – e em Hebreus 7:2, 9 com as referências já mencionadas a Abraão e a Melquisedeque. Jesus não condena o dízimo, apenas realça o absurdo de a esse acto exterior não corresponder uma atitude interior que o deveria motivar. Mas a abolição ou inutilização do sacerdócio levítico pelo sacrifício de Jesus Cristo na cruz necessariamente tornou o dízimo institucionalizado do Antigo Testamento uma prática deslocada e anacrónica para os cristãos. Não há mais sacerdotes que sacrifiquem ao Deus altíssimo; o véu do templo antigo rasgou-se e Jesus operou em si mesmo o único sacrifício válido para sempre. Todos aqueles que o confessam como o Cristo são sacerdotes e membros do novo povo eleito. A quem, pois, haveríamos de pagar o dízimo?
Já não estamos sob a obrigação da Lei (o dízimo institucionalizado), mas também Abraão não estava – e pagou-o. Abraão entregou a Melquisedeque a décima parte do que tinha, num acto de motivação espiritual e de decisão individual. Com esse acto, ancorava na sua vida a aliança com Deus. Como Abraão, fora do jugo da Lei, também nós individualmente somos chamados a actos exteriores que ancorem a nossa fé e explicitem o nosso compromisso com Deus, dando graças sob a forma da devolução, como Jacó. Na Nova Aliança, o dízimo já não é obrigação; é uma interpelação ao cristão sobre a ancoragem da fé na sua vida, fortalecida por actos consequentes.
Post scriptum [O dízimo na nossa história protestante]:
As igrejas protestantes instalaram-se em Portugal por iniciativa particular. Isso contrastava com o que sucedera ao longo da história do nosso país, em que a Igreja Católica se confundira com o Estado e em que os reis foram quase sempre os patronos principais da sua estrutura, provendo os meios necessários à sua manutenção. Diferente é a nossa história. As igrejas protestantes, depois de um período de implantação, em que eram missões apoiadas por igrejas estrangeiras irmãs mais vigorosas, tornaram-se comunidades eclesiais que tinham de se bastar a si mesmas. Cabia, assim, aos seus membros prover os meios necessários à sua manutenção. Onde a igreja oficial contava com o braço forte do Estado, as igrejas protestantes alicerçavam-se no empenho e nos recursos particulares dos seus membros. Por isso eram igrejas livres, no melhor sentido da palavra, constituídas por cristãos que se reviam num cristianismo livre porque alheio a dependências do poder político e daqueles que não eram seus membros.
Os estatutos das igrejas protestantes mais antigas no nosso país (chamadas «históricas»), como a nossa, previam que os membros aceites na sua comunhão contribuíssem com uma quantia fixa mínima e que só excepcionalmente (e temporariamente) fossem isentos dessa obrigação. Ser membro implicava contribuir para as necessidades materiais da igreja. A Igreja Evangélica Lisbonense, fundada em 1898, consagrou nos seus estatutos de 1915 (ainda em vigor) essa obrigação [artigo 5.º, 1.º]. Era e é uma forma de responsabilização de cada membro, tornando a sua decisão de aderir mais ponderada e reflectida porque implica disponibilizar à igreja uma parte daquilo que, pelo trabalho, geramos para nos sustentarmos na vida de todos os dias. Só há responsabilidade se formos capazes de um sacrifício e só há sacrifício se estivermos empenhados. Logo, só havia e só há igrejas livres se autosustentadas no empenho dos seus membros.
A esta contribuição dos membros da igreja chamamos habitualmente «dízimo» por tradição bíblica. Sabemos que não se trata exactamente do dízimo instituído na Lei mosaica (ver texto acima), mas talvez não seja má ideia mantermos esse paralelo, mesmo que simbolicamente. Interessa manter o seu espírito, sobretudo como aparece expresso no livro de Génesis (14:20 e 28:22), embora não tenhamos necessariamente de o traduzir nuns exactos 10%. Usando a nossa liberdade cristã e o sentido de responsabilidade que lhe está associado, saberemos disponibilizar o que não penaliza excessivamente outras obrigações sem, ao mesmo tempo, descurar a dignidade daquilo que em nome do Senhor nos junta na mesma igreja aos nossos irmãos na fé.
quarta-feira, maio 08, 2013
Thatcher: There is no such thing as public money
[Margaret Thatcher na conferência de 1983 do Partido Conservador.] A mulher que, segundo os confusionistas de serviço, está na origem na actual crise financeira. Coitados, não sabem o que dizem... Claro que Gladstone hoje votaria conservador.
quinta-feira, março 07, 2013
Speech on the Representation of the Commons in Parliament (Edmund Burke, 1782)
[Discurso sobre uma moção apresentada à Câmara dos Comuns, a 7 de Maio de 1782, propondo a reforma da representação na mesma câmara.]
«Our Constitution is like our Island, which uses and restrains its subject Sea; in vain the waves roar.»
Mr. speaker,
We have now discovered, at the close of the eighteenth century, that the Constitution of England, which for a series of ages had been the proud distinction of this Country, always the admiration, and sometimes the envy of the wise and learned in every other Nation, we have discovered that this boasted Constitution, in the most boasted part of it, is a gross imposition upon the understanding of mankind, an insult to their feelings, and acting by contrivances destructive to the best and most valuable interests of the people. Our political architects have taken a survey of the fabrick of the British Constitution. It is singular, that they report nothing against the Crown, nothing against the Lords; but in the House of Commons every thing is unsound; it is ruinous in every part. It is infested by the dry rot, and ready to tumble about our ears without their immediate help. You know by the faults they find, what are their ideas of the alteration. As all government stands upon opinion, they know that the way utterly to destroy it is to remove that opinion, to take away all reverence, all confidence from it; and then, at the first blast of publick discontent and popular tumult, it tumbles to the ground.
In considering this question, they, who oppose it, oppose it on different grounds; one is, in the nature of a previous question; that some alterations may be expedient, but that this is not the time for making them. The other is, that no essential alterations are at all wanting: and that neither now, nor at any time, is it prudent or safe to be meddling with the fundamental principles, and ancient tried usages of our Constitution—that our Representation is as nearly perfect as the necessary imperfection of human affairs and of human creatures will suffer it to be; and that it is a subject of prudent and honest use and thankful enjoyment, and not of captious criticism and rash experiment.
On the other side, there are two parties, who proceed on two grounds, in my opinion, as they state them, utterly irreconcileable. The one is juridical, the other political. The one is in the nature of a claim of right, on the supposed rights of man as man; this party desire the decision of a suit. The other ground, as far as I can divine what it directly means, is, that the Representation is not so politically framed as to answer the theory of its institution. As to the claim of right, the meanest petitioner, the most gross and ignorant, is as good as the best; in some respects his claim is more favourable on account of his ignorance; his weakness, his poverty and distress, only add to his titles; he sues in forma pauperis; he ought to be a favourite of the Court. But when the other ground is taken, when the question is political, when a new Constitution is to be made on a sound theory of government, then the presumptuous pride of didactick ignorance is to be excluded from the counsel in this high and arduous matter, which often bids defiance to the experience of the wisest. The first claims a personal representation, the latter rejects it with scorn and fervour. The language of the first party is plain and intelligible; they, who plead an absolute right, cannot be satisfied with anything short of personal representation, because all natural rights must be the rights of individuals; as by nature there is no such thing as politick or corporate personality; all these ideas are mere fictions of Law, they are creatures of voluntary institution; men as men are individuals, and nothing else. They therefore, who reject the principle of natural and personal representation, are essentially and eternally at variance with those, who claim it. As to the first sort of Reformers, it is ridiculous to talk to them of the British Constitution upon any or upon all of its bases; for they lay it down, that every man ought to govern himself, and that where he cannot go himself he must send his Representative; that all other government is usurpation, and is so far from having a claim to our obedience, it is not only our right, but our duty, to resist it. Nine tenths of the Reformers argue thus, that is on the natural right. It is impossible not to make some reflection on the nature of this claim, or avoid a comparison between the extent of the principle and the present object of the demand. If this claim be founded, it is clear to what it goes. The House of Commons, in that light, undoubtedly is no representative of the people as a collection of individuals. Nobody pretends it, nobody can justify such an assertion. When you come to examine into this claim of right, founded on the right of self-government in each individual, you find the thing demanded infinitely short of the principle of the demand. What! one third only of the Legislature, and of the Government no share at all? What sort of treaty of partition is this for those, who have an inherent right to the whole? Give them all they ask, and your grant is still a cheat; for how comes only a third to be their younger childrens fortune in this settlement? How came they neither to have the choice of Kings, or Lords, or Judges, or Generals, or Admirals, or Bishops, or Priests, or Ministers, or Justices of Peace? Why, what have you to answer in favour of the prior rights of the Crown and Peerage but this—our Constitution is a prescriptive Constitution; it is a Constitution, whose sole authority is, that it has existed time out of mind. It is settled in these two portions against one, legislatively; and in the whole of the judicature, the whole of the federal capacity, of the executive, the prudential and the financial administration, in one alone. Nor was your House of Lords and the prerogatives of the Crown settled on any adjudication in favour of natural rights, for they could never be so partitioned. Your King, your Lords, your Judges, your Juries, grand and little, all are prescriptive; and what proves it, is, the disputes not yet concluded, and never near becoming so, when any of them first originated. Prescription is the most solid of all titles, not only to property, but, which is to secure that property, to Government. They harmonize with each other, and give mutual aid to one another. It is accompanied with another ground of authority in the constitution of the human mind, presumption. It is a presumption in favour of any settled scheme of government against any untried project, that a nation has long existed and flourished under it. It is a better presumption even of the choice of a nation, far better than any sudden and temporary arrangement by actual election. Because a nation is not an idea only of local extent, and individual momentary aggregation, but it is an idea of continuity, which extends in time as well as in numbers, and in space. And this is a choice not of one day, or one set of people, not a tumultuary and giddy choice; it is a deliberate election of ages and of generations; it is a Constitution made by what is ten thousand times better than choice, it is made by the peculiar circumstances, occasions, tempers, dispositions, and moral, civil, and social habitudes of the people, which disclose themselves only in a long space of time. It is a vestment, which accommodates itself to the body. Nor is prescription of government formed upon blind unmeaning prejudices—for man is a most unwise, and a most wise, being. The individual is foolish. The multitude, for the moment, is foolish, when they act without deliberation; but the species is wise, and when time is given to it, as a species it almost always acts right.
The reason for the Crown as it is, for the Lords as they are, is my reason for the Commons as they are, the Electors as they are. Now, if the Crown and the Lords, and the Judicatures, are all prescriptive, so is the House of Commons of the very same origin, and of no other. We and our Electors have their powers and privileges both made and circumscribed by prescription, as much to the full as the other parts; and as such we have always claimed them, and on no other title. The House of Commons is a legislative body corporate by prescription, not made upon any given theory, but existing prescriptively—just like the rest. This prescription has made it essentially what it is, an aggregate collection of three parts, Knights, Citizens, Burgesses. The question is, whether this has been always so, since the House of Commons has taken its present shape and circumstances, and has been an essential operative part of the Constitution; which, I take it, it has been for at least five hundred years.
This I resolve to myself in the affirmative: and then another question arises, whether this House stands firm upon its ancient foundations, and is not, by time and accidents, so declined from its perpendicular as to want the hand of the wise and experienced architects of the day to set it upright again, and to prop and buttress it up for duration; whether it continues true to the principles, upon which it has hitherto stood; whether this be de facto the Constitution of the House of Commons, as it has been since the time, that the House of Commons has, without dispute, become a necessary and an efficient part of the British Constitution? To ask whether a thing, which has always been the same, stands to its usual principle, seems to me to be perfectly absurd; for how do you know the principles but from the construction? and if that remains the same, the principles remain the same. It is true, that to say your Constitution is what it has been, is no sufficient defence for those, who say it is a bad Constitution. It is an answer to those, who say that it is a degenerate Constitution. To those, who say it is a bad one, I answer, look to its effects. In all moral machinery the moral results are its test.
On what grounds do we go, to restore our Constitution to what it has been at some given period, or to reform and re-construct it upon principles more conformable to a sound theory of government? A prescriptive Government, such as ours, never was the work of any Legislator, never was made upon any foregone theory. It seems to me a preposterous way of reasoning, and a perfect confusion of ideas, to take the theories, which learned and speculative men have made from that Government, and then supposing it made on those theories, which were made from it, to accuse the Government as not corresponding with them. I do not vilify theory and speculation—no, because that would be to vilify reason itself. Neque decipitur ratio, neque decipit unquam. No; whenever I speak against theory, I mean always a weak, erroneous, fallacious, unfounded, or imperfect theory; and one of the ways of discovering, that it is a false theory, is by comparing it with practice. This is the true touchstone of all theories, which regard man and the affairs of men—does it suit his nature in general; does it suit his nature as modified by his habits?
The more frequently this affair is discussed, the stronger the case appears to the sense and the feelings of mankind. I have no more doubt than I entertain of my existence, that this very thing, which is stated as an horrible thing, is the means of the preservation of our Constitution, whilst it lasts; of curing it of many of the disorders, which, attending every species of institution, would attend the principle of an exact local representation, or a representation on the principle of numbers.1 If you reject personal representation, you are pushed upon expedience; and then what they wish us to do is, to prefer their speculations on that subject to the happy experience of this Country of a growing liberty and a growing prosperity for five hundred years. Whatever respect I have for their talents, this, for one, I will not do. Then what is the standard of expedience? Expedience is that, which is good for the community, and good for every individual in it. Now this expedience is the desideratum, to be sought either without the experience of means, or with that experience. If without, as in case of the fabrication of a new Commonwealth, I will hear the learned arguing what promises to be expedient: but if we are to judge of a Commonwealth actually existing, the first thing I inquire is, what has been found expedient or inexpedient? And I will not take their promise rather than the performance of the Constitution.
But no, this was not the cause of the discontents. I went through most of the Northern parts—the Yorkshire Election was then raging; the year before, through most of the Western Counties—Bath, Bristol, Gloucester—not one word, either in the towns or country, on the subject of representation; much on the Receipt Tax, something on Mr. Fox’s ambition; much greater apprehension of danger from thence than from want of representation. One would think that the ballast of the ship was shifted with us, and that our Constitution had the gunnel under water. But can you fairly and distinctly point out what one evil or grievance has happened, which you can refer to the Representative not following the opinion of his Constituents? What one symptom do we find of this inequality? But it is not an arithmetical inequality, with which we ought to trouble ourselves. If there be a moral, a political equality, this is the desideratum in our Constitution, and in every Constitution in the world. Moral inequality is as between places and between classes. Now I ask, what advantage do you find, that the places, which abound in representation, possess over others, in which it is more scanty, in security for freedom, in security for justice, or in any one of those means of procuring temporal prosperity and eternal happiness, the ends, for which society was formed? Are the local interests of Cornwall and Wiltshire, for instance, their roads, canals, their prisons, their police, better than Yorkshire, Warwickshire, or Staffordshire? Warwick has Members; is Warwick, or Stafford, more opulent, happy, or free, than Newcastle, or than Birmingham? Is Wiltshire the pampered favourite, whilst Yorkshire, like the child of the bond-woman, is turned out to the desert? This is like the unhappy persons, who live, if they can be said to live, in the Statical Chair;1 who are ever feeling their pulse, and who do not judge of health by the aptitude of the body to perform its functions, but by their ideas of what ought to be the true balance between the several secretions. Is a Committee of Cornwall, &c thronged, and the others deserted? No. You have an equal representation, because you have men equally interested in the prosperity of the whole, who are involved in the general interest and the general sympathy; and, perhaps, these places, furnishing a superfluity of publick agents and administrators, (whether in strictness they are Representatives or not, I do not mean to inquire, but they are agents and administrators,) will stand clearer of local interests, passions, prejudices and cabals, than the others, and therefore preserve the balance of the parts, and with a more general view, and a more steady hand, than the rest.
In every political proposal we must not leave out of the question the political views and object of the proposer; and these we discover, not by what he says, but by the principles he lays down. I mean, says he, a moderate and temperate reform; that is, I mean to do as little good as possible. If the Constitution be what you represent it and there be no danger in the change, you do wrong not to make the reform commensurate to the abuse. Fine reformer indeed! generous donor! What is the cause of this parsimony of the liberty, which you dole out to the people? Why all this limitation in giving blessings and benefits to mankind? You admit that there is an extreme in liberty, which may be infinitely noxious to those, who are to receive it, and which in the end will leave them no liberty at all. I think so too; they know it, and they feel it. The question is then, what is the standard of that extreme? What that gentleman, and the Associations, or some parts of their phalanxes, think proper? Then our liberties are in their pleasure; it depends on their arbitrary will how far I shall be free. I will have none of that freedom. If, therefore, the standard of moderation be sought for, I will seek for it. Where? Not in their fancies, nor in my own: I will seek for it where I know it is to be found, in the Constitution I actually enjoy. Here it says to an encroaching prerogative, Your sceptre has its length, you cannot add an hair to your head, or a gem to your Crown, but what an eternal Law has given to it. Here it says to an overweening peerage, Your pride finds banks, that it cannot overflow: here to a tumultuous and giddy people, There is a bound to the raging of the Sea. Our Constitution is like our Island, which uses and restrains its subject Sea; in vain the waves roar. In that Constitution I know, and exultingly I feel, both that I am free, and that I am not free dangerously to myself or to others. I know that no power on earth, acting as I ought to do, can touch my life, my liberty, or my property. I have that inward and dignified consciousness of my own security and independence, which constitutes, and is the only thing, which does constitute, the proud and comfortable sentiment of freedom in the human breast. I know too, and I bless God for my safe mediocrity; I know that, if I possessed all the talents of the gentlemen on the side of the House I sit, and on the other, I cannot by Royal favour, or by popular delusion, or by oligarchical cabal, elevate myself above a certain very limited point, so as to endanger my own fall, or the ruin of my Country. I know there is an order, that keeps things fast in their place; it is made to us, and we are made to it. Why not ask another wife, other children, another body, another mind?
The great object of most of these Reformers is to prepare the destruction of the Constitution, by disgracing and discrediting the House of Commons. For they think, prudently, in my opinion, that if they can persuade the nation, that the House of Commons is so constituted as not to secure the publick liberty; not to have a proper connexion with the publick interests, so constituted, as not either actually or virtually1 to be the Representative of the people, it will be easy to prove, that a Government, composed of a Monarchy, an Oligarchy chosen by the Crown, and such a House of Commons, whatever good can be in such a system, can by no means be a system of free government.
The Constitution of England is never to have a quietus; it is to be continually vilified, attacked, reproached, resisted; instead of being the hope and sure anchor in all storms, instead of being the means of redress to all grievances, itself is the grand grievance of the nation, our shame instead of our glory. If the only specifick plan proposed, individual personal representation, is directly rejected by the person, who is looked on as the great support of this business, then the only way of considering it is a question of convenience. An honourable gentleman prefers the individual to the present. He therefore himself sees no middle term whatsoever, and therefore prefers of what he sees the individual; this is the only thing distinct and sensible, that has been advocated. He has then a scheme, which is the individual representation; he is not at a loss, not inconsistent—which scheme the other right honourable Gentleman reprobates. Now what does this go to, but to lead directly to anarchy? For to discredit the only Government, which he either possesses or can project, what is this but to destroy all government; and this is anarchy. My right honourable friend, in supporting this motion, disgraces his friends and justifies his enemies, in order to blacken the Constitution of his Country, even of that House of Commons, which supported him. There is a difference between a moral or political exposure of a publick evil, relative to the administration of government, whether in men or systems, and a declaration of defects, real or supposed, in the fundamental Constitution of your Country. The first may be cured in the individual by the motives of religion, virtue, honour, fear, shame, or interest. Men may be made to abandon also false systems, by exposing their absurdity or mischievous tendency to their own better thoughts, or to the contempt or indignation of the publick; and after all, if they should exist, and exist uncorrected, they only disgrace individuals as fugitive opinions. But it is quite otherwise with the frame and Constitution of the State; if that is disgraced, patriotism is destroyed in its very source. No man has ever willingly obeyed, much less was desirous of defending with his blood, a mischievous and absurd scheme of government. Our first, our dearest, most comprehensive relation, our Country, is gone.
It suggests melancholy reflections, in consequence of the strange course we have long held, that we are now no longer quarrelling about the character, or about the conduct of men, or the tenour of measures; but we are grown out of humour with the English Constitution itself; this is become the object of the animosity of Englishmen. This Constitution in former days used to be the admiration and the envy of the world; it was the pattern for politicians; the theme of the eloquent; the meditation of the philosopher in every part of the world. As to Englishmen, it was their pride, their consolation. By it they lived, for it they were ready to die. Its defects, if it had any, were partly covered by partiality, and partly born by prudence. Now all its excellencies are forgot, its faults are now forcibly dragged into day, exaggerated by every artifice of representation. It is despised and rejected of men;1 and every device and invention of ingenuity, or idleness, set up in opposition or in preference to it. It is to this humour, and it is to the measures growing out of it, that I set myself (I hope not alone) in the most determined opposition. Never before did we at any time in this Country meet upon the theory of our frame of Government, to sit in judgment on the Constitution of our Country, to call it as a delinquent before us, and to accuse it of every defect and every vice; to see whether it, an object of our veneration, even our adoration, did or did not accord with a pre-conceived scheme in the minds of certain gentlemen. Cast your eyes on the journals of Parliament. It is for fear of losing the inestimable treasure we have, that I do not venture to game it out of my hands for the vain hope of improving it. I look with filial reverence on the Constitution of my Country, and never will cut it in pieces, and put it into the kettle of any magician, in order to boil it, with the puddle of their compounds, into youth and vigour. On the contrary, I will drive away such pretenders; I will nurse its venerable age, and with lenient arts extend a parent’s breath.
«Our Constitution is like our Island, which uses and restrains its subject Sea; in vain the waves roar.»
Mr. speaker,
We have now discovered, at the close of the eighteenth century, that the Constitution of England, which for a series of ages had been the proud distinction of this Country, always the admiration, and sometimes the envy of the wise and learned in every other Nation, we have discovered that this boasted Constitution, in the most boasted part of it, is a gross imposition upon the understanding of mankind, an insult to their feelings, and acting by contrivances destructive to the best and most valuable interests of the people. Our political architects have taken a survey of the fabrick of the British Constitution. It is singular, that they report nothing against the Crown, nothing against the Lords; but in the House of Commons every thing is unsound; it is ruinous in every part. It is infested by the dry rot, and ready to tumble about our ears without their immediate help. You know by the faults they find, what are their ideas of the alteration. As all government stands upon opinion, they know that the way utterly to destroy it is to remove that opinion, to take away all reverence, all confidence from it; and then, at the first blast of publick discontent and popular tumult, it tumbles to the ground.
In considering this question, they, who oppose it, oppose it on different grounds; one is, in the nature of a previous question; that some alterations may be expedient, but that this is not the time for making them. The other is, that no essential alterations are at all wanting: and that neither now, nor at any time, is it prudent or safe to be meddling with the fundamental principles, and ancient tried usages of our Constitution—that our Representation is as nearly perfect as the necessary imperfection of human affairs and of human creatures will suffer it to be; and that it is a subject of prudent and honest use and thankful enjoyment, and not of captious criticism and rash experiment.
On the other side, there are two parties, who proceed on two grounds, in my opinion, as they state them, utterly irreconcileable. The one is juridical, the other political. The one is in the nature of a claim of right, on the supposed rights of man as man; this party desire the decision of a suit. The other ground, as far as I can divine what it directly means, is, that the Representation is not so politically framed as to answer the theory of its institution. As to the claim of right, the meanest petitioner, the most gross and ignorant, is as good as the best; in some respects his claim is more favourable on account of his ignorance; his weakness, his poverty and distress, only add to his titles; he sues in forma pauperis; he ought to be a favourite of the Court. But when the other ground is taken, when the question is political, when a new Constitution is to be made on a sound theory of government, then the presumptuous pride of didactick ignorance is to be excluded from the counsel in this high and arduous matter, which often bids defiance to the experience of the wisest. The first claims a personal representation, the latter rejects it with scorn and fervour. The language of the first party is plain and intelligible; they, who plead an absolute right, cannot be satisfied with anything short of personal representation, because all natural rights must be the rights of individuals; as by nature there is no such thing as politick or corporate personality; all these ideas are mere fictions of Law, they are creatures of voluntary institution; men as men are individuals, and nothing else. They therefore, who reject the principle of natural and personal representation, are essentially and eternally at variance with those, who claim it. As to the first sort of Reformers, it is ridiculous to talk to them of the British Constitution upon any or upon all of its bases; for they lay it down, that every man ought to govern himself, and that where he cannot go himself he must send his Representative; that all other government is usurpation, and is so far from having a claim to our obedience, it is not only our right, but our duty, to resist it. Nine tenths of the Reformers argue thus, that is on the natural right. It is impossible not to make some reflection on the nature of this claim, or avoid a comparison between the extent of the principle and the present object of the demand. If this claim be founded, it is clear to what it goes. The House of Commons, in that light, undoubtedly is no representative of the people as a collection of individuals. Nobody pretends it, nobody can justify such an assertion. When you come to examine into this claim of right, founded on the right of self-government in each individual, you find the thing demanded infinitely short of the principle of the demand. What! one third only of the Legislature, and of the Government no share at all? What sort of treaty of partition is this for those, who have an inherent right to the whole? Give them all they ask, and your grant is still a cheat; for how comes only a third to be their younger childrens fortune in this settlement? How came they neither to have the choice of Kings, or Lords, or Judges, or Generals, or Admirals, or Bishops, or Priests, or Ministers, or Justices of Peace? Why, what have you to answer in favour of the prior rights of the Crown and Peerage but this—our Constitution is a prescriptive Constitution; it is a Constitution, whose sole authority is, that it has existed time out of mind. It is settled in these two portions against one, legislatively; and in the whole of the judicature, the whole of the federal capacity, of the executive, the prudential and the financial administration, in one alone. Nor was your House of Lords and the prerogatives of the Crown settled on any adjudication in favour of natural rights, for they could never be so partitioned. Your King, your Lords, your Judges, your Juries, grand and little, all are prescriptive; and what proves it, is, the disputes not yet concluded, and never near becoming so, when any of them first originated. Prescription is the most solid of all titles, not only to property, but, which is to secure that property, to Government. They harmonize with each other, and give mutual aid to one another. It is accompanied with another ground of authority in the constitution of the human mind, presumption. It is a presumption in favour of any settled scheme of government against any untried project, that a nation has long existed and flourished under it. It is a better presumption even of the choice of a nation, far better than any sudden and temporary arrangement by actual election. Because a nation is not an idea only of local extent, and individual momentary aggregation, but it is an idea of continuity, which extends in time as well as in numbers, and in space. And this is a choice not of one day, or one set of people, not a tumultuary and giddy choice; it is a deliberate election of ages and of generations; it is a Constitution made by what is ten thousand times better than choice, it is made by the peculiar circumstances, occasions, tempers, dispositions, and moral, civil, and social habitudes of the people, which disclose themselves only in a long space of time. It is a vestment, which accommodates itself to the body. Nor is prescription of government formed upon blind unmeaning prejudices—for man is a most unwise, and a most wise, being. The individual is foolish. The multitude, for the moment, is foolish, when they act without deliberation; but the species is wise, and when time is given to it, as a species it almost always acts right.
The reason for the Crown as it is, for the Lords as they are, is my reason for the Commons as they are, the Electors as they are. Now, if the Crown and the Lords, and the Judicatures, are all prescriptive, so is the House of Commons of the very same origin, and of no other. We and our Electors have their powers and privileges both made and circumscribed by prescription, as much to the full as the other parts; and as such we have always claimed them, and on no other title. The House of Commons is a legislative body corporate by prescription, not made upon any given theory, but existing prescriptively—just like the rest. This prescription has made it essentially what it is, an aggregate collection of three parts, Knights, Citizens, Burgesses. The question is, whether this has been always so, since the House of Commons has taken its present shape and circumstances, and has been an essential operative part of the Constitution; which, I take it, it has been for at least five hundred years.
This I resolve to myself in the affirmative: and then another question arises, whether this House stands firm upon its ancient foundations, and is not, by time and accidents, so declined from its perpendicular as to want the hand of the wise and experienced architects of the day to set it upright again, and to prop and buttress it up for duration; whether it continues true to the principles, upon which it has hitherto stood; whether this be de facto the Constitution of the House of Commons, as it has been since the time, that the House of Commons has, without dispute, become a necessary and an efficient part of the British Constitution? To ask whether a thing, which has always been the same, stands to its usual principle, seems to me to be perfectly absurd; for how do you know the principles but from the construction? and if that remains the same, the principles remain the same. It is true, that to say your Constitution is what it has been, is no sufficient defence for those, who say it is a bad Constitution. It is an answer to those, who say that it is a degenerate Constitution. To those, who say it is a bad one, I answer, look to its effects. In all moral machinery the moral results are its test.
On what grounds do we go, to restore our Constitution to what it has been at some given period, or to reform and re-construct it upon principles more conformable to a sound theory of government? A prescriptive Government, such as ours, never was the work of any Legislator, never was made upon any foregone theory. It seems to me a preposterous way of reasoning, and a perfect confusion of ideas, to take the theories, which learned and speculative men have made from that Government, and then supposing it made on those theories, which were made from it, to accuse the Government as not corresponding with them. I do not vilify theory and speculation—no, because that would be to vilify reason itself. Neque decipitur ratio, neque decipit unquam. No; whenever I speak against theory, I mean always a weak, erroneous, fallacious, unfounded, or imperfect theory; and one of the ways of discovering, that it is a false theory, is by comparing it with practice. This is the true touchstone of all theories, which regard man and the affairs of men—does it suit his nature in general; does it suit his nature as modified by his habits?
The more frequently this affair is discussed, the stronger the case appears to the sense and the feelings of mankind. I have no more doubt than I entertain of my existence, that this very thing, which is stated as an horrible thing, is the means of the preservation of our Constitution, whilst it lasts; of curing it of many of the disorders, which, attending every species of institution, would attend the principle of an exact local representation, or a representation on the principle of numbers.1 If you reject personal representation, you are pushed upon expedience; and then what they wish us to do is, to prefer their speculations on that subject to the happy experience of this Country of a growing liberty and a growing prosperity for five hundred years. Whatever respect I have for their talents, this, for one, I will not do. Then what is the standard of expedience? Expedience is that, which is good for the community, and good for every individual in it. Now this expedience is the desideratum, to be sought either without the experience of means, or with that experience. If without, as in case of the fabrication of a new Commonwealth, I will hear the learned arguing what promises to be expedient: but if we are to judge of a Commonwealth actually existing, the first thing I inquire is, what has been found expedient or inexpedient? And I will not take their promise rather than the performance of the Constitution.
But no, this was not the cause of the discontents. I went through most of the Northern parts—the Yorkshire Election was then raging; the year before, through most of the Western Counties—Bath, Bristol, Gloucester—not one word, either in the towns or country, on the subject of representation; much on the Receipt Tax, something on Mr. Fox’s ambition; much greater apprehension of danger from thence than from want of representation. One would think that the ballast of the ship was shifted with us, and that our Constitution had the gunnel under water. But can you fairly and distinctly point out what one evil or grievance has happened, which you can refer to the Representative not following the opinion of his Constituents? What one symptom do we find of this inequality? But it is not an arithmetical inequality, with which we ought to trouble ourselves. If there be a moral, a political equality, this is the desideratum in our Constitution, and in every Constitution in the world. Moral inequality is as between places and between classes. Now I ask, what advantage do you find, that the places, which abound in representation, possess over others, in which it is more scanty, in security for freedom, in security for justice, or in any one of those means of procuring temporal prosperity and eternal happiness, the ends, for which society was formed? Are the local interests of Cornwall and Wiltshire, for instance, their roads, canals, their prisons, their police, better than Yorkshire, Warwickshire, or Staffordshire? Warwick has Members; is Warwick, or Stafford, more opulent, happy, or free, than Newcastle, or than Birmingham? Is Wiltshire the pampered favourite, whilst Yorkshire, like the child of the bond-woman, is turned out to the desert? This is like the unhappy persons, who live, if they can be said to live, in the Statical Chair;1 who are ever feeling their pulse, and who do not judge of health by the aptitude of the body to perform its functions, but by their ideas of what ought to be the true balance between the several secretions. Is a Committee of Cornwall, &c thronged, and the others deserted? No. You have an equal representation, because you have men equally interested in the prosperity of the whole, who are involved in the general interest and the general sympathy; and, perhaps, these places, furnishing a superfluity of publick agents and administrators, (whether in strictness they are Representatives or not, I do not mean to inquire, but they are agents and administrators,) will stand clearer of local interests, passions, prejudices and cabals, than the others, and therefore preserve the balance of the parts, and with a more general view, and a more steady hand, than the rest.
In every political proposal we must not leave out of the question the political views and object of the proposer; and these we discover, not by what he says, but by the principles he lays down. I mean, says he, a moderate and temperate reform; that is, I mean to do as little good as possible. If the Constitution be what you represent it and there be no danger in the change, you do wrong not to make the reform commensurate to the abuse. Fine reformer indeed! generous donor! What is the cause of this parsimony of the liberty, which you dole out to the people? Why all this limitation in giving blessings and benefits to mankind? You admit that there is an extreme in liberty, which may be infinitely noxious to those, who are to receive it, and which in the end will leave them no liberty at all. I think so too; they know it, and they feel it. The question is then, what is the standard of that extreme? What that gentleman, and the Associations, or some parts of their phalanxes, think proper? Then our liberties are in their pleasure; it depends on their arbitrary will how far I shall be free. I will have none of that freedom. If, therefore, the standard of moderation be sought for, I will seek for it. Where? Not in their fancies, nor in my own: I will seek for it where I know it is to be found, in the Constitution I actually enjoy. Here it says to an encroaching prerogative, Your sceptre has its length, you cannot add an hair to your head, or a gem to your Crown, but what an eternal Law has given to it. Here it says to an overweening peerage, Your pride finds banks, that it cannot overflow: here to a tumultuous and giddy people, There is a bound to the raging of the Sea. Our Constitution is like our Island, which uses and restrains its subject Sea; in vain the waves roar. In that Constitution I know, and exultingly I feel, both that I am free, and that I am not free dangerously to myself or to others. I know that no power on earth, acting as I ought to do, can touch my life, my liberty, or my property. I have that inward and dignified consciousness of my own security and independence, which constitutes, and is the only thing, which does constitute, the proud and comfortable sentiment of freedom in the human breast. I know too, and I bless God for my safe mediocrity; I know that, if I possessed all the talents of the gentlemen on the side of the House I sit, and on the other, I cannot by Royal favour, or by popular delusion, or by oligarchical cabal, elevate myself above a certain very limited point, so as to endanger my own fall, or the ruin of my Country. I know there is an order, that keeps things fast in their place; it is made to us, and we are made to it. Why not ask another wife, other children, another body, another mind?
The great object of most of these Reformers is to prepare the destruction of the Constitution, by disgracing and discrediting the House of Commons. For they think, prudently, in my opinion, that if they can persuade the nation, that the House of Commons is so constituted as not to secure the publick liberty; not to have a proper connexion with the publick interests, so constituted, as not either actually or virtually1 to be the Representative of the people, it will be easy to prove, that a Government, composed of a Monarchy, an Oligarchy chosen by the Crown, and such a House of Commons, whatever good can be in such a system, can by no means be a system of free government.
The Constitution of England is never to have a quietus; it is to be continually vilified, attacked, reproached, resisted; instead of being the hope and sure anchor in all storms, instead of being the means of redress to all grievances, itself is the grand grievance of the nation, our shame instead of our glory. If the only specifick plan proposed, individual personal representation, is directly rejected by the person, who is looked on as the great support of this business, then the only way of considering it is a question of convenience. An honourable gentleman prefers the individual to the present. He therefore himself sees no middle term whatsoever, and therefore prefers of what he sees the individual; this is the only thing distinct and sensible, that has been advocated. He has then a scheme, which is the individual representation; he is not at a loss, not inconsistent—which scheme the other right honourable Gentleman reprobates. Now what does this go to, but to lead directly to anarchy? For to discredit the only Government, which he either possesses or can project, what is this but to destroy all government; and this is anarchy. My right honourable friend, in supporting this motion, disgraces his friends and justifies his enemies, in order to blacken the Constitution of his Country, even of that House of Commons, which supported him. There is a difference between a moral or political exposure of a publick evil, relative to the administration of government, whether in men or systems, and a declaration of defects, real or supposed, in the fundamental Constitution of your Country. The first may be cured in the individual by the motives of religion, virtue, honour, fear, shame, or interest. Men may be made to abandon also false systems, by exposing their absurdity or mischievous tendency to their own better thoughts, or to the contempt or indignation of the publick; and after all, if they should exist, and exist uncorrected, they only disgrace individuals as fugitive opinions. But it is quite otherwise with the frame and Constitution of the State; if that is disgraced, patriotism is destroyed in its very source. No man has ever willingly obeyed, much less was desirous of defending with his blood, a mischievous and absurd scheme of government. Our first, our dearest, most comprehensive relation, our Country, is gone.
It suggests melancholy reflections, in consequence of the strange course we have long held, that we are now no longer quarrelling about the character, or about the conduct of men, or the tenour of measures; but we are grown out of humour with the English Constitution itself; this is become the object of the animosity of Englishmen. This Constitution in former days used to be the admiration and the envy of the world; it was the pattern for politicians; the theme of the eloquent; the meditation of the philosopher in every part of the world. As to Englishmen, it was their pride, their consolation. By it they lived, for it they were ready to die. Its defects, if it had any, were partly covered by partiality, and partly born by prudence. Now all its excellencies are forgot, its faults are now forcibly dragged into day, exaggerated by every artifice of representation. It is despised and rejected of men;1 and every device and invention of ingenuity, or idleness, set up in opposition or in preference to it. It is to this humour, and it is to the measures growing out of it, that I set myself (I hope not alone) in the most determined opposition. Never before did we at any time in this Country meet upon the theory of our frame of Government, to sit in judgment on the Constitution of our Country, to call it as a delinquent before us, and to accuse it of every defect and every vice; to see whether it, an object of our veneration, even our adoration, did or did not accord with a pre-conceived scheme in the minds of certain gentlemen. Cast your eyes on the journals of Parliament. It is for fear of losing the inestimable treasure we have, that I do not venture to game it out of my hands for the vain hope of improving it. I look with filial reverence on the Constitution of my Country, and never will cut it in pieces, and put it into the kettle of any magician, in order to boil it, with the puddle of their compounds, into youth and vigour. On the contrary, I will drive away such pretenders; I will nurse its venerable age, and with lenient arts extend a parent’s breath.
sexta-feira, novembro 30, 2012
Ernesto Ferreira (1913-2012): um autor de referência
Ernesto
Ferreira, A Verdade Cristã: À Luz da
Razão, da Revelação Divina e da Tradição, Sabugo: Publicadora Servir, 2012,
288 páginas.
O livro A Verdade Cristã está organizado em três partes, nas quais se analisa a fé, respetivamente, à luz da razão, da revelação e da tradição. A primeira trata das dúvidas que à sombra da razão se têm lançado sobre essas crenças fundamentais dos cristãos (nomeadamente, a morte, o sepultamento e a ressurreição de Jesus), que são rebatidas pelo autor no âmbito da própria discussão racional. A segunda parte, a mais extensa, é uma exposição das crenças cristãs à luz da Bíblia, desde os temas tradicionais da dogmática (a divindade de Jesus, o papel de Cristo no plano divino da Salvação, a natureza do Espírito Santo e o significado do Batismo e da Santa Ceia) até outros mais específicos como as questões da santificação, da oração, das controvérsias sobre o livre-arbítrio ou a fé e as obras, os ministérios na Igreja, mas também as questões do sábado (vs. guardar o domingo), da Segunda Vinda de Jesus e da imortalidade condicional, que são temas mais habituais na literatura adventista. Na terceira e última parte, também longa, é-nos apresentada uma série de relevantes problemas teológicos levantados pela história cristã e pelas divergentes interpretações de que foram alvo entre cristãos e em relação com as quais se foi forjando uma identidade protestante, de que o pastor Ferreira é nesta obra um defensor consistente e estimulante; assim, esta última parte do livro é, em grande medida, um demorado comentário das principais práticas e diferenças do catolicismo em relação ao protestantismo, abordando – num tom um pouco mais polémico – problemas como os livros deuterocanónicos, o culto das imagens, o número dos sacramentos reconhecidos, a conceção teológica da Santa Ceia, o Purgatório (que, entretanto, o Papa aboliu «por decreto») ou a ideia da sucessão apostólica linear e pessoal na Igreja. Traçada assim a estrutura da obra, pode dizer-se, resumidamente, que a primeira e terceira partes são exercícios de controvérsia na boa tradição literária cristã, enquanto a segunda parte é uma reapresentação, mais resumida, dos temas da dogmática de uma perspetiva protestante já expostos nos livros O Senhor Vem e Edificados sobre a Rocha.
Dois traços da linha argumentativa usada pelo pastor Ferreira são o constante recurso às Sagradas Escrituras para sustentar as suas afirmações – frequentemente elucidando a etimologia hebraica e grega das palavras e expressões mais importantes – e as ligações históricas que muitas vezes propõe para demonstrar como as conceções da Reforma estão bem ancoradas na mais antiga e mais sã tradição teológica, em particular a da Patrística, como quando cita esta frase de Jerónimo no século IV, que julgaríamos pronunciada por Lutero ou Calvino quase doze séculos depois: «Tudo o que é ensinado sem a autoridade e sem o testemunho da Escritura, sob pretexto de tradição apostólica, é ferido pela espada de Cristo» (A Verdade Cristã, p. 172). Em A Verdade Cristã, os leitores protestantes de qualquer denominação têm, pois, um autêntico tratado de excelente exposição dogmática e uma inteligente contraposição polémica em relação às críticas mais comuns de que é alvo o cristianismo protestante. Mesmo nos temas provavelmente mais controversos entre protestantes, como o da imortalidade condicional, o leitor tem muito a aprender com a forma séria e informada como o pastor Ferreira o conduz por este importante problema teológico, recorrendo à exegese bíblica, à argumentação lógica (ou racional) e aos contributos conceptuais mais importantes da tradição histórica cristã.
Em abril deste ano, quando completou 99
anos, o pastor adventista Ernesto Ferreira, publicou o seu quinto livro. Estava
já cego e ditou-o a um irmão na fé. Pelo carácter sistemático e abundância de
notas e referências a outros autores, ninguém diria tratar-se de uma obra
escrita nestas condições. Mas seria preciso não conhecer Ernesto Ferreira para
pensar que, apesar de todas as limitações de que já sofria, ele não faria um
livro à altura dos anteriores. Nos seus livros e nos muitos artigos que
publicou na Revista Adventista (e
também na revista Sinais dos Tempos),
o pastor Ferreira mostrou sempre as mesmas características de um trabalho
metódico, erudito e firme nos seus princípios – e assim se manteve até ao fim,
mesmo quando já lhe faltava a visão. Convém, no entanto, lembrar que essa
atividade intelectual residia num homem de ação consagrado ao Evangelho –
durante décadas, foi pastor, várias vezes presidente da União Portuguesa dos
Adventistas do Sétimo Dia, docente e diretor de estabelecimentos de ensino
adventistas e responsável (de 1958 a 1968) pelo campo missionário adventista em
Angola.
Em 2008, o pastor Ferreira publicou Arautos de Boas Novas, uma volumosa
história do centenário da Igreja Adventista do Sétimo Dia em Portugal. Os seus
livros anteriores, nomeadamente O Senhor
Vem (1971) e Edificados sobre a Rocha
(1987), são sólidas obras de teologia dogmática, exemplarmente assentes na
Bíblia e nos comentários dos grandes autores cristãos de todos os tempos, entre
os quais o autor situa, em lugar de destaque, os reformadores do século XVI.
Digamo-lo sem rodeios: sabemos que os Adventistas, durante muito tempo, eram
vistos pelos protestantes «históricos» como um grupo estranho, uma «seita» com
peculiaridades mais ou menos inaceitáveis. Ora, os livros citados de Ernesto
Ferreira mostram, pelo contrário, que essas peculiaridades (guardar o sábado ou
seguir determinadas prescrições alimentares) não são suficientes para colocar
os Adventistas de fora da grande família das denominações diretamente herdeiras
da Reforma. Aquilo que é valorizado na sua escrita é mais representativo das
«cinco solas» do que daquelas
especificidades – mesmo quando se trata de citar a grande figura fundadora do
Adventismo, Ellen G. White. Porque, como diz o pastor Ferreira, «na verdade,
desde o princípio até ao fim, tanto para Lutero, Armínio e Wesley, como para
nós, Cristo, e só Cristo, é a nossa Justiça» (A Verdade Cristã, p. 88). No novo livro, como nos anteriores, a
senhora White é mais citada para mostrar a sua concordância com a tradição
reformada do que para vincar o que é específico da denominação adventista.O livro A Verdade Cristã está organizado em três partes, nas quais se analisa a fé, respetivamente, à luz da razão, da revelação e da tradição. A primeira trata das dúvidas que à sombra da razão se têm lançado sobre essas crenças fundamentais dos cristãos (nomeadamente, a morte, o sepultamento e a ressurreição de Jesus), que são rebatidas pelo autor no âmbito da própria discussão racional. A segunda parte, a mais extensa, é uma exposição das crenças cristãs à luz da Bíblia, desde os temas tradicionais da dogmática (a divindade de Jesus, o papel de Cristo no plano divino da Salvação, a natureza do Espírito Santo e o significado do Batismo e da Santa Ceia) até outros mais específicos como as questões da santificação, da oração, das controvérsias sobre o livre-arbítrio ou a fé e as obras, os ministérios na Igreja, mas também as questões do sábado (vs. guardar o domingo), da Segunda Vinda de Jesus e da imortalidade condicional, que são temas mais habituais na literatura adventista. Na terceira e última parte, também longa, é-nos apresentada uma série de relevantes problemas teológicos levantados pela história cristã e pelas divergentes interpretações de que foram alvo entre cristãos e em relação com as quais se foi forjando uma identidade protestante, de que o pastor Ferreira é nesta obra um defensor consistente e estimulante; assim, esta última parte do livro é, em grande medida, um demorado comentário das principais práticas e diferenças do catolicismo em relação ao protestantismo, abordando – num tom um pouco mais polémico – problemas como os livros deuterocanónicos, o culto das imagens, o número dos sacramentos reconhecidos, a conceção teológica da Santa Ceia, o Purgatório (que, entretanto, o Papa aboliu «por decreto») ou a ideia da sucessão apostólica linear e pessoal na Igreja. Traçada assim a estrutura da obra, pode dizer-se, resumidamente, que a primeira e terceira partes são exercícios de controvérsia na boa tradição literária cristã, enquanto a segunda parte é uma reapresentação, mais resumida, dos temas da dogmática de uma perspetiva protestante já expostos nos livros O Senhor Vem e Edificados sobre a Rocha.
Dois traços da linha argumentativa usada pelo pastor Ferreira são o constante recurso às Sagradas Escrituras para sustentar as suas afirmações – frequentemente elucidando a etimologia hebraica e grega das palavras e expressões mais importantes – e as ligações históricas que muitas vezes propõe para demonstrar como as conceções da Reforma estão bem ancoradas na mais antiga e mais sã tradição teológica, em particular a da Patrística, como quando cita esta frase de Jerónimo no século IV, que julgaríamos pronunciada por Lutero ou Calvino quase doze séculos depois: «Tudo o que é ensinado sem a autoridade e sem o testemunho da Escritura, sob pretexto de tradição apostólica, é ferido pela espada de Cristo» (A Verdade Cristã, p. 172). Em A Verdade Cristã, os leitores protestantes de qualquer denominação têm, pois, um autêntico tratado de excelente exposição dogmática e uma inteligente contraposição polémica em relação às críticas mais comuns de que é alvo o cristianismo protestante. Mesmo nos temas provavelmente mais controversos entre protestantes, como o da imortalidade condicional, o leitor tem muito a aprender com a forma séria e informada como o pastor Ferreira o conduz por este importante problema teológico, recorrendo à exegese bíblica, à argumentação lógica (ou racional) e aos contributos conceptuais mais importantes da tradição histórica cristã.
quarta-feira, outubro 31, 2012
Do caminho de Lutero à estrada da Reforma [Dia da Reforma]
Martinho Lutero não estava a cometer nenhum acto revolucionário quando pregou na porta da igreja de Wittenberg as folhas com as suas 95 Teses contra as Indulgências. Era um hábito nas cidades universitárias desde a Idade Média publicitar teses sobre um assunto teológico de modo a suscitar o debate e a discussão. A porta da igreja era o sítio mais óbvio. De todo o modo, poucos se interessavam habitualmente por esses papéis, sendo apenas os alunos e professores de teologia quem os lia e discutia perante a indiferença ou desinteresse da grande maioria. A Europa já conhecera muitas ideias discordantes em matéria religiosa e até ideais reformadores mais radicais do que os de Lutero e que apenas apaixonaram pequenas minorias ou tiveram impacto em áreas geográficas muito localizadas. No entanto, desta vez, quase logo a seguir àquele dia 31 de Outubro de 1517, toda a Alemanha pareceu pegar fogo; e, com esse fogo, a temperatura da paixão religiosa subiu em toda a Europa.
O que ateou essas labaredas não foi a posição sensata e clara de Lutero sobre a prática de vender indulgências. O fogo veio daquilo que Lutero foi obrigado a descobrir, deduzir e concluir por força dos acontecimentos – e, novamente, a dizê-lo publicamente. O problema não era Lutero escrever verdades, era que, naquele momento, essas verdades não eram convenientes. Lutero foi convidado a transigir com o que convinha à hierarquia da Igreja Católica; depois foi forçado. Perante isso, e depois de se recusar a calar o que a sua consciência de cristão lhe mandava dizer, teve de voltar a sua reflexão e o seu exame das matérias religiosas para o estado da Igreja Cristã na sua época e, indo mais longe, para a sua natureza e organização à luz da Escritura. Tudo isto foi um processo rápido porque tudo à sua volta também aconteceu rapidamente.
Muitos europeus no século XVI estavam no limiar das descobertas de Lutero. Mil anos de cristianismo católico tinham criado muitos desvios, mas também muita procura – e esta superabundava em 1517, já madura e refinada para ser ateada por um questionador certeiro. Lutero concluiu que, na sua época, a Igreja se encontrava num cativeiro, como Israel na Babilónia [Cf. Martinho Lutero, Do Cativeiro Babilónico da Igreja (São Paulo: Martin Claret, 2006), obra de 1520 em torno dos sacramentos e que é uma exposição bastante completa da posição teológica de Lutero.]. A Igreja do Evangelho não podia ser aquela. Não, como hoje muitas vezes se diz, porque Lutero tivesse ficado chocado com o luxo e a corrupção da Cúria Romana. Certamente que ficou, mas isso não era o essencial. A questão das indulgências obrigou-o a procurar radicalmente a fonte da Salvação, pois a instituição que a queria ministrar mostrava-se indigna e ineficaz para isso. Isto foi um corte brutal para um cristão, para mais clérigo, do início do século XVI. A Igreja institucional era uma «Mãe» dos crentes (a «Santa Madre Igreja»), tida como uma verdadeira realidade visível do Reino de Deus. Lutero teve de fazer um esforço heróico para se recentrar no que era essencial e descentrou-se dessa mundividência que há séculos acompanhava o grosso dos cristãos. A sua fidelidade, a sua pertença, a sua fé eram de Deus, do próprio Deus apenas – Só a Deus Glória.
Mas o cristianismo, religião de mediações, de um Deus que se anunciou por vários profetas, pela história longa de um povo eleito e, por fim, por um Filho que se fez homem, e por um Espírito Santo que o faz presente, como podia prescindir daqueles que eram ordenados sacerdotes para interceder pelos crentes e a estes fazer chegar a graça? Como a Escritura indicava e os primeiros cristãos haviam compreendido em contraponto ao sacerdócio levítico, o único sacerdote perfeito e eficaz só podia ser o Filho de Deus que partilha a nossa natureza humana e está sentado à direita do Pai – Somente Cristo.
Lutero prosseguiu a sua procura: como podia o crente ligar-se a esse sacerdote que de si próprio disse ser o caminho único para chegar ao Pai? Podia acercar-se de Cristo pelos seus próprios merecimentos, por rituais, por intercessões apenas humanas, por instituições históricas e tradições? Não, pois a sua natureza decaída e pecadora não lho permite. A Salvação é uma dádiva de Deus, tão soberana quanto gratuita – Só a Graça. E se esta vem do Alto, sem relação nem reciprocidade com actos nossos que a pretendam propiciar, todo o ritualismo e acção “mágica” da religião exterior tem de ser substituída pela única escolha e determinação válida do crente verdadeiro – Só a Fé.
Tudo isto poderia, no entanto, significar que os crentes ficariam entregues a si mesmos e a uma relação espontânea com Deus. Se a Igreja institucional e a sua casta sacerdotal não tinham autoridade em questões de fé, nenhuma autoridade existiria no Cristianismo e na vida do cristão? Nos tempos conturbados em que lhe foi dado viver, Lutero não foi conduzido apenas a descobrir que uma instituição histórica que se reclamava como prefiguração do Reino levava os crentes ao cativeiro. O reformador foi levado a ver que uma fé absolutamente espiritualizada, reclamando-se directamente inspirada pelo Espírito Santo, podia ser fonte de grandes desvarios e graves erros. O caminho das descobertas anteriores já claramente indicava o da derradeira – Só a Escritura. A Bíblia, tal como definida no cânone, necessitada do estudo aturado e ponderado do crente, é o depósito da fé, a mediação visível e a autoridade para o cristão.
Neste caminho que fez, por um percurso tortuoso, sofrido, mas radioso, Lutero foi levado – acreditamos que pelo Espírito Santo – a definir o fulcro da Reforma do século XVI e a apontar a estrada que desde então trilham milhões de cristãos nas igrejas reformadas. Esse caminho é demasiado grande e verdadeiro para poder ser atribuído a um simples homem, mortal e pecador. Como escreveu Guilherme Dias da Cunha, um autor protestante português no século XIX, «Para nós nem Paulo, nem Apolo, nem Cefas, nem Lutero são cousa alguma: Cristo é que é tudo, em todos e para todos» (jornal A Reforma, 10.11.1883).
Postscriptum – A rosa de Lutero [Carta de Lutero a Lázaro Spengler, 8 de Julho de 1530, explicando o sentido do seu monograma.] «Graça e paz do Senhor. Este selo é um resumo da minha teologia. O coração com uma cruz preta no meio significa a fé no Salvador (Romanos 10:10), bem implantada no meu sentir e no meu ser, sem ferir a minha natureza humana, mas dando-lhe vida (Romanos 1:17). Este coração está no meio de uma rosa branca para significar que aquela fé, de que vive o coração, dá alegria, conforto e paz (João 14:27); é o branco dos anjos e dos espíritos, para lembrar que as dádivas da fé são diferentes das do mundo (Mateus 28:3 e João 20:12). A rosa está sobre um campo azul, que representa as dádivas vindouras do céu e está, por sua vez, rodeado por anel de ouro, que simboliza a eternidade dessas promessas celestiais. Este é o meu compêndio de teologia. Que o Senhor esteja contigo. Ámen.»
O que ateou essas labaredas não foi a posição sensata e clara de Lutero sobre a prática de vender indulgências. O fogo veio daquilo que Lutero foi obrigado a descobrir, deduzir e concluir por força dos acontecimentos – e, novamente, a dizê-lo publicamente. O problema não era Lutero escrever verdades, era que, naquele momento, essas verdades não eram convenientes. Lutero foi convidado a transigir com o que convinha à hierarquia da Igreja Católica; depois foi forçado. Perante isso, e depois de se recusar a calar o que a sua consciência de cristão lhe mandava dizer, teve de voltar a sua reflexão e o seu exame das matérias religiosas para o estado da Igreja Cristã na sua época e, indo mais longe, para a sua natureza e organização à luz da Escritura. Tudo isto foi um processo rápido porque tudo à sua volta também aconteceu rapidamente.
Muitos europeus no século XVI estavam no limiar das descobertas de Lutero. Mil anos de cristianismo católico tinham criado muitos desvios, mas também muita procura – e esta superabundava em 1517, já madura e refinada para ser ateada por um questionador certeiro. Lutero concluiu que, na sua época, a Igreja se encontrava num cativeiro, como Israel na Babilónia [Cf. Martinho Lutero, Do Cativeiro Babilónico da Igreja (São Paulo: Martin Claret, 2006), obra de 1520 em torno dos sacramentos e que é uma exposição bastante completa da posição teológica de Lutero.]. A Igreja do Evangelho não podia ser aquela. Não, como hoje muitas vezes se diz, porque Lutero tivesse ficado chocado com o luxo e a corrupção da Cúria Romana. Certamente que ficou, mas isso não era o essencial. A questão das indulgências obrigou-o a procurar radicalmente a fonte da Salvação, pois a instituição que a queria ministrar mostrava-se indigna e ineficaz para isso. Isto foi um corte brutal para um cristão, para mais clérigo, do início do século XVI. A Igreja institucional era uma «Mãe» dos crentes (a «Santa Madre Igreja»), tida como uma verdadeira realidade visível do Reino de Deus. Lutero teve de fazer um esforço heróico para se recentrar no que era essencial e descentrou-se dessa mundividência que há séculos acompanhava o grosso dos cristãos. A sua fidelidade, a sua pertença, a sua fé eram de Deus, do próprio Deus apenas – Só a Deus Glória.
Mas o cristianismo, religião de mediações, de um Deus que se anunciou por vários profetas, pela história longa de um povo eleito e, por fim, por um Filho que se fez homem, e por um Espírito Santo que o faz presente, como podia prescindir daqueles que eram ordenados sacerdotes para interceder pelos crentes e a estes fazer chegar a graça? Como a Escritura indicava e os primeiros cristãos haviam compreendido em contraponto ao sacerdócio levítico, o único sacerdote perfeito e eficaz só podia ser o Filho de Deus que partilha a nossa natureza humana e está sentado à direita do Pai – Somente Cristo.
Lutero prosseguiu a sua procura: como podia o crente ligar-se a esse sacerdote que de si próprio disse ser o caminho único para chegar ao Pai? Podia acercar-se de Cristo pelos seus próprios merecimentos, por rituais, por intercessões apenas humanas, por instituições históricas e tradições? Não, pois a sua natureza decaída e pecadora não lho permite. A Salvação é uma dádiva de Deus, tão soberana quanto gratuita – Só a Graça. E se esta vem do Alto, sem relação nem reciprocidade com actos nossos que a pretendam propiciar, todo o ritualismo e acção “mágica” da religião exterior tem de ser substituída pela única escolha e determinação válida do crente verdadeiro – Só a Fé.
Tudo isto poderia, no entanto, significar que os crentes ficariam entregues a si mesmos e a uma relação espontânea com Deus. Se a Igreja institucional e a sua casta sacerdotal não tinham autoridade em questões de fé, nenhuma autoridade existiria no Cristianismo e na vida do cristão? Nos tempos conturbados em que lhe foi dado viver, Lutero não foi conduzido apenas a descobrir que uma instituição histórica que se reclamava como prefiguração do Reino levava os crentes ao cativeiro. O reformador foi levado a ver que uma fé absolutamente espiritualizada, reclamando-se directamente inspirada pelo Espírito Santo, podia ser fonte de grandes desvarios e graves erros. O caminho das descobertas anteriores já claramente indicava o da derradeira – Só a Escritura. A Bíblia, tal como definida no cânone, necessitada do estudo aturado e ponderado do crente, é o depósito da fé, a mediação visível e a autoridade para o cristão.
Neste caminho que fez, por um percurso tortuoso, sofrido, mas radioso, Lutero foi levado – acreditamos que pelo Espírito Santo – a definir o fulcro da Reforma do século XVI e a apontar a estrada que desde então trilham milhões de cristãos nas igrejas reformadas. Esse caminho é demasiado grande e verdadeiro para poder ser atribuído a um simples homem, mortal e pecador. Como escreveu Guilherme Dias da Cunha, um autor protestante português no século XIX, «Para nós nem Paulo, nem Apolo, nem Cefas, nem Lutero são cousa alguma: Cristo é que é tudo, em todos e para todos» (jornal A Reforma, 10.11.1883).
Postscriptum – A rosa de Lutero [Carta de Lutero a Lázaro Spengler, 8 de Julho de 1530, explicando o sentido do seu monograma.] «Graça e paz do Senhor. Este selo é um resumo da minha teologia. O coração com uma cruz preta no meio significa a fé no Salvador (Romanos 10:10), bem implantada no meu sentir e no meu ser, sem ferir a minha natureza humana, mas dando-lhe vida (Romanos 1:17). Este coração está no meio de uma rosa branca para significar que aquela fé, de que vive o coração, dá alegria, conforto e paz (João 14:27); é o branco dos anjos e dos espíritos, para lembrar que as dádivas da fé são diferentes das do mundo (Mateus 28:3 e João 20:12). A rosa está sobre um campo azul, que representa as dádivas vindouras do céu e está, por sua vez, rodeado por anel de ouro, que simboliza a eternidade dessas promessas celestiais. Este é o meu compêndio de teologia. Que o Senhor esteja contigo. Ámen.»
terça-feira, outubro 02, 2012
Sinopse da história da reflexão filosófica em Portugal
I. A filosofia medieval portuguesa
Paulo Orósio e São Martinho de Dume – Santo António de Lisboa e o rei D. Duarte – A filosofia de Pedro Hispano – O estudo da filosofia em Portugal
II. Os Descobrimentos e o Renascimento
«A experiência, mãe de todas as coisas» – O método científico em Francisco Sanches – A filosofia judaica – Sob o signo da Contra-Reforma
III. A escolástica conimbricense
Pedro da Fonseca e o Colégio das Artes – A «ciência média» em Luís de Molina – Persistência e decadência da escolástica – Outros autores
IV. O Iluminismo em Portugal
Os primeiros reformadores – A influência dos «estrangeirados» – Os Oratorianos e o «Iluminismo católico»
V. A filosofia plural de Oitocentos
O aristotelismo sensista de Pinheiro Ferreira – A descristianização da filosofia – Do espiritualismo ao idealismo hegeliano
VI. Positivismo e antipositivismo
Ordem e progresso por meio da ciência – Resistências ao positivismo – A inquietação filosófica de Leonardo Coimbra
VII. A filosofia contemporânea em Portugal
Proença e Sérgio: o grupo da Seara Nova – Os leonardianos e a «filosofia portuguesa» – Outras correntes até à actualidade
BIBLIOGRAFIA
António Braz Teixeira - Deus, o Mal e a Saudade, Lisboa: Fundação Lusíada, 1993.
Id. – Ética, Filosofia e Religião: Estudos sobre o Pensamento Português, Galego e Brasileiro, Évora: Pendor, 1997.
José Joaquim Lopes Praça - História da Filosofia em Portugal, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1868 (2.ª edição Guimarães Editores, 1988).
Pedro Calafate et al. - Filosofia Portuguesa, Instituto Camões (aqui).
Paulo Orósio e São Martinho de Dume – Santo António de Lisboa e o rei D. Duarte – A filosofia de Pedro Hispano – O estudo da filosofia em Portugal
II. Os Descobrimentos e o Renascimento
«A experiência, mãe de todas as coisas» – O método científico em Francisco Sanches – A filosofia judaica – Sob o signo da Contra-Reforma
III. A escolástica conimbricense
Pedro da Fonseca e o Colégio das Artes – A «ciência média» em Luís de Molina – Persistência e decadência da escolástica – Outros autores
IV. O Iluminismo em Portugal
Os primeiros reformadores – A influência dos «estrangeirados» – Os Oratorianos e o «Iluminismo católico»
V. A filosofia plural de Oitocentos
O aristotelismo sensista de Pinheiro Ferreira – A descristianização da filosofia – Do espiritualismo ao idealismo hegeliano
VI. Positivismo e antipositivismo
Ordem e progresso por meio da ciência – Resistências ao positivismo – A inquietação filosófica de Leonardo Coimbra
VII. A filosofia contemporânea em Portugal
Proença e Sérgio: o grupo da Seara Nova – Os leonardianos e a «filosofia portuguesa» – Outras correntes até à actualidade
BIBLIOGRAFIA
António Braz Teixeira - Deus, o Mal e a Saudade, Lisboa: Fundação Lusíada, 1993.
Id. – Ética, Filosofia e Religião: Estudos sobre o Pensamento Português, Galego e Brasileiro, Évora: Pendor, 1997.
José Joaquim Lopes Praça - História da Filosofia em Portugal, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1868 (2.ª edição Guimarães Editores, 1988).
Pedro Calafate et al. - Filosofia Portuguesa, Instituto Camões (aqui).
sábado, setembro 15, 2012
quinta-feira, setembro 13, 2012
(VII) A filosofia contemporânea em Portugal
O século XX foi um tempo de influxo das novas correntes da filosofia em Portugal, mas também de definição de caminhos originais [Na imagem, Delfim Santos].
Proença e Sérgio: o grupo da Seara nova
Depois da ruptura com os saudosistas, que levou ao fim do movimento da Renascença portuguesa, formou-se um novo grupo em torno da revista Seara nova, que propunha uma regeneração da república dentro de uma matriz de racionalismo crítico aberto ao socialismo democrático. As figuras cimeiras deste grupo foram Raul Proença e António Sérgio.
Raul Proença (1884-1941) interessou-se pela filosofia de uma perspectiva prática e relacionada com os problemas políticos do seu tempo. Rejeitou o determinismo positivista e o realismo materialista, preferindo-lhes um ecletismo que definia como realismo idealista. Entendeu a criatividade e a liberdade como características e valores supremos do homem, que o faziam defender a democracia política e o socialismo reformista perante as soluções autoritárias ou a tecnocracia; recusando o colectivismo e a noção de “vontade geral” de Rousseau, e, sendo agnóstico, chegou a considerar-se herdeiro do personalismo cristão, embora recusasse a herança histórica do catolicismo. Como Sérgio, foi um opositor do Estado Novo, tendo deixado uma obra dispersa por jornais e revistas.
António Sérgio de Sousa (1883-1969), engenheiro de formação e ex-aluno do Colégio Militar e da Escola Naval, foi o proponente daquilo que ele próprio denominou “idealismo racionalista e crítico”, ancorado em autores como Platão, Descartes, Espinosa e Kant. O seu idealismo era, pois, de base platónica e não hegeliana, considerando que «a teoria das Ideias não oferecia dificuldades desde que interpretássemos “Ideia” como “lei científica”, “equação”, etc.». Partindo de uma desconfiança na intuição sensível e distinguindo o inteligível do imaginável ou representável, Sérgio via na matemática um instrumento de rigor para chegar a uma reflexão filosófica e a um conhecimento científico depurados de preconceitos, como considerava serem os casos da geometria analítica e da física moderna – nas quais via uma beleza e um equilíbrio que associava ao platonismo, à música e à poesia. As suas ideias de reforma pedagógica enraizaram-se na geração dos “estrangeirados” do século XVIII, enquanto os seus ideais políticos e cívicos de democracia e socialismo cooperativo eram tributários de figuras do liberalismo (A. Herculano) e da “Geração de 70” (O. Martins e A. de Quental), o que explica que o seu idealismo racionalista e o seu ideário progressista se distinguissem do republicanismo positivista.
Os leonardianos e a «filosofia portuguesa»
O fim da Renascença portuguesa levou a que se formasse, em torno do legado bergsoniano de Leonardo Coimbra (rejeitado pelos seareiros), um grupo que se veio a denominar «filosofia portuguesa». Foram seus animadores principais dois homens da mesma geração (e ex-alunos de Leonardo): José Marinho (1904-1975) e Álvaro Ribeiro (1905-1981). Nas suas obras, ambos desenvolveram tendências que se distinguiam do seu mestre, nomeadamente na defesa de um filosofar intrinsecamente português e no entendimento da filosofia e da ciência modernas. Álvaro Ribeiro pretendeu harmonizar o discurso filosófico (que entendia dever corresponder às regras lógicas da linguagem comum) com a teologia e a poesia, vendo nessa harmonia a característica distintiva de uma filosofia propriamente portuguesa que tinha de rejeitar os formalismos racionalista e matemático da modernidade que a isso obstavam. Por essa razão, aliás, aceitando a tradição aristotélica da filosofia praticada em Portugal desde a Idade Média, quis depurá-la do racionalismo escolástico, tal como deveria ser feito com a teologia, por si concebida no quadro da especulação em torno de um messianismo saudosista que encontrou expressão literária desde o século XVII. No caso de José Marinho, a sua reflexão foi construída a partir daquilo que entendia ser uma razão integral, simultaneamente conceptual ou conceptiva (inclusiva) e judiciosa (exclusiva), considerando que o racionalismo nas suas fases escolástica e positivista haviam hipertrofiado a segunda tendência. Nesse sentido, o mito, a poesia e o simbolismo poderiam ter uma função iniciática ou anagógica, em que situava o saudosismo. António Quadros (1923-1993) foi outro autor deste grupo (reunido na revista 57), que introduziu a influência do existencialismo e nela desenvolveu a estética e a filosofia da história.
Outros dois filósofos, com percursos autónomos relativamente à «filosofia portuguesa», podem ser considerados discípulos de Leonardo Coimbra: Agostinho da Silva (1906-1996) e Delfim Pinto dos Santos (1907-1966). O primeiro desvalorizou a componente nacional da filosofia, admitindo a raiz universal da mesma e pretendendo exprimir numa linguagem universalista um sentido para a cultura de língua portuguesa, que pensou como um todo e a que pretendeu religar o mito do Quinto Império a partir da especulação joaquimista e de uma sensibilidade franciscanista. Já Delfim Santos, dado ter-se formado também fora do País, juntou à influência de Leonardo a de filósofos como Nicolai Hartmann e M. Heidegger, dialogando com as mais relevantes correntes da contemporaneidade: em Situação valorativa do positivismo (1938) critica o neopositivismo lógico a partir de ideias que desenvolve da perspectiva gnosiológica em Conhecimento e realidade e, em Da filosofia (1940), revelando os traços gerais do seu pensamento. Santos posiciona-se de uma perspectiva existencial (que influencia as suas concepções pedagógicas que valorizam a criatividade pessoal), recusando o espírito de sistema a favor de uma atitude interpelativa e de um pensamento categorial em que o conceito de verdade se torna central – embora num contexto de consciência aguda da dificuldade, senão impossibilidade, de fazer coincidir realidade e conhecimento. Delfim Santos foi ainda o único grande nome da filosofia em Portugal com origem intelectual e espiritual no minoritário ambiente protestante do nosso país.
Outras correntes até à actualidade
A tradição positivista foi continuada em Portugal através do neopositivismo lógico da Escola de Viena e do Grupo de Cambridge, recebida e divulgada entre nós por Abel Salazar (1889-1946), que expõe a sua reflexão anti-metafísica no quadro do empirismo lógico, Vieira de Almeida (1888-1962) – que se dedicou à lógica moderna, à gnosiologia, à epistemologia, à psicologia e à filosofia da arte –, Edmundo Curvelo (1913-1955), discípulo de Almeida quase inteiramente dedicado a problemas lógicos, e Mário Sottomayor Cardia (1941-2006), que no mesmo quadro filosófico desenvolveu uma investigação ética crítica do utilitarismo. O pensamento dialéctico de raiz hegeliana continuou a ter influência na filosofia política e do direito nas obras de Afonso Queiró (n. 1914), Augusto Saraiva (1900-1975), Alberto Ferreira (n. 1920) e António José de Brito (n. 1927). A filosofia de Husserl e a fenomenologia, já reflectidos em Leonardo Coimbra e Miranda Barbosa, tiveram vários divulgadores em Portugal, entre os quais Alexandre Fradique Morujão (n. 1922), Gustavo de Fraga (n. 1922) e Eduardo Abranches de Soveral (n. 1927), sendo autores como José Enes (n. 1924) e Fernando Gil (n. 1937) igualmente marcados por esta corrente. A neo-escolástica foi cultivada na faculdade de filosofia de Braga, criada em 1947 e em que se destacou Arnaldo Miranda Barbosa (1916-1973). Finalmente, em pensadores como Vergílio Ferreira (1916-1997) e Eduardo Lourenço (n. 1923), o existencialismo teve uma influência evidente.
Proença e Sérgio: o grupo da Seara nova
Depois da ruptura com os saudosistas, que levou ao fim do movimento da Renascença portuguesa, formou-se um novo grupo em torno da revista Seara nova, que propunha uma regeneração da república dentro de uma matriz de racionalismo crítico aberto ao socialismo democrático. As figuras cimeiras deste grupo foram Raul Proença e António Sérgio.
Raul Proença (1884-1941) interessou-se pela filosofia de uma perspectiva prática e relacionada com os problemas políticos do seu tempo. Rejeitou o determinismo positivista e o realismo materialista, preferindo-lhes um ecletismo que definia como realismo idealista. Entendeu a criatividade e a liberdade como características e valores supremos do homem, que o faziam defender a democracia política e o socialismo reformista perante as soluções autoritárias ou a tecnocracia; recusando o colectivismo e a noção de “vontade geral” de Rousseau, e, sendo agnóstico, chegou a considerar-se herdeiro do personalismo cristão, embora recusasse a herança histórica do catolicismo. Como Sérgio, foi um opositor do Estado Novo, tendo deixado uma obra dispersa por jornais e revistas.
António Sérgio de Sousa (1883-1969), engenheiro de formação e ex-aluno do Colégio Militar e da Escola Naval, foi o proponente daquilo que ele próprio denominou “idealismo racionalista e crítico”, ancorado em autores como Platão, Descartes, Espinosa e Kant. O seu idealismo era, pois, de base platónica e não hegeliana, considerando que «a teoria das Ideias não oferecia dificuldades desde que interpretássemos “Ideia” como “lei científica”, “equação”, etc.». Partindo de uma desconfiança na intuição sensível e distinguindo o inteligível do imaginável ou representável, Sérgio via na matemática um instrumento de rigor para chegar a uma reflexão filosófica e a um conhecimento científico depurados de preconceitos, como considerava serem os casos da geometria analítica e da física moderna – nas quais via uma beleza e um equilíbrio que associava ao platonismo, à música e à poesia. As suas ideias de reforma pedagógica enraizaram-se na geração dos “estrangeirados” do século XVIII, enquanto os seus ideais políticos e cívicos de democracia e socialismo cooperativo eram tributários de figuras do liberalismo (A. Herculano) e da “Geração de 70” (O. Martins e A. de Quental), o que explica que o seu idealismo racionalista e o seu ideário progressista se distinguissem do republicanismo positivista.
Os leonardianos e a «filosofia portuguesa»
O fim da Renascença portuguesa levou a que se formasse, em torno do legado bergsoniano de Leonardo Coimbra (rejeitado pelos seareiros), um grupo que se veio a denominar «filosofia portuguesa». Foram seus animadores principais dois homens da mesma geração (e ex-alunos de Leonardo): José Marinho (1904-1975) e Álvaro Ribeiro (1905-1981). Nas suas obras, ambos desenvolveram tendências que se distinguiam do seu mestre, nomeadamente na defesa de um filosofar intrinsecamente português e no entendimento da filosofia e da ciência modernas. Álvaro Ribeiro pretendeu harmonizar o discurso filosófico (que entendia dever corresponder às regras lógicas da linguagem comum) com a teologia e a poesia, vendo nessa harmonia a característica distintiva de uma filosofia propriamente portuguesa que tinha de rejeitar os formalismos racionalista e matemático da modernidade que a isso obstavam. Por essa razão, aliás, aceitando a tradição aristotélica da filosofia praticada em Portugal desde a Idade Média, quis depurá-la do racionalismo escolástico, tal como deveria ser feito com a teologia, por si concebida no quadro da especulação em torno de um messianismo saudosista que encontrou expressão literária desde o século XVII. No caso de José Marinho, a sua reflexão foi construída a partir daquilo que entendia ser uma razão integral, simultaneamente conceptual ou conceptiva (inclusiva) e judiciosa (exclusiva), considerando que o racionalismo nas suas fases escolástica e positivista haviam hipertrofiado a segunda tendência. Nesse sentido, o mito, a poesia e o simbolismo poderiam ter uma função iniciática ou anagógica, em que situava o saudosismo. António Quadros (1923-1993) foi outro autor deste grupo (reunido na revista 57), que introduziu a influência do existencialismo e nela desenvolveu a estética e a filosofia da história.
Outros dois filósofos, com percursos autónomos relativamente à «filosofia portuguesa», podem ser considerados discípulos de Leonardo Coimbra: Agostinho da Silva (1906-1996) e Delfim Pinto dos Santos (1907-1966). O primeiro desvalorizou a componente nacional da filosofia, admitindo a raiz universal da mesma e pretendendo exprimir numa linguagem universalista um sentido para a cultura de língua portuguesa, que pensou como um todo e a que pretendeu religar o mito do Quinto Império a partir da especulação joaquimista e de uma sensibilidade franciscanista. Já Delfim Santos, dado ter-se formado também fora do País, juntou à influência de Leonardo a de filósofos como Nicolai Hartmann e M. Heidegger, dialogando com as mais relevantes correntes da contemporaneidade: em Situação valorativa do positivismo (1938) critica o neopositivismo lógico a partir de ideias que desenvolve da perspectiva gnosiológica em Conhecimento e realidade e, em Da filosofia (1940), revelando os traços gerais do seu pensamento. Santos posiciona-se de uma perspectiva existencial (que influencia as suas concepções pedagógicas que valorizam a criatividade pessoal), recusando o espírito de sistema a favor de uma atitude interpelativa e de um pensamento categorial em que o conceito de verdade se torna central – embora num contexto de consciência aguda da dificuldade, senão impossibilidade, de fazer coincidir realidade e conhecimento. Delfim Santos foi ainda o único grande nome da filosofia em Portugal com origem intelectual e espiritual no minoritário ambiente protestante do nosso país.
Outras correntes até à actualidade
A tradição positivista foi continuada em Portugal através do neopositivismo lógico da Escola de Viena e do Grupo de Cambridge, recebida e divulgada entre nós por Abel Salazar (1889-1946), que expõe a sua reflexão anti-metafísica no quadro do empirismo lógico, Vieira de Almeida (1888-1962) – que se dedicou à lógica moderna, à gnosiologia, à epistemologia, à psicologia e à filosofia da arte –, Edmundo Curvelo (1913-1955), discípulo de Almeida quase inteiramente dedicado a problemas lógicos, e Mário Sottomayor Cardia (1941-2006), que no mesmo quadro filosófico desenvolveu uma investigação ética crítica do utilitarismo. O pensamento dialéctico de raiz hegeliana continuou a ter influência na filosofia política e do direito nas obras de Afonso Queiró (n. 1914), Augusto Saraiva (1900-1975), Alberto Ferreira (n. 1920) e António José de Brito (n. 1927). A filosofia de Husserl e a fenomenologia, já reflectidos em Leonardo Coimbra e Miranda Barbosa, tiveram vários divulgadores em Portugal, entre os quais Alexandre Fradique Morujão (n. 1922), Gustavo de Fraga (n. 1922) e Eduardo Abranches de Soveral (n. 1927), sendo autores como José Enes (n. 1924) e Fernando Gil (n. 1937) igualmente marcados por esta corrente. A neo-escolástica foi cultivada na faculdade de filosofia de Braga, criada em 1947 e em que se destacou Arnaldo Miranda Barbosa (1916-1973). Finalmente, em pensadores como Vergílio Ferreira (1916-1997) e Eduardo Lourenço (n. 1923), o existencialismo teve uma influência evidente.
Subscrever:
Mensagens (Atom)