O século XX foi um tempo de influxo das novas correntes da filosofia em Portugal, mas também de definição de caminhos originais [Na imagem, Delfim Santos].
Proença e Sérgio: o grupo da Seara nova
Depois da ruptura com os saudosistas, que levou ao fim do movimento da Renascença portuguesa, formou-se um novo grupo em torno da revista Seara nova, que propunha uma regeneração da república dentro de uma matriz de racionalismo crítico aberto ao socialismo democrático. As figuras cimeiras deste grupo foram Raul Proença e António Sérgio.
Raul Proença (1884-1941) interessou-se pela filosofia de uma perspectiva prática e relacionada com os problemas políticos do seu tempo. Rejeitou o determinismo positivista e o realismo materialista, preferindo-lhes um ecletismo que definia como realismo idealista. Entendeu a criatividade e a liberdade como características e valores supremos do homem, que o faziam defender a democracia política e o socialismo reformista perante as soluções autoritárias ou a tecnocracia; recusando o colectivismo e a noção de “vontade geral” de Rousseau, e, sendo agnóstico, chegou a considerar-se herdeiro do personalismo cristão, embora recusasse a herança histórica do catolicismo. Como Sérgio, foi um opositor do Estado Novo, tendo deixado uma obra dispersa por jornais e revistas.
António Sérgio de Sousa (1883-1969), engenheiro de formação e ex-aluno do Colégio Militar e da Escola Naval, foi o proponente daquilo que ele próprio denominou “idealismo racionalista e crítico”, ancorado em autores como Platão, Descartes, Espinosa e Kant. O seu idealismo era, pois, de base platónica e não hegeliana, considerando que «a teoria das Ideias não oferecia dificuldades desde que interpretássemos “Ideia” como “lei científica”, “equação”, etc.». Partindo de uma desconfiança na intuição sensível e distinguindo o inteligível do imaginável ou representável, Sérgio via na matemática um instrumento de rigor para chegar a uma reflexão filosófica e a um conhecimento científico depurados de preconceitos, como considerava serem os casos da geometria analítica e da física moderna – nas quais via uma beleza e um equilíbrio que associava ao platonismo, à música e à poesia. As suas ideias de reforma pedagógica enraizaram-se na geração dos “estrangeirados” do século XVIII, enquanto os seus ideais políticos e cívicos de democracia e socialismo cooperativo eram tributários de figuras do liberalismo (A. Herculano) e da “Geração de 70” (O. Martins e A. de Quental), o que explica que o seu idealismo racionalista e o seu ideário progressista se distinguissem do republicanismo positivista.
Os leonardianos e a «filosofia portuguesa»
O fim da Renascença portuguesa levou a que se formasse, em torno do legado bergsoniano de Leonardo Coimbra (rejeitado pelos seareiros), um grupo que se veio a denominar «filosofia portuguesa». Foram seus animadores principais dois homens da mesma geração (e ex-alunos de Leonardo): José Marinho (1904-1975) e Álvaro Ribeiro (1905-1981). Nas suas obras, ambos desenvolveram tendências que se distinguiam do seu mestre, nomeadamente na defesa de um filosofar intrinsecamente português e no entendimento da filosofia e da ciência modernas. Álvaro Ribeiro pretendeu harmonizar o discurso filosófico (que entendia dever corresponder às regras lógicas da linguagem comum) com a teologia e a poesia, vendo nessa harmonia a característica distintiva de uma filosofia propriamente portuguesa que tinha de rejeitar os formalismos racionalista e matemático da modernidade que a isso obstavam. Por essa razão, aliás, aceitando a tradição aristotélica da filosofia praticada em Portugal desde a Idade Média, quis depurá-la do racionalismo escolástico, tal como deveria ser feito com a teologia, por si concebida no quadro da especulação em torno de um messianismo saudosista que encontrou expressão literária desde o século XVII. No caso de José Marinho, a sua reflexão foi construída a partir daquilo que entendia ser uma razão integral, simultaneamente conceptual ou conceptiva (inclusiva) e judiciosa (exclusiva), considerando que o racionalismo nas suas fases escolástica e positivista haviam hipertrofiado a segunda tendência. Nesse sentido, o mito, a poesia e o simbolismo poderiam ter uma função iniciática ou anagógica, em que situava o saudosismo. António Quadros (1923-1993) foi outro autor deste grupo (reunido na revista 57), que introduziu a influência do existencialismo e nela desenvolveu a estética e a filosofia da história.
Outros dois filósofos, com percursos autónomos relativamente à «filosofia portuguesa», podem ser considerados discípulos de Leonardo Coimbra: Agostinho da Silva (1906-1996) e Delfim Pinto dos Santos (1907-1966). O primeiro desvalorizou a componente nacional da filosofia, admitindo a raiz universal da mesma e pretendendo exprimir numa linguagem universalista um sentido para a cultura de língua portuguesa, que pensou como um todo e a que pretendeu religar o mito do Quinto Império a partir da especulação joaquimista e de uma sensibilidade franciscanista. Já Delfim Santos, dado ter-se formado também fora do País, juntou à influência de Leonardo a de filósofos como Nicolai Hartmann e M. Heidegger, dialogando com as mais relevantes correntes da contemporaneidade: em Situação valorativa do positivismo (1938) critica o neopositivismo lógico a partir de ideias que desenvolve da perspectiva gnosiológica em Conhecimento e realidade e, em Da filosofia (1940), revelando os traços gerais do seu pensamento. Santos posiciona-se de uma perspectiva existencial (que influencia as suas concepções pedagógicas que valorizam a criatividade pessoal), recusando o espírito de sistema a favor de uma atitude interpelativa e de um pensamento categorial em que o conceito de verdade se torna central – embora num contexto de consciência aguda da dificuldade, senão impossibilidade, de fazer coincidir realidade e conhecimento. Delfim Santos foi ainda o único grande nome da filosofia em Portugal com origem intelectual e espiritual no minoritário ambiente protestante do nosso país.
Outras correntes até à actualidade
A tradição positivista foi continuada em Portugal através do neopositivismo lógico da Escola de Viena e do Grupo de Cambridge, recebida e divulgada entre nós por Abel Salazar (1889-1946), que expõe a sua reflexão anti-metafísica no quadro do empirismo lógico, Vieira de Almeida (1888-1962) – que se dedicou à lógica moderna, à gnosiologia, à epistemologia, à psicologia e à filosofia da arte –, Edmundo Curvelo (1913-1955), discípulo de Almeida quase inteiramente dedicado a problemas lógicos, e Mário Sottomayor Cardia (1941-2006), que no mesmo quadro filosófico desenvolveu uma investigação ética crítica do utilitarismo. O pensamento dialéctico de raiz hegeliana continuou a ter influência na filosofia política e do direito nas obras de Afonso Queiró (n. 1914), Augusto Saraiva (1900-1975), Alberto Ferreira (n. 1920) e António José de Brito (n. 1927). A filosofia de Husserl e a fenomenologia, já reflectidos em Leonardo Coimbra e Miranda Barbosa, tiveram vários divulgadores em Portugal, entre os quais Alexandre Fradique Morujão (n. 1922), Gustavo de Fraga (n. 1922) e Eduardo Abranches de Soveral (n. 1927), sendo autores como José Enes (n. 1924) e Fernando Gil (n. 1937) igualmente marcados por esta corrente. A neo-escolástica foi cultivada na faculdade de filosofia de Braga, criada em 1947 e em que se destacou Arnaldo Miranda Barbosa (1916-1973). Finalmente, em pensadores como Vergílio Ferreira (1916-1997) e Eduardo Lourenço (n. 1923), o existencialismo teve uma influência evidente.