quinta-feira, setembro 13, 2012

(V) A filosofia plural de Oitocentos

O século XIX foi um período de secularização da filosofia portuguesa, expressa numa progressiva descontinuidade com o passado.

O aristotelismo sensista de Pinheiro Ferreira

Na primeira metade do século XIX, Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) foi o principal cultor da filosofia em Portugal. A influência dos Oratorianos, com a sua abertura às correntes modernas e experimentalistas e, em particular, o legado do padre João Baptista, que tentara renovar a filosofia aristotélica libertando-a da escolástica, foram marcantes na formação de Pinheiro Ferreira. O filósofo ocupou-se da «teórica do raciocínio» e da «teórica da linguagem», que julgava coincidentes, considerando as categorias e a teoria do silogismo de Aristóteles as ferramentas ainda e sempre válidas para esse seu enfoque analítico do trabalho filosófico. No seu projecto, a filosofia serviria para dar unidade e dotar de uma linguagem rigorosa todas as áreas do conhecimento. Paralelamente, Pinheiro Ferreira entendeu como válida a filosofia sensista de Locke e de outros autores até onde actualizavam e desenvolviam a perspectiva aristotélica sobre a formação de ideias a partir dos sentidos. Por esta razão, rejeitou a obra de Kant e a tendência idealista das «seitas filosóficas alemãs», reagindo igualmente a uma abordagem positivista das ciências que secundarizasse a análise conceptual e a discussão dos seus pressupostos gnosiológicos.

Esta concepção geral da filosofia foi apresentada por Pinheiro Ferreira nas suas Prelecções filosóficas sobre a teórica do discurso e da linguagem, a estética, a diciósina e a cosmologia (1813), publicadas aquando da sua permanência no Rio de Janeiro com a corte aí refugiada das invasões francesas. As suas ideias sensistas foram desenvolvidas em Ensaio sobre a Psicologia (1826), publicado em Paris, numa fase da sua vida em que viveu e leccionou em França e na Alemanha, antes de definitivamente regressar a Portugal. Dessa época são igualmente o seu Manual do cidadão em um governo representativo ou princípios de direito constitucional (1834), no qual Pinheiro Ferreira afirma os seus princípios liberais, favoráveis aos direitos individuais e a uma monarquia parlamentar aberta ao reformismo democrático, e as Noções elementares de filosofia geral aplicada às ciências morais e políticas (1839).

Tendo em todas as suas obras mantido o propósito de coadunar a sua concepção da filosofia com o catolicismo, Silvestre Pinheiro Ferreira publicou em 1845 a obra Teodiceia ou tratado elementar da religião natural e da religião revelada, na qual se socorre de elementos das ciências naturais para defender a necessidade de uma «causa primeira» transcendente. Na mesma obra, o filósofo recusa substancialidade ao mal, que considera uma mera percepção de fenómenos que concorrem sempre para o bem, e realça a necessidade da revelação para orientar e aprofundar a compreensão da relação entre a divindade e o crente, que a religião natural ajuda apenas a esclarecer em termos de universalidade.

A descristianização da filosofia

Na segunda metade do século XIX, a proposta filosófica de Pinheiro Ferreira, assente ainda num aristotelismo renovado e no jusracionalismo, foi ultrapassada por abordagens mais consentâneas com as escolas de pensamento dominantes na Europa e com as inquietações de uma geração que revelou maior dificuldade de harmonizar a sua reflexão com a ortodoxia católica. Pedro de Amorim Viana (1822-1901), matemático e docente oriundo não dos estabelecimentos tradicionalmente ligados à filosofia mas do ensino superior politécnico, publicou em 1866 a obra que operou esta mudança de fundo: Defesa do racionalismo ou análise da fé. Embora mantivesse a desconfiança da geração anterior perante a concepção positivista da ciência, rejeitou o sensismo lockeano e cortou resolutamente com a tradição aristotélica, a que preferiu o racionalismo de Leibniz e Kant – que lhe permitiam ver na filosofia uma actividade capaz de fornecer à ciência uma reflexão ontológica necessária à organização e integração dos saberes. Amorim Viana pretendeu erguer uma proposta eclética que conciliasse fé e razão mas que não implicasse a aceitação das crenças na Trindade, na divindade de Jesus, em milagres e em profecias (que entendia contrárias à razão), inclinando-se, por isso, para um espiritualismo desconfessionalizado e radicado em Platão e Espinoza.

O espiritualismo descristianizado inspirado na filosofia de Karl Christian Friedrich Krause (1781-1832) teve em J. M. Cunha Seixas (1836-1895) um outro cultor de vulto em Portugal. Considerando-se um dissidente do krausismo (divulgado entre nós por J. M. Rodrigues de Brito), Cunha Seixas forjou um sistema que apelidou de «pantiteísta» e que unificava na ontologia o espiritual e o racional. Para se tornar conhecimento, a reflexão ontológica teria de obedecer a um processo de crescente abstracção e integração, operando primeiro com ideias relativas a objectos particulares (substância), depois com ideias gerais já abstractas (manifestação) que se deveriam encaminhar para ideias universais e absolutas em que deveria tornar-se patente a unidade divina de todas as coisas e a participação de cada uma delas no todo (harmonia). Na sua obra Princípios gerais de filosofia (publicada postumamente em 1898) convergiu o seu pensamento, desenvolvido em várias publicações anteriores aparecidas desde os anos 70 do século XIX.

Do espiritualismo ao idealismo hegeliano

Depois da crise das sínteses escolásticas entre razão e revelação, os Oratorianos e Silvestre Pinheiro Ferreira tentaram salvar o aristotelismo harmonizando-o, através do sensismo lockeano, com as aquisições mais relevantes da ciência moderna; esta, por seu lado, era considerada coadunável com o teísmo se interpretada à luz da teologia natural, a qual, no entanto, sendo insuficiente para a realização moral do homem, era completada pela teologia revelada. Sob influência da descristianização da cultura intelectual europeia e da influência de propostas filosóficas como o krausismo, Amorim Viana e Cunha Seixas recusaram o delicado equilíbrio legado pela geração anterior e romperam com o que restava das amarras ao cristianismo numa altura em que o influxo do evolucionismo darwinista contribuía para quebrar a tradição reflexiva em torno da teologia natural, reduzindo o campo do teísmo. Como, porém, também recusavam o materialismo e uma concepção puramente imanente da realidade, optaram pelas suas vias espiritualistas. Mas, ainda em vida destes dois filósofos manifestaram-se outras tendências que se afastaram do espiritualismo.

Em intelectuais como J. P. Oliveira Martins (1845-1894), que, embora não sendo exactamente filósofos, se interessavam por filosofia, despertou o interesse pelo idealismo de G. W. F. Hegel. Nas suas obras, Martins terá sempre pressuposto que a história é a manifestação da realidade ideal, interessando-se por esboçar uma filosofia da história (universal e nacional) de acordo com esta concepção. Antero de Quental (1842-1891), como Martins, embora pendesse para um cientificismo naturalista, entendia que a reflexão filosófica e a compreensão da realidade humana não podia prescindir do idealismo de Hegel, vendo no socialismo (inspirado em Proudhon) um horizonte moral necessário aos problemas do seu tempo.