As primeiras obras filosóficas no ocidente peninsular foram contemporâneas
da cristianização da filosofia, ocorrida na transição da Antiguidade para a
Idade Média. Os autores que em Portugal cultivaram a reflexão filosófica desde
a Idade Média integraram ou inspiraram-se nas correntes dominantes da filosofia
europeia do seu tempo. Este facto não impediu que alguns deles revelassem
originalidade no seu pensamento e muito menos que desenvolvessem de forma
brilhante alguns dos temas e problemas tratados pelas correntes europeias de
que eram tributários.
Paulo Orósio e São Martinho de Dume
O
primeiro pensador relevante aparecido no que viria a ser o espaço português, e
inscrito na tradição filosófica, foi Paulo Orósio. Nascido perto de Braga no
fim do século IV, foi o autor, entre outras obras, de História contra os pagãos (417). Discípulo directo de Santo
Agostinho, foi influenciado pelas suas concepções filosóficas e teológicas,
sendo também marcado pelo ambiente religioso agitado do noroeste da península,
combatendo heresias como o priscilianismo, o origenismo e o pelagianismo.
Orósio defendeu ainda uma concepção universalista da história humana e opôs uma
leitura linear e progressiva do tempo à leitura cíclica herdada de Políbio.
São Martinho de Dume (c. 518-579), bispo de Braga, foi autor, entre outras
obras, de um tratado de ética, Formulae
vitae honestae. Dedicada ao rei dos Suevos, esta obra evidencia a
influência de Séneca e apoiou-se apenas na razão natural, dispensando o recurso
à moral revelada ou à Bíblia. É um dos primeiros exemplos de um género
literário medieval depois chamado «espelho dos príncipes» e entre nós
cultivado, por exemplo, por Álvaro Pais, bispo de Silves, na sua obra Speculum regum (c. 1344).
Santo
António de Lisboa e o rei D. Duarte
Nos escritos de Santo António de Lisboa (f.
1231), anteriores à síntese tomista entre razão e revelação, encontra-se já uma
filosofia que, embora plenamente cristianizada, propõe a colaboração da
filosofia e da razão na obra divina da salvação. Nos seus Sermões, Santo António desenvolveu uma espiritualidade
franciscanista que teria uma longa influência em Portugal e, plenamente
integrado no espírito das ordens mendicantes, explorou a vertente prática e
quotidiana da moral. [Santo António entrou em contacto com os franciscanos
enquanto estudou no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, que era então a sede
espiritual do reino português. Já em Itália, foi convidado por São Franscisco
de Assis a pregar e a ensinar teologia aos frades da sua ordem, o que o tornou
muito popular. Foi canonizado em 1232 e declarado doutor da Igreja em 1946.]
Outro franciscano português que se destacou na teologia foi Frei André do
Prado, autor de Horologium fidei e Spiraculum franscisci mayronis.
Dado
que os autores referidos escreviam em latim, é ao rei D. Duarte (1391-1438) que
se deve a primeira obra filosófica em língua portuguesa – o Leal conselheiro. Esta obra foi a
primeira a articular reflexões filosóficas em língua vulgar, algo que só se
tornaria comum alguns séculos mais tarde. Trata-se de um livro pouco
sistemático, orientado para questões de filosofia moral e política, mas
profundamente marcado pela síntese operada por Tomás de Aquino entre a
filosofia aristotélica e os ensinamentos da Igreja Católica. Outros autores, em
latim ou em língua vulgar, exploraram a confluência entre a filosofia moral e a
filosofia política, dentro da matriz cristã da Idade Média – são os casos de
Diogo Lopes Rebelo e Frei João Sobrinho no fim do século XV.
A
filosofia de Pedro Hispano
Pedro Julião, também conhecido como Pedro Hispano
Portucalense, nascido em Lisboa por volta de 1205, foi o maior filósofo
português da Idade Média e aquele cuja obra alcançou autêntica notoriedade à
escala europeia. Iniciou os seus estudos na escola catedral de Lisboa e
continuou-os em Paris e Siena, onde se tornou professor e autor respeitado.
Apesar de ser médico, teve uma importante carreira eclesiástica, sendo
sucessivamente decano da Sé de Lisboa, arcebispo de Braga, cardeal e o único
papa português, com o nome de João XXI (1276).
Aluno de Alberto Magno e
contemporâneo de Tomás de Aquino, Pedro Hispano foi um dos lógicos mais
influentes da primeira escolástica. A sua fama em toda a Europa está patente no
facto de Dante o ter incluído no grupo de grandes estudiosos retratados na Divina comédia, onde é referido como
«Pietro Spano». A sua obra Tractatus,
depois conhecida como Summulae logicales,
foi copiada e ensinada nas universidades europeias durante mais de três
séculos.
Na sua obra, Pedro Hispano preocupou-se com as propriedades dos
termos utilizados na linguagem e com a sua relação com o conhecimento. O estudo
do significado e da articulação dos diferentes termos (palavras e expressões)
nas proposições tornou-se, assim, o objecto da lógica e aproximava-a da
gramática, com a qual deveria, da perspectiva do lógico português, tender a partilhar
as mesmas regras. O ideal do nosso lógico seria que as leis do pensamento se
aproximassem das leis da linguagem.
Na análise dos termos utilizados nas
proposições do discurso filosófico, Pedro Hispano distinguiu entre o significado e a suposição. O significado
dizia respeito ao modo como as palavras nomeiam ou representam as coisas ou
elementos da realidade; já a suposição
trata da relação lógica entre as palavras no discurso e na reflexão. Para este
filósofo era no campo da suppositio
que estava o âmbito da lógica e da filosofia, cujo estudo incidia, assim, não
sobre a própria realidade, mas sobre o discurso
sobre a realidade. Para os lógicos medievais como Pedro Hispano, esta
distinção implicava que a filosofia deveria fornecer às ciências uma linguagem
conceptualmente rigorosa, distinta tanto da linguagem vulgar quanto da
linguagem literária.
Outras obras atribuídas a Pedro Hispano, nomeadamente Scientia libri de anima, abordam a
questão da alma, sua natureza e capacidade de auto-conhecimento.
O
estudo da filosofia em Portugal
Como nos outros países europeus, em Portugal a
universidade teve origem nas escolas das catedrais e dos mosteiros. Logo que os
primeiros reis portugueses estabeleceram a capital política do reino em Coimbra
foi aí fundado um seminário, no qual, ainda no século XII, terá começado o
ensino da lógica. Também antes da fundação da universidade, já eram ensinadas
no mosteiro de Alcobaça (pelo menos desde 1269) a gramática, a lógica e a
teologia. Frei João Claro, doutor em teologia pela universidade de Paris e
abade deste importante mosteiro, foi uma das figuras que evidenciam a
continuação do interesse pela filosofia em Alcobaça no século seguinte; além
dos códices que deixou, há ainda outros, anónimos: o Horto do esposo e o Bosque
deleitoso solitário, que também têm alguns conteúdos filosóficos.
A instituição do Estudo Geral em 1288 (com aprovação papal
em 1290) conduziu ao ensino sistemático da teologia e do direito canónico em
Lisboa e depois em Coimbra, bem como das disciplinas da lógica, da gramática e
da dialéctica, que auxiliavam aquelas áreas de estudos. Nesta época, já as
obras de Aristóteles dominavam em universidades europeias como a de Paris,
vindo a influenciar desde o início o ensino da filosofia em Portugal. Apesar de
ter desde muito cedo um ensino regulamentado e orientado para a formação de uma
elite clerical e jurídica, a universidade será nos séculos seguintes o espaço
privilegiado da reflexão e produção filosóficas em Portugal.