Prof. Henrique Medina Carreira ("Público")
NO FIO DA NAVALHA
Terça-feira, Outubro 25, 2005
"Quando se navega sem destino, nenhum vento é favorável." (Séneca)
1. A nossa crise aí está, cada vez mais complexa, mais demorada e mais perigosa. Tenderá a agravar-se enquanto os “optimistas profissionais” não entenderem que o mal não é o pessimismo, mas o atraso; não é a desconfiança, mas os embustes; não é a descrença, mas a incompetência; não são os défices, mas a inviabilidade de viver à custa alheia; não é a falta de desenvolvimento, mas o conservadorismo que o bloqueia; não são as ideias, mas as palavras; não são os males do mundo, mas a nossa incapacidade para vencer os próprios.
As crises do Estado e da economia, entre todas, têm especial relevância e arriscada repercussão. Daremos um decisivo passo em frente quando os portugueses tomarem “[...] consciência deste estado, porque as políticas só serão possíveis com consenso social [...]”. E que “é preciso dizer a verdade, não histórias”, como sensatamente sublinha Andrea Canino (1).
2. A crise do nosso Estado é, antes de mais, política. Um regime quase parlamentar vale o que valerem os princípios e a prática dos principais partidos. Em Portugal, eles estão agora dominados por um clientelismo devorador que a tudo antepõe o objectivo da “ocupação” do Estado porque, só neste, se dispõe de tantos empregos, de tantas oportunidades e de tantas influências. Os demais partidos, sem horizontes próximos de assunção de responsabilidades, garantem ou insinuam, em geral, a existência de uma capacidade do Estado, para dar ou para fazer, que oscila entre uma confrangedora ingenuidade e um descarado embuste. Portanto, fora do arrivismo, do negocismo, da fantasia ou do sofisma, vai-se reduzindo perigosamente o espaço para a verdade e para a acção política séria.
A democracia, assim, é um engano e em breve será uma terrível desilusão.
3. O clientelismo partidário encontra um aliado decisivo no “Partido do Estado”. Sem este não há votos suficientes, sem votos não há “ocupação” do Estado e sem esta “ocupação” não há distribuição de benefícios. Isto é: sem os favores de grande parte dessa multidão de mais de cinco milhões de portugueses - políticos, funcionários, pensionistas, subsidiados e familiares -, detentores de mais de 55% dos votos do eleitorado, nenhum partido pode hoje governar em Portugal. Por isso, nas campanhas eleitorais silencia-se, distorce-se ou dissimula-se a verdade da nossa situação para tranquilizar os membros do “Partido do Estado”. Atingido o Governo, logo se procura o pretexto da “alteração das circunstâncias” em vista da imposição de medidas impopulares que, embora insuficientes, teriam alterado o sentido da votação se fossem ditas na campanha eleitoral.
Os resultados desta traficância são fatais: o descrédito dos políticos e a ausência de reformas essenciais. Legislatura após legislatura, vamos caindo para níveis que não eram sequer pensáveis.
4. O produto interno bruto português cresceu 80% (1960-70), 57% (1970-80), 43% (1980-90) e 30% (1990-2000); 4% entre 2000 e 2005 (2). E hoje a sua evolução está muito condicionada pelo volume do crédito externo que formos obtendo: como adverte Silva Lopes (3), se este atingir limites muito mais apertados que os actuais “negras nuvens pairarão sobre o crescimento da economia nacional”. No curto e no médio prazo teremos uma economia rastejante e, em boa medida, nas mãos dos financiadores internacionais.
5. É também muito grave a crise financeira do Estado. A queda prolongada da economia, a expansão descontrolada das despesas, o envelhecimento demográfico e a insuficiência relativa da arrecadação fiscal colocaram-nos na situação financeira pública mais desesperada de toda a UE/15.
Efectivamente, foram estes os crescimentos reais (1960-2005): do Pib, 5,5 vezes; dos impostos, 13,8 vezes; da despesa pública primária, 15,5 vezes. Por isso, o défice fiscal em relação a esta despesa apresenta uma forte tendência para o agravamento: -1,2 pp. do Pib (1960); -2,5 pp. (1990); e –8 pp. (2005), embora a carga fiscal, equivalente a cerca de 55% da média europeia, nos anos sessenta, tenha subido para quase 95% em 2005. Um Estado constitucionalizado na dependência implícita de uma economia que crescia quase 80% numa década (1960-70), não tem suporte económico e financeiro quando ela se queda nos 4% num lustro (2000-2005) e enfrenta ainda um acelerado envelhecimento demográfico. É isto, nomeadamente, que não permite falar com seriedade de “alteração das circunstâncias”, perante uma tendência continuada e sempre agravada que atravessa mais de três décadas.
6. Crise económica e crise financeira do Estado, em especial, determinam a pouco referida crise da social-democracia / socialismo democrático. De facto, sem perspectivas favoráveis, no curto e no médio prazo, a economia portuguesa já não suporta, e não suportará, uma política redistributiva do rendimento e da riqueza (4); nem aproximará a taxa de ocupação da mão-de-obra do pleno emprego; nem assegurará, responsavelmente, o futuro de um Estado Social que pretenda garantir tudo a todos; nem um sindicalismo actuante porque, “contra” os privados, teme as falências e as “deslocalizações”, e “contra” o Estado ataca verdadeiramente os contribuintes, que são as únicas vítimas do “Partido do Estado”. Além da medíocre economia que temos, o Estado português, na Zona Euro, não pode ser intervencionista: sem moeda já não tem política monetária, nem cambial próprias; não tem fronteiras nem alfândegas; não tem autonomia orçamental; e não pode controlar a circulação dos capitais. Neste contexto, as políticas e os objectivos da social-democracia/socialismo democrático, que a grande maioria dos portugueses prefere, caminham para o esgotamento.
7. De resto, ainda não se entendeu bem, entre nós, que “[…] as principais baixas políticas das crises do capitalismo na Europa Ocidental haviam de ser os partidos da esquerda […], ao passo que os seus maiores êxitos se verificaram durante os trinta gloriosos anos de crescimento capitalista (1945-75) – a Era Dourada do Capitalismo” (5). Na verdade, sem uma economia próspera é uma pura estultícia prometer a redistribuição, o pleno emprego, a solidez do Estado Social que dá tudo a todos e a intervenção consistente do sindicalismo. Ao menos como modelo nacional e no mundo actual, a social-democracia está a caminho da irrelevância completa. É isto, muito claramente, que coloca o problema económico no cerne de todas as preocupações em alguns países da UE.
8. A abertura das economias através da UE/15, do “alargamento” e da liberalização do comércio mundial é a novidade e o embaraço. Neste novo e enorme mercado, e sem capacidade competitiva, nem vendemos em Portugal o que aqui poderíamos produzir, nem exportamos porque outros são os preferidos: as nossas produções acabam por desaparecer se não conseguirmos competir melhor ou se o mundo não voltar para trás.
Em face disto, há quem pense, como Mário Soares (6), que “os socialistas têm que estar conscientes de que hoje é indispensável mudar a ordem das coisas no mundo, sem o que os seus ideais deixam de ter sentido”. É correcta esta percepção quanto ao futuro da social-democracia, como a conhecemos, num espaço comercialmente aberto e com livre circulação dos capitais. Mas é muito arriscado esperar que mude a “ordem das coisas no mundo”, para viabilizar a social-democracia, porque poderá não acontecer. É por isso que, se não formos capazes de promover a nossa própria mudança, nos restará o estatuto de modestos serviçais dos europeus. Resumindo: mudar é a condição da sobrevivência, conservar será o nosso suicídio. Esta é a escolha que se coloca aos portugueses.
9. A modificação mais urgente e mais difícil, mas ao nosso alcance, é a do Estado, porque não haverá meios, na próxima década, para alimentar o desvario despesista dos últimos anos. Pese embora a circunstância de sermos um dos países mais pobres da UE/15 (Quadro anexo–col.1), excedemos todos os outros na evolução de índices fundamentais relativos às finanças públicas (Quadro anexo): na carga fiscal (+ 8,4 pp. do Pib – col.2); na despesa corrente (+ 4,7 pp. – col.3); na despesa corrente primária (+ 10 pp. – col.4); nas despesas de protecção social (+ 8,2 pp. – col.5); nas pensões (+ 3,7 pp. – col.6); e na fracção dos impostos aplicados na protecção social (+ 18 pp. do NF - col.7) (7). Uma tão desatinada evolução financeira – verdadeiramente ruinosa e sem paralelo europeu - constitui em muito o resultado do “optimismo profissional” e inconsistente dos responsáveis, e da maldição que sempre nos persegue, e que é o “ódio nacional” aos números, às contas, ao rigor e à responsabilidade, quando está em causa a gestão dos dinheiros públicos.
10. O Quadro anexo evidencia assim o insuportável ritmo da evolução das despesas correntes primárias e, nelas, das da protecção social, onde as pensões assumem grande importância. Os países que aí nos seguem imediatamente, a Alemanha e a Grécia, situam-se a uma distância enorme: -6,1 pp. (despesa corrente primária - col.4), -3,1 pp.(despesa de protecção social - col.5), e -1.8 pp.(pensões - col.6). Porque não vislumbramos condições para uma próxima e suficiente prosperidade económica, resta apenas o caminho das reformas urgentes, drásticas e com efeitos num prazo útil, isto é, da ordem dos cinco anos: são uma condição necessária, embora insuficiente, para evitar o colapso financeiro do Estado.
11. Fixemos o quadro fundamental e factual seguinte:
1.º - Que a nossa economia, no longo prazo, apresenta um inexorável declínio;
2.º - Que, no médio prazo, tenderá a manter-se esta mediocridade, nomeadamente, devido: ao nosso endividamento e à dependência financeira externa; à falta de competitividade; aos custos elevados do petróleo; ao “alargamento” e às suas consequências; à penetração dos produtos chineses; à estagnação das principais economias europeias; e à ausência de investimentos estrangeiros;
3.º - Que a iniquidade do nosso sistema fiscal não tem impedido arrecadações que já excedem as expectativas, em comparação com a UE/15;
4.º - Que, sendo estes os muito prováveis limites económicos e financeiros, nos próximos anos, a consolidação orçamental dependerá das políticas de despesas, em que avultam as do pessoal e as prestações sociais (80% da despesa corrente primária, em 2004);
5.º - Que, consequentemente, terá de ir-se muito mais longe do que se foi, até agora, quanto àquelas políticas, o que só será possível modificando os regimes em vigor e os “direitos adquiridos”, face à verdadeira “alteração das circunstâncias”;
6.º - Que só uma nova e próxima prosperidade económica, inverosímil em prazo útil, poderia evitar ou atenuar a rudeza do que se impõe fazer;
7.º - Que a improbabilidade manifesta de êxito da política de espera pela “mudança do mundo” não consente, responsavelmente, mais tergiversações e delongas.
12. O que é imperativo que se faça, sob pena da nossa devastação pelo livre comércio mundial e pelo peso insuportável do Estado, exige a adesão e a unidade consciente da sociedade. E esta só será conquistada perante a verdade completa da nossa situação, enunciada pelos mais altos responsáveis políticos.
Notas:
(1). Jornal Público, 6.Out.2005.
(2). Nos últimos anos: 1998 - +4,7%; 1999 - +3,8%; 2000 - +3,7%; 2001 - +1,8%; 2002 - +0,4%;2003 - -1,1%; 2004 - +1,1%.
(3). A economia portuguesa no século xx, ICS/2004, p. 125.
(4). Dificuldade agravada pelos altos níveis fiscais já atingidos, pela competitividade fiscal internacional e pela livre circulação dos capitais.
(5). Donald Sassoon, Cem anos de socialismo, Vol. I, p. 21.
(6). Mário Soares e Sérgio Sousa Pinto, Diálogo de Gerações, Temas & Debates/2004, p. 59.
(7). Os resultados recentes das contas públicas só não são mais desastrados porque, nos anos 90, os impostos se comportaram positivamente, os fundos europeus atingiram os 45 000 milhões de euros, as privatizações renderam 17 000 milhões de euros (dos quais 10 000 milhões amortizaram a dívida pública) e o peso dos juros caiu o equivalente a quase a 6 pp. do Pib. Este conjunto de circunstâncias favoráveis são irrepetíveis nos próximos anos.