sábado, fevereiro 02, 2019

Lembrando um herói angolano



JONAS E JÓNATAS [Texto escrito em 22.02.2002 para o site da Causa Liberal]

«Como caíram os heróis no meio do combate?/ Jónatas, a tua morte dilacerou-me o coração...» (2Samuel 1:25)

O embaixador de Portugal em Luanda comentou a morte anunciada de Jonas Malheiro Savimbi com o desejo de que, agora, os resistentes da UNITA entreguem as armas e se integrem na "vida normal" de Angola. O senhor embaixador deveria ser chamado ao Parlamento para explicar ao País que "vida normal" há em Angola e, já agora também, por que razão um alto funcionário do Estado português toma partido, desta forma pública, num conflito interno de Angola... Em plenos anos 80, ainda estudante do liceu, vi uma reportagem televisiva sobre a UNITA e, nela, Savimbi dirigia-se a um grupo de apoiantes; dizia-lhes qualquer coisa deste género: "querem-vos obrigar a comprar tudo nos armazéns do povo e lá não tendes nada para comprar; nós queremos que possais voltar a comprar na loja do sr. X ou do sr. Y, que têm o que procurais e em quem vós confiais...". Escusado será dizer que me tornei admirador de Savimbi e via nele um dos combatentes pela liberdade naquele tempo de Guerra Fria, um dos resistentes ao expansionismo comunista, sobretudo numa terra a que me ligam memórias familiares e de infância. Admirava nele aquela capacidade anfíbia de ser guerrilheiro envergando um camuflado e ser um político cordato e bem falante quando dava entrevistas; mostrava, acima de tudo, ser inteligente, patriota e suficientemente pragmático nas alianças que fazia (explicava que não era pró-americano nem pró-apartheid, simplesmente que precisava dos apoios deles para sobreviver; e, embora sempre tivesse acreditado num futuro de Angola com os Portugueses - ao contrário de outros - irritava por cá muita gente distraída quando falava, com razão e desassombro, da vergonhosa conivência portuguesa com a ditadura do MPLA). Nunca pensei que fosse um líder imaculado, coisa que sei não existir, nem deixei de estremecer quando eram feitas revelações sobre determinadas acções dos seus homens. O que eu me perguntava era: se não vivesses no conforto e na paz em que te é dado viver, se estivesses numa sociedade daquelas, como te comportarias? que escolhas farias? É fácil achar, num apartamento em Cascais, que a resistência armada dele não tinha sentido e que se deveria resistir com sensatez e civilidade à corrupção reinante em Angola, à prepotência dos senhores do MPLA, à venda a peso de todos os recursos do país para enriquecimento particular, de um modo que nenhum colonizador do passado julgou sequer possível. Pensava ainda outra coisa: Savimbi, tal como Holden Roberto (o líder terrorista de 61, por quem não tenho qualquer simpatia), foi apeado da partilha do poder prevista nos acordos de Alvor de 1975 por um MPLA que quis ficar sozinho em Luanda (totalmente sozinho não, só com russos e cubanos...); mas ao contrário do outro, não foi para um exílio dourado em Paris, preferiu ficar em Angola a lutar por aquilo que julgava pertencer-lhe. Desde então tornou-se um irrefutável símbolo de patriotismo e de coragem pessoal a abater, que jamais seria tolerado por um MPLA que era cada vez mais o oposto dessa cultura de sacrifício e de resistência. O mundo depois mudou e quiseram à pressa acabar com a Guerra Fria em Angola, pensando que umas eleições dariam magicamente lugar a uma sociedade pacificada e livre dos hábitos de arbitrariedade e desvario alimentados pela guerra civil. Mas as coisas correram previsivelmente mal e quiseram-nos então fazer acreditar que Savimbi era o responsável pela continuação da guerra em Angola: um alegado mau perder numas eleições apressadas, prematuras e duvidosas teria sido a causa de tudo... O massacre dos dirigentes da UNITA em Luanda nessa época tornou-se um pequeno pormenor que não poderia dar razão a Savimbi para desconfiar das intenções desse grande, democrático e integríssimo político que é José Eduardo dos Santos! Este teve a sorte de ver terminar a Guerra Fria e poder esperar que Washington se desinteressasse da causa de Savimbi, ao mesmo tempo que Mobutu e a África do Sul deixavam de lhe valer... Mesmo assim, Savimbi resistiu, abandonado por todos e tornado num responsável cómodo pela "inexplicável" podridão moral e económica da sociedade angolana, impedida por ele de ser convenientemente governada pelos crioulos do MPLA. Há dias, integrado numa coluna com os seus guerrilheiros, Savimbi foi surpreendido e liquidado por soldados do exército "regular"; houve festejos "espontâneos" organizados pela paródia de governo que existe em Angola e, sobre o cadáver ainda quente de Savimbi, algumas luminárias saíram a terreiro falando nas possibilidades abertas à paz. Que Deus lhes perdoe e perdoe também a Savimbi todos os seus pecados. E a mim que me perdoe este sentimento, que não consigo reprimir no meu espírito: que Jonas Malheiro Savimbi morreu como um herói...!