terça-feira, novembro 12, 2019

Os liberais e a "política de blocos" (em terras de Espanha e praias de Portugal)

E Rivera perdeu(-se) no seu labirinto…

O naufrágio do partido Ciudadanos nas eleições parlamentares espanholas de domingo (10 de novembro) dá algumas lições aos liberais -- também em Portugal. E, para portugueses, é um banho de água fria depois da eleição histórica do deputado da Iniciativa Liberal pelo círculo de Lisboa em outubro último.

O partido Ciudadanos está federado no partido ALDE, que representa as forças liberais no Parlamento Europeu. O Ciudadanos tinha 57 deputados (15,8% dos votos expressos) e ontem elegeu apenas 10, com 6,8%. Perdeu 2,5 milhões de votos. [Para um conjunto de opiniões interessantes sobre este descalabro, ver aqui (El Pais), sobretudo o texto de Astrid Barrio.] A postura do partido na campanha eleitoral anterior (e depois das eleições de 28 de abril deste ano) tinha-me surpreendido pela negativa. A aparente aceitação, como "natural", de uma coligação com o PP e o Vox (aliás já experimentada regionalmente) era acompanhada de uma recusa "de princípio" de uma solução governativa com o PSOE. Pareceu-me que o Ciudadanos se tinha deixado capturar pela lógica da "política de blocos".

A "política de blocos" é o que temos em Portugal desde que a "Geringonça" e a estratégia de António Costa após as eleições de outubro de 2015 se fundaram na demonização de Passos Coelho e do seu governo, erguendo um muro artificial de incompatibilidades encenadas (e pretenso fosso ideológico) entre PS e PSD e que serviu de cimento de uma unidade (também encenada) do PS com todas as forças à sua esquerda; esta aposta na "política de blocos" foi tão levada a sério -- ou servia tão bem os interesses do encenador e atores da companhia -- que não foi sequer suspensa com o aparecimento de um líder no PSD que parecia comungar a visão "geringoncista" sobre Passos e a legislatura de 2011-2015.

Ora, a Espanha está há alguns anos nesta lógica de "política de blocos", pelo menos desde que Rodríguez Zapatero chegou à liderança do PSOE e do governo querendo despertar (talvez por puro tacticismo) as memórias fraturantes das "Duas Espanhas" (aliadas a causas fraturantes mais in) para encher o vazio ideológico e a falta de políticas de vistas largas de que o seu partido padecia desde o fim podre do Gonzalismo. A consequência disto foi uma polarização que -- ao contrário do que sucedeu nos anos 80 e 90 -- já não era só vagamente herdeira das divisões ideológicas do passado (sociologicamente muito mais marcadas e representativas do que em Portugal) nem tão matizada pela referenciação comum a um "centrismo" assente nas grandes opções políticas da União Europeia. A outra consequência foi o descontrolo político-partidário da polarização, com o aparecimento de novos partidos (nomeadamente o Podemos), que cavalgaram o fim da polidez institucional mantida pelos partidos constitucionais desde a Transição (na segunda metade dos anos 70).

Perante este estado de coisas, o Ciudadanos foi uma lufada de ar fresco. Não o era só pela entrada de uma nova geração na política que queria ser alternativa a partidos instalados e mergulhados em suspeitas de corrupção; também não o era só por criticar a corrupção e o imobilismo reinantes sem se encostar aos populismos e demagogismos dos extremos; nem o era sequer, dada a origem geográfica do novo partido, pela atitude disruptiva face aos impasses intermináveis em torno da "questão catalã" (já lá vamos). A grande novidade era um partido que, pela sua natureza, não encaixava na encenação dilacerante de ressuscitar as "Duas Espanhas". E um partido que, para operacionalizar essa postura "fora da caixa", quebrou a hegemonia das duas grandes "famílias europeias" (PSE e PPE) em Espanha, colocando-se, na relação com a Europa, sob o guarda-chuva dos Liberais (inclassificáveis no binómio esquerda/direita).

A circunstância da origem geográfica (catalã) do Ciudadanos talvez nunca tenha convivido bem com o potencial que o partido desenvolveu ao tornar-se uma força de implantação nacional com o alinhamento europeu já referido. Na verdade, o nacionalismo catalão estava a radicalizar-se há vários anos, acelerando desde que a antiga classe política autonómica herdeira do Pujolismo, e enredada numa corrupção que estava à beira de ser exposta, aí viu uma tábua de salvação para distrair os incautos (e os muitos dispostos a parecê-lo). Sem dúvida que houve excessos de zelo dos partidos constitucionais (PSOE e PP) na gestão da receção política do Estatuto de Autonomia de 2006, mas houve mais que isso: houve, com aquele excesso, uma entrada involuntária no jogo dos nacionalistas radicalizados que estavam já a fazer tudo para polarizar a política regional, recorrendo a provocações xenófobas, persecutórias e atentatórias das regras do Estado de Direito (de que todo o processo conducente ao "referendo" de 1 de outubro de 2017 foi a encenação de maior irresponsabilidade e gravidade).

No Parlamento Europeu, Guy Verhofstadt (ALDE) deu o tom do que deveria ter sido a posição do Ciudadanos sobre o descontrolo na gestão política da "questão catalã". Mas Albert Rivera (catalão e líder nacional do Ciudadanos), juntamente com Inés Arrimadas (líder do partido na Catalunha), forçaram a nota na reação ao radicalismo nacionalista, caindo também no seu jogo polarizador, o que os arrastou, na cena nacional, para um alinhamento cada vez maior com os partidos que mais favoreciam uma resposta à "questão catalã" na lógica da "política de blocos" (PP e Vox). A ideia do PP era (e é), simplesmente, subtrair votos ao PSOE junto do eleitorado central preocupado com a unidade do Estado Espanhol, apresentando-se como "duro" onde o PSOE se mostrava mais disposto à negociação (eventualmente, recuando nas posições assumidas desde 2006 perante o Estatuto ou até pensando numa revisão constitucional que pudesse "federalizar" a Espanha). Mas esta "dureza" articulada com a "política de blocos" é um jogo perigoso e, contra talvez algumas aparências, o Ciudadanos não tinha nada a ganhar com ela (como agora se viu).

Lembre-se que foram concessões substantivas (nomeadamente em matéria fiscal) dadas ao País Basco que aí fizeram baixar a tensão radicalizante do nacionalismo local (numa região com um historial de terrorismo separatista que nunca existiu na Catalunha). Ora, os Catalães, paradoxalmente, parecem agora mais radicalizados, menos autónomos e alvos menores de concessões -- ao contrário do que parecia ser a regra nos anos 80 e 90. A verdade é que isso aconteceu porque a polarização da "questão catalã" (manobrada pelos interesses mesquinhos de políticos regionais em declínio e que serviu depois de pasto a oportunistas "reativos" na política nacional) paralisou a evolução da autonomia catalã. Essa "evolução" não era nenhum Armagedão para o Estado Espanhol senão para um unitarismo estreito que tem em Espanha cultores à "direita" e à "esquerda" (contrariamente ao que pensam em Portugal alguns comentadores "profissionais" semi-analfabetos que julgam que tal atitude nasceu com o Franquismo).

Miguel Herrero de Mignón, um dos juristas do grupo de "pais fundadores" da Constituição de 1978 (e que há cerca de vinte anos rompeu com o PP por causa desta questão), mostrou bem, em Derechos Históricos y Constitución (Taurus, 1998), que as autonomias basca e catalã tinham de evoluir no domínio constitucional e que isso tinha sólida fundamentação histórica e era fundamental para a própria sobrevivência do Estado Espanhol. Diga-se, aliás, que a opinião deste constitucionalista (que foi talvez o principal teorizador do papel da monarquia na montagem e articulação do regime democrático espanhol) faltou ao atual monarca na posição tomada perante a "questão catalã", não suficientemente alinhada com o princípio definido pelo seu pai (no discurso de aceitação da coroa em 1975) de, enquanto chefe de Estado hereditário e representante da dinastia histórica, ter de ser «o rei de todos e cada um» dos espanhóis -- o que é incompatível com a aparência de estar a tomar partidos no meio de uma crise, mesmo que por razões formalmente corretas.

Ora, se a adesão ao liberalismo do ALDE não foi um acaso, ou meramente instrumental (e parece não ter sido), o Ciudadanos tinha à partida a vocação de ser o partido da "federalização" do Estado, por meio de uma ponderada e bem negociada revisão constitucional (nesse sentido ia o discurso já referido de Verhofstadt). E esta vocação era perfeitamente consentânea com a vocação reformista do sistema político (práticas e seu enquadramento jurídico) que fizeram a imagem de marca do Ciudadanos e cuja aceitação este chegou a pôr como condição ao PP para uma coligação. Mas, digo eu, o que servia para o PP também deveria ter servido para o PSOE a seguir às eleições de 28 de abril, com o qual tinha sido possível constituir uma maioria capaz de governar -- pelo que fazer uma campanha escolhendo os Socialistas como adversário principal, por causa da tentação maximalista e de alvo falho de Rivera, de querer hegemonizar o "bloco" oposto ao liderado pelo PSOE, foi um erro crasso. Em vez de se agarrar aos seus princípios, como única bússola, e ser prático, flexível, na escolha das estratégias (e coligações) políticas para os pôr em prática, o Ciudadanos optou pela mundividência da "política de blocos" (e, talvez involuntariamente, pelo facciosismo e a lógica fraturante que este sempre traz, mais o desfile inesperado de estragos nos costumes políticos).

Os eleitores do Ciudadanos mais abertos a um reformismo constitucional e/ou mais reativos a um alinhamento demasiado marcado com os conservadores também poderiam escolher o PSOE; e os que estivessem mais preocupados com a unidade do Estado e/ou talvez mais afetados pela "questão catalã" também poderiam votar PP. A secundarização das bandeiras próprias do partido (antes colocadas em torno de um reformismo vigoroso ao centro), aumentou o risco de desagregação do seu eleitorado. E a lógica da "política de blocos" só podia fortalecer as forças mais fortes e ideologicamente mais implantadas em cada um dos lados do eixo político-partidário. Ou seja, o Ciudadanos, com o posicionamento que escolheu, não tinha nada de genuinamente seu para dar ao eleitorado -- que prefere "originais".

Tudo isto já estava neste estado lastimoso quando, após meses de impasse, foram convocadas as eleições de 10 de novembro, com os resultados conhecidos para o Ciudadanos. Rivera arrastou os Liberais para o seu labirinto. A sua liderança também estava, aparentemente, demasiado fulanizada (nele próprio). Isso é "bom" para partidos que a única coisa que querem é o poder a qualquer preço sem ter qualquer ideia articulada sobre o que fazer depois de lá chegados (além, claro, da gestão política do Orçamento). Ora, o Ciudadanos era (ou tinha todas as condições para ser) outra coisa. Não sei se Rivera achava que a estratégia seguida favorecia mais a sua liderança pessoal (não sei se o seu principal objetivo era pessoal). O que julgo é que levou o partido a perder-se ao deixar-se aprisionar na lógica da "política de blocos"; mesmo na questão catalã, na qual o ter-se tornado a principal força da oposição ao bloco nacionalista radical no parlamento regional, o levou a replicar esta atitude (que, como também se vê agora, só beneficia os radicais, mesmo eleitoralmente).

Embora a "política de blocos" em Portugal seja de natureza diferente da espanhola, os liberais portugueses (agora recém-entrados no parlamento) devem igualmente precaver-se contra ela. Somos uma sociedade menos plural e menos vigorosa que a espanhola (mesmo em termos ideológicos), mas a lógica da "política de blocos" opera aqui com os mesmos efeitos para uma força liberal federada no ALDE. Há razões para acreditar que o partido Iniciativa Liberal obteve mais de 65 mil votos vindos de pessoas que se identificam com o programa bastante claro que apresentou; pessoas que, se o seu posicionamento fosse o da lógica da "política de blocos", dificilmente teriam escolhido este partido. Trata-se de um eleitorado provavelmente pequeno e em que a motivação do voto deve estar especialmente ligada à expressão de uma corrente com ideias bem vincadas -- aquelas que o partido assumiu de forma descomplexada, pondo fim ao tabu de proclamar publicamente o Liberalismo como ele é há décadas defendido por partidos como o FDP na Alemanha e o VVD nos Países Baixos.

Parece obvio que o "perigo" não vem de uma captação dos Liberais pelo bloco socialista entre nós hegemonizado pelo PS; ele poderá vir do "bloco português do PPE" (a que pertencem na Europa o PSD e o CDS) e que poderá querer os Liberais para compor o ramalhete de uma coligação contra o outro bloco. Aliás, já vários comentadores vieram apontar nessa direção. Nesse cenário, não vale a pena entrar na contabilidade sobre com qual dos blocos os Liberais têm mais afinidades. Nesse exercício, desde logo, corre-se o risco de desagregar o grupo dos associados do partido e de desmobilizar os simpatizantes. Mas a questão principal nem é essa: se é para fazer um partido liberal em Portugal (e para o manter por muitos e bons anos), o que há a ganhar com uma tal dissolução estratégica tão precoce? E em nome de quê?

O partido Iniciativa Liberal só terá futuro (e eleitorado) se se agarrar à "bússola" dos seus princípios distintivos, o que implica uma imagem e uma mensagem públicas sem filtros nem aditivos. Tal atitude exclui, do meu ponto de vista, coligações pré-eleitorais com outros partidos. Na sua dimensão atual (ou mesmo no cenário de um grupo parlamentar "mota com sidecar"), tenho muitas dúvidas que uma coligação pós-eleitoral fosse aconselhável (pela sua rigidez). Uma estratégia de alinhamentos mais flexível, prudente e bem explicada seria sempre preferível. E isso é o que parece já ter sido anunciado (e bem) para a presente legislatura.

P.S. [13.11.2019] A tentativa de acantonamento e/ou sujeição da Iniciativa Liberal à "política de blocos" teve no presidente da Assembleia da República o ato mais discricionário e despótico, impondo ao partido -- contra a vontade expressa do deputado eleito -- sentar-se no hemiciclo à direita do "bloco português do PPE" (PSD e CDS). A Iniciativa Liberal deve continuar a insistir que o único critério aceitável (até para evitar arbítrios, "achismos" e "espertezas" muito comuns) é seguir em Lisboa a disposição que têm em Estrasburgo as "famílias europeias" em que os partidos portugueses se federam.