sábado, dezembro 31, 2016

Um perigoso amontoado de sofismas

Notas sobre Trade and Development Report, 2016: StructuralTransformation For Inclusive and Sustainable Growth, Nova Iorque e Genebra: United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD), 2016 [215 p.].

so·fis·ma substantivo masculino
1. Argumento capcioso com que se pretende
enganar ou fazer calar o adversário.
2. [Popular]   [Popular]  Engano; logro.
(Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)
Este relatório tem duas partes, uma de diagnóstico e outra de propostas. É um exercício que se pretende legitimador do abandono do paradigma de uma economia de mercado pura a nível mundial a favor do intervencionismo, nomeadamente por meio do “regresso” às chamadas “políticas industriais” dos Estados. Obviamente, o paradigma que se pretende pôr em xeque nunca teve a vigência que se lhe atribui, tal como as políticas a que se propõe um “regresso” nunca foram totalmente abandonadas. Por outro lado, as propostas do relatório assentam em asserções e relações de causa-efeito que deixam muito a desejar em termos tanto lógicos quanto empíricos.

Um dos graves problemas deste texto é a forma como trata a política monetária. Aparentemente, os efeitos das opções de política monetária até não são esquecidos. No retrato da situação económica global, no qual se destaca o crescimento anémico um pouco por todo o lado, atribui-se os problemas dos Estados Unidos da América (EUA) e da União Europeia (UE), respetivamente, ao “dólar forte” e à “timidez” da política do Banco Central Europeu (BCE); num contexto em que, nos EUA, se praticou desde 2008 uma política agressiva de quantitative easing (QE), tal como no Reino Unido, e em que na UE a autoridade monetária usa mecanismos não ortodoxos de monetarização das dívidas públicas e dos passivos bancários – com juros historicamente baixos dos dois lados do Atlântico, tal como no Japão –, não se vê que maior arrojo se propõe nesta área. Mas estas considerações são também contraditórias com a responsabilidade que o relatório corretamente imputa às políticas de juros baixos e de QE dos últimos anos no crescimento da dívida tanto pública como corporativa nos países desenvolvidos. Se estas políticas têm tido essas consequências, como é que maior arrojo pode ser uma solução? Claramente, quis-se incorporar no relatório esta menção crítica às políticas monetárias, mas sem se atentar na contradição que isso implica com a sugestão de (ainda) menos timidez e restrição nas opções dos bancos centrais. Aliás, as propostas da UNCTAD, que referiremos, só poderão ser operacionalizadas com políticas monetárias expansionistas que estão também em contradição com a menção referida às consequências da política monetária dos últimos anos nos países desenvolvidos. O prisma monetário não é, pois, o forte do diagnóstico deste relatório. O efeito da política monetária é decorativo neste texto, cuja abordagem tem semelhanças metodológicas com a dos proponentes (e praticantes) do modelo do real business cycle (RBC), que desconsideram a relevância da política monetária e se apegam aos conjuntos de dados “empíricos” que tratam com métodos econométricos de validade duvidosa (quanto a este assunto, ver Paul Romer, «The Trouble With Macroeconomics», Set. 2016).

O verdadeiro problema económico, segundo os autores da UNCTAD, é a “fraca procura” global que se deve à estagnação dos salários reais, o que impede um maior crescimento económico (veja-se logo na p. III, 5.º parágrafo). A “procura” é vista como um agregado quantitativo independente da qualidade da “oferta” ou da sua adequação às necessidades ou preferências dos consumidores. Deste modo, o facto de os preços não subirem na proporção que alegadamente viabilizaria um “surto industrial” nos países onde os autores do relatório gostariam de o ver acontecer pode ser imputado, quantitativamente, a uma “procura” (de quê?) que estes economistas sabem que deveria ser mais alta. O problema dos salários reais – que o relatório não consegue mostrar de modo convincente que não tenham subido (sobretudo nos países em desenvolvimento) – é entendido com o mesmo sofisma da “fraca procura”. Estes salários-que-deveriam-ser-mais-altos não o são porque, no seu entender, a circulação global de capitais, por um lado, se orientou para remunerar os acionistas e não os trabalhadores dos países onde fez chover investimento e, por outro lado, escolheu apostar em atividades de fraco valor acrescentado, não favorecendo a panaceia dos surtos industrializadores nesses países nem a afluência salarial que a nutrisse localmente.

[Continua]

sexta-feira, dezembro 23, 2016

O que se sabe do Natal, nascimento de Jesus


[Grão de Trigo, Dez. 2011]

A palavra «Natal» refere-se à festa da natividade (isto é, nascimento) de Cristo.

O dia 25 de Dezembro era, no século IV da nossa era, assinalado como o dia do solstício de inverno, celebrado na antiguidade como data do nascimento dos deuses Mitras e Sol Invictus. No calendário juliano, o solstício calhava a 6 de Janeiro, quando era celebrado o aniversário do deus egípcio Osíris em Alexandria. Por volta do ano 300 da nossa era, o 6 de Janeiro tornara-se também no Oriente a data de celebração da Epifania, uma festa sempre intimamente relacionada com o Natal.

A mais antiga menção ao 25 de Dezembro como dia de Natal (nascimento de Cristo) é no calendário Filocaliano de 354, parte do qual reflecte o que era a prática da Igreja em Roma em 336. A celebração do aniversário de Cristo não era generalizada antes de século IV; de facto, ainda em pleno século V, o antigo leccionário arménio de Jerusalém comemorava Tiago e David a 25 de Dezembro, fazendo notar que «noutras cidades é celebrado nesta data o nascimento de Cristo». Quando celebrado o Natal, o tema da festividade era a Encarnação e as partes das Escrituras então lidas não se confinavam às narrativas sobre o nascimento ou a infância de Jesus. A Lucas 2:1-14 e Mateus 1:18-25 eram acrescentados não só João 1:1-8, mas também, por exemplo, Tito 2:11-14.

O ano do nascimento de Jesus Cristo é difícil de determinar. O recenseamento de Quirino, governador romano da Síria, referido em Lucas 2:1-5, é datado por Josefo como ocorrido entre os anos 6 e 7 da nossa era, além de que não terá abrangido toda a população do Império Romano (como diz Lucas 2:1), também não terá sido contemporâneo do governo de Herodes (pois não foi durante o seu reinado que Quirino foi governador) e não teria requerido a presença de José (e muito menos de Maria) em Belém da Judeia por ser a sua terra natal. Apesar de Lucas 3:1-2 não sugerir nenhum ano exacto, a passagem parece apontar para uma data entre 27 e 29 da nossa era como a do baptismo de Jesus (com cerca de 30 anos) por João Baptista (Lucas 3:23). De acordo com esta datação, Jesus teria nascido entre 4 e 1 antes da nossa era. A altura do ano não é indicada em parte alguma da Escritura.

O local de nascimento de Jesus também tem sido problemática. Se só tivéssemos os evangelhos segundo Marcos e João, poderíamos assumir que havia sido em Nazaré (Marcos 1:9; João 1:45-46; Lucas 2:4, 39). Em Lucas 2:1-20 é contada a história do nascimento em Belém e Mateus 2:1 segue uma tradição similar, embora introduza não uma narrativa do nascimento, mas uma narrativa da infância, pois a história dos Magos implica que Jesus já teria cerca de dois anos de idade quando eles chegaram (Mateus 2:16).

O local exacto do nascimento em Belém também é duvidoso. A manjedoura de Lucas 2:7 podia situar-se numa tenda quase sem cobertura ou num local de alimentação de animais ao ar livre, podendo, por seu lado, a «hospedaria» referida ser um quintal com cercas à sua volta. Curiosamente, a presença no local de um burro e de um boi ou vaca não nos chega pelo Novo Testamento, mas sim através da imagem de Isaías 1:3, que foi posteriormente aproveitada. Outra tradição dos primeiros séculos do cristianismo, registada no apócrifo do proto-evangelho de Tiago do século II (18-21) e por Justino, fala de uma gruta como o local de nascimento de Jesus. Essa gruta teria sido alegadamente mostrada a Orígenes por volta do ano 246 e sobre esse local, cerca do ano 333, o imperador Constantino teria mandado construir uma basílica, que foi substituída pelo imperador Justiniano por volta de 531. Ainda existente, a gruta tem no seu interior uma pedra que a lenda conta ter servido de manjedoura. De facto, nas primeiras liturgias do Natal tanto a manjedoura como os campos dos pastores das imediações são referidos – mas mais nos festejos da Epifania do que na celebração propriamente dita do nascimento de Jesus Cristo.


Traduzido e adaptado de A. R. C. Leany, s.v. «Christmas», in The Oxford Companion to the Bible (ed. Bruce M. Metzger e Michael D. Coogan), Nova Iorque e Oxford: Oxford University Press, 1993, pp. 112-113.


OUTROS TEXTOS SOBRE O NATAL, AQUI.

terça-feira, novembro 22, 2016

Os ministérios bíblicos na igreja (II)

[Grão de Trigo, Agosto 2015, pp. 2-3.]

Os ministérios formais na igreja

As igrejas são a reunião dos crentes com o propósito de nos fazer proclamar a Palavra, de velarmos uns pelos outros nos aspetos exteriores da fé e de nos instruirmos mutuamente. Os dons que dão lugar aos ministérios carismáticos – e informais – (de que tratámos no artigo anterior) são fundadores e inspiradores para a igreja e representam formas excecionais de liderança. Mas a igreja, na sua missão, não pode estar dependente do que é excecional. Para ilustrarmos este argumento, as igrejas que em Portugal e no Brasil adotaram como confissão a Breve Exposição das Doutrinas Fundamentais do Cristianismo consideram provavelmente o seu autor, o Dr. Roberto Kalley, um apóstolo no sentido lato de 1Cor. 4:9. Mas essas igrejas, para persistirem, não poderiam esperar encontrar em cada geração, até ao presente, alguém tão dotado e reconhecido como Kalley. O mesmo se poderia dizer relativamente a irmãos (se os houver) considerados profetas ou doutores. Outros ministérios têm de servir às necessidades da igreja no dia-a-dia, ajudando a dotá-la de uma regularidade sem a qual os grupos humanos não sobrevivem. É, pois, necessário haver ministérios regulares na igreja.

No Novo Testamento, é nos Atos dos Apóstolos e nas Epístolas que surgem as referências a estes ministérios, precisamente porque é nesses livros que se relatam acontecimentos ou se abordam problemas relacionados com as primeiras comunidades cristãs. Os ministérios regulares ou de nomeação eclesiástica são aqueles que a igreja mantém regularmente organizados e para os quais, reunida em assembleia formal, nomeia ou chama ou confirma irmãos para os exercerem. Nos Atos dos Apóstolos e nas Epístolas referem-se dois ministérios regulares ou formais: o presbiterado e o diaconado.

Os diáconos

Etimologicamente, «diácono» será qualquer irmão que exerça um ministério (ou serviço) na igreja. É por essa razão que Atos 6:1-6 é muitas vezes considerada a passagem que testemunha a instituição do diaconado, pois é aí que se conta que os apóstolos pediram à igreja em Jerusalém que escolhesse do seu seio sete homens para servirem às mesas durante a partilha de alimentos. O conjunto dos irmãos elegeu os sete e os apóstolos impuseram-lhes as mãos em sinal de reconhecimento daquele ministério. Mas seria errado entender-se que, por ter sido aquela a causa imediata da sua instituição, àquele tipo de tarefa se reduza o serviço dos diáconos. Bem lida, o que aquela passagem nos diz é que os apóstolos pediram à comunidade a designação de irmãos que trabalhassem ativamente na resolução prática de uma necessidade que estava a criar mal-estar dentro da igreja e a dar mau testemunho (o facto de as viúvas de irmãos de língua grega estarem a ser prejudicadas voluntária ou involuntariamente por irmãos de cultura judaica). Por essa razão, os escolhidos deveriam ser, de acordo com a solicitação dos apóstolos, «de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria» (v. 3). Não eram pessoas que simplesmente soubessem servir às mesas, mas que tivessem autoridade moral para serem respeitados e cujo testemunho na igreja fosse entendido como guiado pelo Espírito Santo, patente em palavras e atos sábios. Sem estas características não saberiam ser nem seriam reconhecidos como portadores de qualidades suficientes para irem ao encontro dos necessitados, dos perdidos ou dos desavindos dentro da igreja.

O grau de exigência na escolha dos diáconos era elevado, pelo que não espanta que um dos eleitos fosse Estêvão, o primeiro mártir e autor de um célebre discurso perante o Sinédrio que comprova grande conhecimento das Escrituras e do significado transcendente da pregação de Jesus (Atos 7:2-53). O apóstolo Paulo segue a mesma linha exigente quando define, em 1Tim. 3:8-13, o perfil do diácono.

Ao estarem orientados para o serviço por meio da solicitude (atenção às necessidades espirituais, afetivas e materiais dos irmãos) e de uma retidão de juízo, de propósitos e de atos, os diáconos assumem, assim, as qualidades que idealmente deveriam existir em todos os irmãos no seu convívio na igreja. Os diáconos são chamados a ser os guardiões ou os cultores dessas virtudes não só para resolução prática de falhas ou de necessidades entre irmãos, mas também para edificarem toda a comunidade, sendo agentes ativos e conscientes do bom testemunho que a igreja deve dar a crentes e não crentes.

De acordo com as características já referidas, os diáconos parecem também vocacionados para ajudarem na resolução de conflitos entre irmãos no espírito de Mat. 18:15-22 (nomeadamente para serem as testemunhas a que se refere o v. 16).

Os presbíteros

É difícil conceber que mais algum ministério formal possa ser exercido na igreja sem ter como base ou ponto de partida as qualidades e virtudes atribuídas ao diácono. [Neste sentido, pois, e não só no relevante e revelador sentido etimológico, todos os ministros da igreja são diáconos.]. Se, como foi dito, o diácono assume as características que idealmente todos os irmãos deveriam ter no convívio na igreja, isso aplica-se ainda mais aos irmãos que assumem outros ministérios – com destaque para os presbíteros.

O termo grego presbyteros era usado no tempo da igreja apostólica por associações religiosas e profissionais do mundo romano com um sentido muito semelhante ao que foi adotado nas assembleias (ekklesiai em grego) ou igrejas cristãs [Philip A. Harland, Associations, Synagogues and Congregations, Minneapolis: Fortress Press, 2003, p. 182]. Esse termo significava «ancião» e era usado como sinónimo de «supervisor» ou «superintendente» (episkopos em grego). Mas o termo «ancião» (zaqen em hebraico) era também usado no Antigo Testamento, sendo originário do período pré-monárquico da história de Israel. O termo surge em Êxodo 12:21 e Números 11:16, mas também, já no período monárquico, em 1Reis 21:8-14, Jer. 26:17 ou Prov. 31:23, ou, no tempo do Segundo Templo, em Esdras 6:7-8 e 10:14. Os anciãos da tradição judaica são também referidos no Novo Testamento, por exemplo em Marcos 15:1 e Atos 5:21 e 22:5. Os anciãos eram chefes de famílias extensas, exercendo autoridade religiosa e judicial sobre os seus parentes, sendo criticados por Jesus em Marcos 7:3, 5, onde são associados aos fariseus [J. A. Overman, s.v. «Elder», The Oxford Companion to the Bible, 1993, p. 182]. Parece claro que os anciãos ou presbíteros das primeiras comunidades cristãs, mencionados em Atos e nas Epístolas, não têm relação direta nem semelhança formal – talvez apenas uma filiação simbólica para os judaizantes – com o zaqen do Antigo Testamento.

Nas primeiras comunidades cristãs, os anciãos podiam ser chamados ou nomeados pelos apóstolos (Atos 14:23 e Tito 1:5) segundo o critério de pertencerem à família espiritual do Senhor e não à posição familiar ou tribal na sociedade – tal como Jesus escolhera os próprios apóstolos e os fizera seus parentes espirituais (Mat. 12:46-50). Na ausência dos apóstolos, compete obviamente à assembleia dos irmãos reconhecer no seu seio aqueles que revelam dons para o presbiterado. Paulo, depois de traçar o perfil pessoal do presbítero, de uma forma que lembra o que para os diáconos também estava estabelecido (Tito 1:6-8), considera-lhe atribuídas as funções de ser «apegado à palavra fiel, que é segundo a doutrina, de modo que tenha poder tanto para exortar pelo reto ensino como para convencer os que o contradizem» (Tito 1:9). Em Tim. 5:17, o apóstolo considera-o digno de estima e honra sobretudo se se dedicar à «palavra» e à «doutrina» (isto é, ao ensino). O presbiterado é, assim, um ministério centrado na Palavra – no seu estudo, proclamação e explanação. Ao presbiterado pertence trazer a Palavra para o centro da vida espiritual da igreja, pois a Palavra é o «pão da vida» e o «pasto» dos crentes.

Poder-se-ia dizer que a diferença substantiva entre um diácono e um presbítero é que o segundo tem a obrigação de pregar e ensinar regularmente (o que não invalida que o primeiro o possa fazer voluntária e esporadicamente).

Outros ministérios formais

É neste contexto que aos presbíteros é concedida a função simbólica de poderem ser «pastores», de «apascentarem» os seus irmãos na igreja, como Jesus exortou Pedro a fazer (João 21:15-17). Nesse caso, o presbítero assume – por solicitação ou reconhecimento da igreja – uma vocação que não é só a de proclamar, ensinar e explanar a Palavra, mas que é também a de, através dela, conduzir os seus irmãos ao «pasto» e ao «pão» que alimentam o seu coração pelas veredas mais apropriadas às condições de cada um. Para isso, o presbítero que é pastor tem também de dedicar-se aos irmãos com uma grande dose de solicitude, de conhecimento e de dedicação a cada um, de modo que a proclamação que fizer da Palavra seja adequada aos corações concretos que tem diante de si na igreja.

Se incluirmos ainda no conjunto dos ministérios formais o de evangelista (missionário ou obreiro como referido em 2Tim. 4:1-5), e que a igreja pode querer designar para trabalho missionário de entre os presbíteros, ficamos com os quatro ministérios elencados na Breve Exposição (artigo 22.º): diáconos, presbíteros, pastores e evangelistas.

Conclusão sobre a estrutura formal da igreja

Daquilo que foi dito se pode concluir que a formalização dos ministérios na igreja não conduz a uma estrutura hierárquica, mas a uma estrutura concêntrica. Uma ilustração desta realidade pode ser a que se segue:
Podemos ser membros da igreja sem nela termos ministérios reconhecidos – desde que sejamos batizados e que tenhamos sido aceites na comunidade comungante e confessante. De entre os membros da igreja há, porém, aqueles que foram chamados ao exercício formal da diaconia (o ministério por excelência) – e como tal reconhecidos pela assembleia dos irmãos. E é do seio destes ministros que a igreja reconhece também os presbíteros, que são os «ministros» ou «diáconos» da Palavra.

Os ministérios bíblicos na igreja (I)

[Grão de Trigo, Abril 2015, pp. 2-3.]

Dos dons ao serviço: vocação individual em contexto eclesial

Na igreja, isto é, na reunião dos crentes com o propósito de proclamar a Palavra, todos têm, em maior ou menor medida, dons atribuídos pelo Criador. «Dom» é o mesmo que «carisma», termo grego que deriva de Χάρις (charis) e significa «graça» ou «favor», originando a palavra Χάρισμα (charisma), que significa «dom da graça». Daí que 1Ped. 4:10 afirme que os dons são a manifestação da «multiforme graça de Deus». Nalguns irmãos, os dons ou carismas são visíveis e/ou conscientes; noutros, estão ocultos, às vezes mesmo para quem os transporta. São muitas vezes as circunstâncias que revelam (aos próprios ou aos outros) esses dons escondidos. No entanto, é importante estarmos conscientes de que somos chamados a fazer frutificar os nossos dons (Mateus 25:14-30), o que implica conscientemente procurá-los e descobri-los.

Os dons ou carismas serão importantes na nossa relação pessoal com Deus, mas têm uma função ou um propósito sobretudo eclesial. Temos dons para servir Deus, a igreja e o próximo. E servir a proclamação da Palavra ou o Evangelho é, claro, servir na igreja. «Servir» ou «serviço» é o mesmo que «diaconia» (do termo grego diakonia). Carisma e diaconia, dom e serviço, estão, pois, ligados – a razão de ser do dom não é a autossatisfação do crente, mas a sua realização individual como crente no serviço da missão da igreja. Assim, usar os dons que temos significa colocá-los voluntariamente ao serviço da e na igreja. Mas, para esses dons serem serviço, têm de ser reconhecidos como tal na igreja. Os dons de cada um não podem ser impostos nem ao próprio (pela igreja) nem pelo próprio (à igreja). No espírito de 1Cor. 12:4-7, o dom de cada um deve ter «utilidade» ou um «fim proveitoso» na igreja (v. 7). Será, pois, a assembleia dos irmãos que manifestará o reconhecimento desses dons em alguns dos seus membros. Mas, para isso acontecer, esses dons têm, de alguma forma, de manifestar-se primeiramente perante todos.

Os dons, bem orientados, tornam-se, assim, serviço (ou diaconia). Ora, daquele que serve diz-se ser um ministro ou que exerce um ministério (uma atividade de serviço).

Os ministérios puramente carismáticos

Os dons ou carismas não podem ser confundidos com quaisquer atributos ou capacidades que possuímos e que podem ser úteis ou ter valor na vida secular. Estes podem até ser importantes no trabalho quotidiano da igreja enquanto comunidade, mas não são necessariamente carismas. Carismas são somente aqueles que apenas servem o Evangelho, a proclamação da Palavra. Paulo enumera-os em Rom. 12:6-8 (profecia, ministério, ensino, exortação, contribuição, presidência e misericórdia), em 1Cor. 12:8-10 (sabedoria, conhecimento, fé, cura, operar milagres, profecia, discernir espíritos, variedade de línguas e interpretação de línguas), em 1Cor. 12:28 (apostolado, profecia, ensino, milagres, cura, socorros, governo e variedade de línguas) e em Efésios 4:11 (apostolado, profecia, evangelismo, pastorado e ensino). Estes carismas manifestam-se nos crentes e são reconhecidos pela igreja, em geral de modo informal. De entre estes, Deus levantou, em certas ocasiões, profetas, apóstolos e doutores (ou mestres), pessoas marcadas por dons invulgares na pregação, na edificação, no ensino e na organização dos crentes.

«Profeta» é alguém que age e se expressa como mensageiro de Deus. No livro de Atos dos Apóstolos, várias figuras são referenciadas com esta qualidade (capítulos 11, 13, 15 e 19). Paulo reconhece a profecia como carisma ativo nas igrejas do seu tempo. Também na história cristã posterior, alguns grupos e igrejas reconheceram nalgumas personalidades esta qualidade. Mas tem havido prudência na sua atribuição, dada a consciência da sua excecionalidade.

«Apóstolo» significa «enviado» e, apesar de a sua obra ter de ser reconhecida também pela igreja, acreditamos que é alguém escolhido por Deus para realizar grandes feitos em seu nome. Além dos doze escolhidos diretamente por Jesus, e de Paulo, são igualmente chamados apóstolos outras figuras referidas no Novo Testamento (seguramente, Barnabé, Apolo, Silvano e Timóteo). Depois destes, certas personalidades poderão receber este qualificativo de determinadas igrejas ou grupos de crentes, mas, em certo sentido, numa aceção analógica relativamente àqueles que Jesus escolheu diretamente (e em que se inclui também Paulo).

«Doutor» (didaskalos em grego) é alguém a quem se reconhece qualidades excecionais na exposição das Escrituras. É defensável que este dom seja considerado um só com o do pastorado (como parece sugerir Efésios 4:11). Paulo refere também os evangelistas, cujo ministério parecia dirigir-se aos pagãos, pelo que podemos compará-lo com os obreiros ou missionários criadores de novas igrejas, distintos dos apóstolos.

Os ministérios formais em ambiente eclesial

De todos estes carismas e ministérios, vimos que pressupunham o reconhecimento da igreja para não serem apenas a manifestação de vocações pessoais. No entanto, a sua natureza é, em grande medida, informal, pois a igreja, embora beneficie do seu reconhecimento, não os mantém regularmente organizados nem nomeia pessoas para os exercer. Eles têm um carácter excecional ou invulgar e distinguem-se dos ministérios de nomeação eclesial, de que fazem parte, nomeadamente, o presbiterado e o diaconado. Este segundo tipo de ministérios na igreja será abordado num artigo do próximo número deste boletim.

[Continua]

terça-feira, novembro 08, 2016

PO:LIS:BOA (II)

Um happening com a senhora agente


A minha perspetiva pedonal (de peão, isto é, de alguém que faz a sua «guerra» urbana diária sobretudo a pé) teve há umas semanas um happening com uma agente da Polícia Municipal. Quis vê-lo como sintomático de muita coisa.

A senhora agente estava de manhãzinha no troço da avenida da República, ainda e sempre em obras, junto à estação de Entre Campos. Dirigi-me a ela para a alertar que os separadores de plástico, colocados no início do quarteirão, para improvisar uma passagem para peões, roubando um pouco à estrada, estavam todos desalinhados, não permitindo a travessia em segurança até ao passeio (ou ao que restava dele).

A resposta instintiva da agente foi qualquer coisa como «Mas o senhor tem de perceber que isto está em obras». Ela não ouvira bem o que eu lhe disse e – julgo eu – não percebeu o alcance da sua atitude, mesmo depois de ter entendido aproximadamente o que eu lhe queria dizer. Ela estava sobretudo a certificar-se de que tudo corria bem entre a obra e os automobilistas. Era o que a posição dela naquele cenário dizia de todas as formas.

Os peões, com ou sem passagens seguras no meio de toda aquela confusão, seriam um género de figurantes que não têm propriamente um papel a desempenhar nem merecem muita atenção. Ora, os peões eram – apenas – os elementos fisicamente mais vulneráveis e em maior perigo naquele cenário. Mas a senhora agente não tinha claramente interiorizado esse facto na forma como via o que ali se passava e como desempenhava a sua função. Se tivesse, teria logo querido saber onde estava e como se encontrava aquela passagem perigosa de que lhe falei.

Tudo o que obtive foi uma promessa vaga de que iria lá ver «logo que possível» (quando a abordei estava a conversar com outro agente). Tive de ir apanhar o comboio e não faço ideia se lá foi ou não, mas ainda ouvi o esclarecimento de que arrumar os separadores não era com ela, mas com os responsáveis da obra. Não me passou pela cabeça tal coisa, mas, mais uma vez, não era nada claro para aquela agente que uma função natural que aquela farda lhe impõe é zelar em absoluto pela segurança das pessoas que estão na área sob o seu policiamento – e que os peões eram, naquele cenário, as mais vulneráveis das pessoas que por ali passavam.

A obrigação dela era alertar imediatamente os responsáveis da obra para a situação de insegurança em que os peões estavam a ser colocados e providenciar a resolução do problema o quanto antes – nem que a obra tivesse de ser interrompida por uns minutos. Posso estar a ser injusto, mas o que pareceu é que a senhora agente entendia a sua missão mais como protetora da obra (prevenindo a possível interferência do trânsito automobilístico na mesma) e do bom curso dos trabalhos, quiçá com vista mais ou menos consciente nos prazos de execução, do que como representante, protetora e agente dos direitos dos munícipes. Direitos que incluem a segurança física.

Neste episódio, vejo duas coisas distintas. Por um lado, uma Polícia Municipal que faz jus à imagem antiga do agente só interessado nas multas de trânsito que permitem apresentar serviço e dar mais renda à Câmara Municipal, ou seja, um governo municipal autocentrado, sem cultura de serviço fora dos exercícios retóricos; por outro lado, mais uma faceta da situação de menoridade de direitos de que em Lisboa gozam os munícipes enquanto peões. Voltaremos mais vezes nesta coluna a esta segunda situação.

Perante situações destas, não tenho qualquer dúvida de que devemos ser insistentes, dizendo a agentes como aquela o que devem fazer, as vezes que for necessário. Cada um tem de fazer o que está certo sempre que for necessário. É a única forma consequente de não desistirmos da cidade, de não a entregar de bandeja, sem luta, ao monopólio funcional dos incompetentes e dos abusadores – com farda e sem ela, com crachá da Câmara Municipal ou sem ele.

terça-feira, novembro 01, 2016

PO:LIS:BOA (I)


A melhor forma de vida

Nasci em Lisboa, na Avenida António Augusto de Aguiar (Clínica Cabral Sacadura). O meu pai era madeirense, mas veio para Lisboa na juventude, para estudar e trabalhar. A minha mãe, embora nascida em Cascais, viveu a maior parte da sua vida de solteira em Lisboa (Avenida Almirante Reis e Avenidas Novas) e aqui também se formou em enfermagem. Foi em Lisboa que os meus pais se conheceram. Depois das andanças pelo Ultramar (o meu pai era oficial do Exército), vivi sempre perto de Lisboa (em Oeiras e, mais tempo, em Cascais), mas comecei a fazer a minha vida na capital desde que em 1987 entrei na universidade. Resido nesta cidade desde 2004 e, uns anos antes, foi aqui que conheci a minha mulher. Sinto-me lisboeta, sem qualquer sombra de dúvida. Adoro viver em Lisboa, embora sinta que pudesse viver igualmente bem noutras grandes cidades. Lisboa tem especificidades de que gosto mais ou menos, mas é através dela que participo da experiência universal e milenária da vida em grandes urbes – com a convicção de que é a melhor forma de vida.

Há alguns anos (na verdade, há já mais de um bom quarto de século) fui o que eu próprio chamava “um ruralista”. Acreditava que a vida rural era mais saudável, mais virtuosa e mais potenciadora de felicidade do que a vida em cidades. No entanto, nada na minha infância ou adolescência, sempre passadas em cenários urbanos ou suburbanos, me permitia ter essas ideias a partir de experiência vivida. Antes de fazer 20 anos até escrevi um género de manifesto, inspirado num contacto literário em segunda mão com o grupo de Andrew Lytle («Os Desterrados», Diário de Notícias, 19.01.1988, supl. DN Jovem). O meu conceito de ruralidade era todo abstrato, literário ou ideológico, menos apoiado em impressões de curtas viagens do que em imagens de filmes e construções mentais – era, ironicamente, um “mito urbano”, uma fantasia projetada no tempo histórico sem qualquer relação com uma perceção refletida da realidade passada ou presente.

Bastante mais tarde viria a descobrir que a satisfação estética e sensorial procurada no utopismo “naturalista” e paisagístico, implícita no ruralismo (pelo menos naquele que era o meu), tem muito mais possibilidades de aplicação nos jardins em espaço urbano do que nas grandes extensões do espaço rural – sobretudo se pensarmos no tipo de jardim inglês (oposto ao geometrismo do jardim francês), que procura “copiar” a Natureza, até “melhorá-la” esteticamente, mas domesticando-a. O jardim urbano, que, desta forma, pode ser visto como uma aplicação da noção estética de Aristóteles, mostra como a cidade transforma e humaniza o espaço. Os jardins botânicos e zoológicos participam deste utopismo (são versões “conservacionistas” do mesmo) – mas são também criações das cidades.

Com o passar dos anos, foi a História que me foi despertando para a importância das cidades como espaço de plena realização do ser humano. Obviamente, este novo olhar sobre as cidades implicava ter em consideração o que de menos agradável há e houve nelas – mas implicava também olhar dessa forma para o espaço rural. Um elemento “disfuncional” na minha ideia anterior de ruralidade era o conhecimento histórico que tinha da atratividade das cidades para as populações rurais, mesmo que a reduzisse a miragem a que sucumbiam os mais “fracos” de carácter. É evidente que esse juízo romântico não resistiu a um conhecimento mais aprofundado das motivações económicas daquela atração. E eu ainda nem estava desperto para a abordagem desta problemática da perspetiva mcneilliana – das cidades como sorvedouros mortais de migrantes rurais até à era da vacinação massificada. W. H. McNeill explorou extensivamente essa temática no seu livro, já clássico, Plagues and Peoples (1976), mas de que se pode ter um “cheirinho” no seu ensaio «Cities and Their Consequences» (2007).

Uma perspetiva histórica mais informada da relação do Homem com o meio ambiente também foi importante para a alteração da minha perceção das cidades. A par de W. H. McNeill, que me deu uma consciência global e cosmopolita da condição humana no tempo e no espaço no seu ainda e sempre magnífico e completo The Rise of the West: A History of the Human Community (1964, reed. 1991), foi fundamental para mim a visão de longuíssima duração da abordagem histórico-biológica de Alfred W. Crosby em Ecological Imperialism: The Biological Expansion of Europe (1986). Este autor mostrou-me como os grupos humanos sempre alteraram os ecossistemas em que se estabeleceram, por regra profundamente, e que a “ruralidade” colocada nesta perspetiva era uma alteração do meio ambiente historicamente construída e não tão distinta do ambiente urbano como à primeira vista podia parecer. Em relação ao espaço rural, as cidades aparecem, ao longo da história, mais como um tipo de povoamento diferenciado (concentrado) do que como uma descontinuidade artificial em relação à restante ocupação humana do espaço geográfico. O povoamento disperso caracteriza o “campo” e o concentrado a “cidade”.

A experiência histórica de viver num espaço concentrado surgiu-me rapidamente como desafiante e cheia de possibilidades.

Não que os riscos não estejam lá. McNeill realçou a facilidade de transmissão de vírus onde os seres humanos se juntam em espaços de grande densidade populacional; mas, de acordo com a chamada “lei de McNeill” (apresentada em Plagues and Peoples), as populações urbanas assim massacradas rapidamente se tornavam agentes coletivos de domesticação desses perigos biológicos para a espécie e ganhavam uma resiliência que explica boa parte da evolução da civilização até aos nossos dias. A revolução da vacinação massificada no século XX tornou depois as cidades em espaços mais aprazíveis para quem vinha do “campo” – e, na verdade, para toda a gente. Mas, naquele século, outros perigos foram criados, mais ou menos involuntariamente, pela tecnologia bélica (que tornava as cidades alvos preferenciais da guerra total) e, mais corriqueiramente, pelas boas intenções ou obsessões totalmente humanas dos reguladores e dos planeadores urbanos. O economista sueco Assar Lindbeck escreveu um dia que a regulação do mercado de arrendamento era a segunda forma mais eficaz de destruir uma cidade – a seguir a um bombardeamento aéreo. E Jane Jacobs, no seu imortal Death and Life of Great American Cities (1961), explicou com perspicácia como a planificação urbana obcecada com a funcionalidade abstrata pode tornar as cidades disfuncionais para os seus habitantes concretos. Mas as cidades sobreviveram a todos estes tipos de perigos – aos últimos, sobretudo com o senso comum e a espontaneidade do “viver habitualmente”, que são a forma mais eficaz de resistência às planeadas pressões dos disciplinadores administrativos.

A propósito da espontaneidade do “viver habitualmente” em cidade, muito haveria a dizer sobre o papel humanizador e possibilitador da vida urbana desempenhado pelo comércio de rua. Este fenómeno económico urbano, que é uma complexa teia de iniciativas individuais e relações de mercado, não é planificado por ninguém e é o que de mais funcional pode haver numa grande cidade. As lojas em piso térreo e abertas para a rua são uma conquista civilizacional em que nem pensamos. Já era assim em todas as cidades romanas, que são as que nos deixaram vestígios arqueológicos mais eloquentes. As lojas de víveres, de roupas, de serviços, de consumo, de o que quer que seja, são não só o esteio económico da vida urbana, disseminado por absolutamente todas as ruas de qualquer grande cidade, mas também a mais forte e extensa rede de sociabilidade e contacto humano dentro do espaço urbano. O comércio vai até à mais pobre e recôndita rua, como nenhum esforço planeado saberia fazer. A sua presença e a forma como se anuncia, virando-se para a rua com tabuletas, montras, esplanadas, dá cor e sinais de vida às artérias e aos bairros, mesmo os mais pobres ou sombrios. O conceito de montra, em que o comerciante, com arte ou método, comunica a quem passa o que vende – e contribui para embelezar e enriquecer de diversidade os percursos de quem calcorreia cada rua –, é uma das glórias da cidade.

A diversidade patente no comércio é um indício muito visual de que as cidades, pela concentração populacional, favorecem a especialização associada ao processo de divisão do trabalho explicado por Adam Smith, mas também a consolidação social da pluralidade de crenças, gostos, opções e modos de vida, que dão aos seus habitantes possibilidades viáveis e acrescidas de sociabilidade fora da família e da vizinhança. Esta é uma das razões mais claras para as cidades serem consideradas um espaço de liberdade – porque as escolhas são mais amplas e realmente viabilizadoras da autodeterminação do indivíduo. Mas aquelas diversidade e concentração foram igualmente a fonte de uma recriação do trabalho, assente já não só em ofícios que teriam um futuro industrial, mas em profissionais de serviços múltiplos que foram revelando uma civilização cada vez mais talentosa e capaz de gerar um refinamento crescente da vida comunitária e privada.

A arquitetura urbana não deixa de ser uma analogia construída desta criatividade institucional que foi paralela da especialização económica e cultural. No seu desenvolvimento técnico, estilístico e monumental, é patente como a criatividade humana encontra na cidade o “ecossistema” adequado para prosperar e se fixar no espaço, reinventando-o e até multiplicando-o onde ele mais escasseia – daí a aventura tipicamente urbana de construir em altura. Essas possibilidades arquitetónicas, aliadas à concentração populacional, explicam a forma material de instituições eminentemente urbanas e tão diversas quanto os hospitais, as universidades, os teatros, os clubes desportivos, as grandes empresas ou as grandes áreas comerciais que se conceberam – como as antigas ruas da Baixa – numa densa «cidade» de oferta comercial concentrada.

As cidades são as pessoas que as habitam – e, como J. Jacobs bem viu, devem ter a “dimensão” dessas pessoas. Não se trata de uma dimensão territorial, mas de uma dimensão sensória e de raio de ação, à escala do indivíduo. As ruas, as artérias das cidades, devem ter residentes e permitir a circulação das pessoas a pé, sem que isso obste a que circulem veículos e a que outras pessoas aí trabalhem. Ruas sem habitantes nem peões, ou sem lojas, são o começo do inferno – isto é, da morte da cidade. Ter peões significa ter passeios e ter habitantes significa que aqueles têm de ser amplos e seguros para crianças e idosos, que não podem viver confinados ao interior dos edifícios. Os parques e jardins são ótimos, mas são outra questão.

A presença dos idosos nas ruas é, aliás, um fator fundamental para a manutenção das relações de vizinhança no espaço urbano, pois são eles quem tem mais tempo para as cultivar no dia-a-dia na área onde vivem, transportando um historial de conhecimentos e relações pessoais que facilita a apropriação do espaço. Como ensinou J. Jacobs, tanto quanto as lojas de rua, estes residentes idosos ajudam numa função descurada mas vital de «vigilância» informal que põe em sentido «amigos do alheio» e praticantes de violência pública ou privada. É uma demonstração de como as cidades precisam de residentes e de comércio em cada rua para serem espaços aprazíveis e seguros.

O governo municipal, tal como o governo central, pode ser o maior inimigo desta escala humana da cidade. Ele concentra o poder de agir coletivamente a uma dimensão que pode amplificar desastradamente a propensão humana para o disparate – sobretudo quando lhe falta ponderação e humildade ou abundam o entusiasmo e a prepotência. Talvez seja abusivo considerar o governo municipal outra das glórias urbanas, mas, mesmo sem discutir a sua origem, é indiscutível que as cidades se adaptaram bem a ele e deram um contributo fundamental para a sua evolução.

O governo da cidade sempre tendeu a ser coisa de poucos, permeável a interesses fortes e ativos e a ser submisso ao poder central. É isso que explica o potencial que o entusiasmo ou a prepotência dos decisores nas questões públicas têm para fazer estragos na vida dos outros habitantes da cidade. Essas decisões condicionam e podem destruir aquilo que os habitantes sabem fazer por si, nas suas relações económicas e de sociabilidade. O controlo democrático daquelas decisões, mesmo que por entrepostos representantes eleitos, tem e terá sempre limites de eficácia, mas é uma garantia valiosa. Outro mecanismo limitador dos estragos potenciais da concentração do poder é a descentralização – que na cidade portuguesa tem na paróquia ou freguesia urbana um recipiente obvio. Dada a sua dimensão de maior proximidade às relações de vizinhança e aos ambientes de rua, a freguesia pode ser mais eficazmente controlada por munícipes motivados pela defesa dos seus interesses e pontos de vista – e este controlo democrático mais localizado pode tornar as freguesias um contrapeso limitador e questionador do governo municipal e da sua articulação com os interesses fortes mais ou menos organizados.

Uma grande cidade como Lisboa, com um porto aberto ao mar, sempre deu aos seus habitantes uma possibilidade fática ou simbólica de saída – o que é uma condição acrescida de liberdade. O porto é também, claro, um meio e um sinal de abertura ao mundo, sobretudo ao restante mundo urbano, e, portanto, um pólo económico e cultural de cosmopolitismo. Quem diz porto, diz hoje grande central ferroviária internacional ou aeroporto. A entrada e a saída (do residente ou do viajante) é fundamental para explicar a condição humana e civilizacional da cidade; esta, para ser a melhor forma de vida, não pode ser autárcica. As pequenas polis que assim viviam, fechadas sobre si mesmas, não eram verdadeiras cidades como hoje as entendemos. Foi a comunicação através do mar ou a sua integração numa vasta rede de trocas, favorecida pelos espaços imperiais da Antiguidade, que fez de alguns desses aglomerados realidades em que já reconhecemos cidades (urbes).


Cada cidade é sem dúvida única no seu nome, na sua história, nos seus edifícios e praças emblemáticas, em certos hábitos dos seus habitantes – e, por isso, portadora de uma identidade inegável; mas, para ser cidade, não tem apenas as características gerais aqui referidas, encontradas também nas outras cidades. Para quem a habita, cada cidade é a realidade mais genuína e tangível da civilização – assim como cada um o é para si próprio da humanidade.

segunda-feira, outubro 10, 2016

Uma nota económica e política sobre a emigração

Já vimos neste blogue, em «O "efeito 2009" amplificado», que a evolução do saldo natural é a causa estrutural verdadeiramente consistente na origem da diminuição da população residente em Portugal.

Convém agora olhar para o gráfico da evolução da própria emigração entre 1976 e 2015. Trata-se de dados do INE apresentados pela Pordata e graficamente editados pelo L&LP:


Vê-se aqui que a emigração temporária, depois de um comportamento "errático" na década de 90 (uma época considerada de afluência), tem uma tendência claramente ascendente desde o início do presente século - quando se inicia a estagnação do crescimento da economia que nenhum demand management (de grandes custos para os contribuintes) conseguiu inverter. A subida de 2011 (ano da quase-bancarrota do Estado português, do resgate da Troika e do Programa de Acompanhamento), embora mais pronunciada, não deixa de vir na continuidade de uma tendência anterior já bem marcada. Trata-se de uma aceleração de uma tendência que, aliás, inverteu abruptamente em 2015 (coincidência com a retoma dos indicadores económicos já patente durante esse ano?).

Quanto à emigração permanente, o ano de 2008 (ainda na legislatura de maioria absoluta do PS) marca o início, logo bem vincado, de uma tendência de subida. Os efeitos da crise internacional, ainda fresca nessa data e com as consequências da crise da dívida soberana ainda não manifestadas, não podiam ser a causa desta subida. As causas eram, seguramente, internas. O crescimento não arrancava e o desemprego já subia para níveis preocupantes nesse ano.

Assinalado a vermelho no gráfico está o ano de 2010, que é realmente o início da subida vertiginosa da emigração. Estava-se no fim do "consulado" Sócrates e colhiam-se os frutos da sua política económica desastrosa. Atribuir ao governo de Passos Coelho a subida da emigração é, pois, inconsistente com os dados existentes. Claro que houve uma crise, um programa de austeridade e um aperto financeiro e de expectativas - mas que já estavam declarados antes das eleições de 5 de junho de 2011. A subida mais acelerada da emigração nesse ano deveu-se só ao que aconteceu a partir do segundo semestre de 2011? Really?

Logo em 2013 verifica-se que a emigração permanente desacelera muito, crescendo já muito pouco; em 2014 começa a cair; em 2015 parece iniciar um "mergulho". Tudo durante o governo de Passos Coelho.

O que aconteceu foi, pois, muito claro: no fim da legislatura em que Passos Coelho liderou o Governo, pôde-se constatar que a grande subida da emigração, iniciada durante os governos de Sócrates, estancou e inverteu decididamente, registando em 2015 uma descida marcadíssima.

O que terá motivado isso? O fim das oportunidades no exterior? A perspetiva da chegada ao poder de António Costa, que levou milhares de pessoas a cancelarem o "salto"?

Give me a break! Ou melhor, Give Passos Coelho a break...

sexta-feira, outubro 07, 2016

O «efeito 2009» amplificado

Foi em 2009 que, pela primeira vez na era dos recenseamentos modernos (iniciada em 1864), se registou em Portugal um saldo natural negativo. A tendência já estava bem anunciada desde 1970  veja-se o gráfico em baixo.



O recenseamento geral da população de 2011 já confirmou amplamente esta nova realidade de o número de óbitos superar o número de nados-vivos.

Os dados relativos a 2015 (total nacional), publicados este verão, confirmam que a tendência se mantém e acentua. O saldo natural português de 2015 é – 23 011.

Quanto à população residente, estes dados de 2015 exibem, relativamente a 2011, um decréscimo de quase duzentas mil pessoas. Os dados do saldo natural (que em 2011 já era de – 5992) mostram que esta diminuição da população residente se deve em boa medida à diferença registada entre nados-vivos e óbitos. O efeito da emigração, por importante que seja, é mais conjuntural e não pode obscurecer a tendência de envelhecimento da população, que, por si mesma, já começou a fazer regredir o total de residentes. [Sobre a subida da emigração, ver Uma nota económica e política sobre a emigração.]

A evolução do saldo natural de 2011 para 2015 é expressiva: o resultado negativo quase quadruplica em três anos. Se a progressão nos próximos anos for proporcional a esta, poderemos registar um saldo natural assustador no próximo recenseamento geral da população (2021).

O mapa seguinte mostra os dados do saldo natural de 2015 desagregados por NUTS III no continente e por concelho nas regiões insulares.


A tendência negativa regista-se na maioria esmagadora do território continental, sendo a Área Metropolitana de Lisboa a única exceção significativa (com um saldo positivo de 1071 nados-vivos acima do número de óbitos). Na NUTS III Cávado (região de Braga), o saldo positivo é de apenas 151. Em todo o restante território continental, o saldo é negativo, sendo os valores de mais de 1000 óbitos sobre os nados-vivos tão frequente no Norte quanto no Sul e quase tão frequente no Litoral quanto no Interior.

As NUTS III do continente mais envelhecidas têm, praticamente todas, saldos naturais muito negativos, o que mostra que o envelhecimento está aí a acelerar muito rapidamente. Basta dizer que, em 2015, na NUTS II Centro o saldo natural é de – 11 375 e no Alentejo de quase – 5000. A famosa desertificação do Interior vai acentuar-se.

À exceção da ilha de São Miguel (onde, no entanto, alguns concelhos com valores positivos estão já perto do zero), a tendência nas regiões insulares é já claramente negativa. Antigos focos de rejuvenescimento relativo da população, como eram a região de Braga e as regiões insulares, estão a «apagar-se».

Para mais informações sobre a população (dados de 2014 e 2015), ver aqui.

segunda-feira, setembro 26, 2016

Em defesa dos mal amados distritos

No ano passado entrou em vigor uma nova versão das NUTS (Nomenclatura de Unidades Territoriais para Fins Estatísticos) que estava já delineada desde 2013 (daí serem denominadas NUTS 2013). Desde o início do presente século é, pelo menos, a terceira versão desta nova divisão do território que veio substituir os velhos distritos instituídos pela reforma administrativa de Mousinho da Silveira, só corrigida em 1930 com o desdobramento do antigo e extenso distrito de Lisboa nos "novos" distritos de Lisboa e Setúbal.


Na versão de 2001/2002 das NUTS III, era bem visível a norte o desmembramento dos velhos distritos (mapa à esquerda).

As alterações das NUTS III ora são para retalhar o País de forma a colocar determinadas regiões abaixo das médias estatísticas europeias, mantendo-as candidatas a fundos comunitários, ora, alegadamente, para cumprir critérios da União Europeia quanto à uniformidade populacional de cada unidade territorial. Desta vez, as NUTS III correspondem também às entidades ou comunidades intermunicipais instituídas pela Lei n.º 75/2013 de 12 de setembro, artigo 80.º e ss. (Diário da República 1.ª série n.º 176, 12.09.2013) – entidades cuja constituição compete às câmaras municipais (artigo 80.º-§1), mas que é o governo central que define e estabelece em lei (!). O certo é que essas alterações das NUTS III criam instabilidade numa divisão intermédia do território que era suposto ser expressão de uma realidade regional que, na opinião dos seus detractores, os distritos desfiguravam. Por outro lado, esta frequente alteração das NUTS III cria descontinuidades nas séries estatísticas cuja maior fiabilidade e rigor são, também alegadamente, a sua razão de ser.

Na nova versão das NUTS III para o território continental, não deixa de ser surpreendente, na sua configuração, o indisfarçável reaparecimento dos velhos distritos:


A NUTS III "Alto Trás-os-Montes" voltou a dividir-se naquilo que eram exatamente as partes norte dos distritos de Vila Real e Bragança. A sul do Douro, da cacofonia instituída em 2001, reemergem agora, quase reconstituídos, os antigos limites dos distritos da Guarda, Viseu, Coimbra e Castelo Branco. No vale do Tejo e mais a sul, a artificialidade da divisão de 2001 era mais notória, pois era mais clara a proximidade com a antiga divisão distrital, mais município para cima, menos município para baixo. Aqui, afinal, a reforma de Mousinho parecia impor menos uma "artificialidade administrativa".

A resistência surda de uns quantos aos distritos de Mousinho da Silveira é antiga em Portugal. No início do século XX houve vários candidatos a descobridores das "regiões naturais" do território continental (de que as nunca concretizadas "províncias" do Estado Novo foram uma das versões). Os estatísticos atuais, criadores das NUTS, parecem ser herdeiros desse etno-ecologismo administrativo e fantasioso, a que juntam o ideal da uniformidade populacional (numérica) - que não passa de outra miragem e alimentará inúmeras futuras alterações deste recorte do território.

Como se pode ver no mapa de baixo, aquando da sua instituição (ou perto disso, ainda em 1864), os distritos contemplavam uma diversidade de ocupação populacional do território expressa em diferenças acentuadas de densidade populacional:


Os distritos do interior sempre foram, claramente, menos densamente povoados do que os do litoral. Não é verdade, pois, que os distritos tenham sido "ultrapassados" por uma realidade em movimento. Eles nunca quiseram ser expressão de unidades populacionais aproximadas (e muito menos, obviamente, de artificiais unidades culturais regionais). A sua lógica sempre foi a de criar uma estrutura administrativa intermédia, dependente do poder central de um pequeno país, mas bem articulada com uma estrutura municipal vigorosa e, essa sim, ligada a identidades locais genuínas. Aliás, a reforma do século XIX que reduziu o número de concelhos (de 816 em 1827 para 351 em 1836) pretendia, entre outras coisas, criar um poder local viável e capaz de atrair e gerir competências alargadas.

Aos distritos, independentemente das flutuações populacionais, ficava reservada uma função variada e fundamental: distribuir com uniformidade territorial (e não estritamente populacional) a presença do poder central através de governos civis; promover uma rede intermédia de cidades (as capitais de distrito), dotando-as de infraestruturas e instituições especializadas que dificilmente poderiam estar disseminadas a nível municipal (forças de ordem, arquivos, tribunais, escolas médias, etc.); e, não menos importante, uma base territorial intermédia para organizar a informação estatística. Ainda hoje, a divisão distrital funciona também como recorte dos círculos eleitorais para eleição do parlamento nacional.

A pressa com que estes atributos políticos e administrativos dos distritos foram, nos últimos anos, diminuídos, ou mesmo aniquilados (caso dos governos civis), deixa um vazio de articulação entre o poder local e o poder central que não permite vislumbrar que ideia do País e do Estado têm os atuais reformadores liliputianos - tão apressados em substituir a grande reforma administrativa da época liberal.

As chamadas comunidades intermunicipais confundem duas coisas distintas: a constituição de federações de municípios para fins diversos (e que, já prevista na Constituição, realmente, deve ser da iniciativa daqueles e de “geometria variável” e voluntária) com a divisão administrativa que existe do ponto de vista do interesse do poder central e do exercício da soberania sobre o território.

domingo, setembro 25, 2016

Cities and Their Consequences (William H. McNeill)

[The American Interest, vol. II, n.º 4, Primavera (Março/Abril), 2007, pp. 5-12].


The rise of cities shaped Western history. Now it may be reshaping the world.


Two notable demographic landmarks recently attracted more attention than usual, but not as much as they deserve. One was the census authorities’ conclusion that the population of the United States surpassed 300 million sometime this past October, having risen from 200 million in a mere 39 years. Rapid population growth is old hat, something most people have come to expect for the world long into the future. It is for this reason that the second landmark—that more than half the earth’s population now lives in cities—is so important.

Far less familiar a fact than world population growth is that cities seldom reproduce themselves. Since most of the accelerating urbanization going on today is happening in what used to be called the Third World—the same places where population growth has been most rapid in recent decades—this implies a check to population growth in times to come. This will be so even in the absence of some ecological disaster that might otherwise provoke a swift and sudden reversal of population growth.

Urbanization is about more than simple demography, of course. Beyond sheer numbers of people, cities have affected significantly how human populations have organized and governed themselves, and how their peoples have related to each other. No doubt they will continue to do so.

Civilization

To be sure, cities are old. By becoming urbanized about 5,000 years ago, a small proportion of humankind launched itself on a new course. What we call “civilization”—a word derived, after all, from the term for a city—was the initial result. For millennia, all civilizations depended on a division of labor between a rural majority who fed not only themselves but also city folk by parting with a share of their harvest in the form of economically unrequited rents and taxes. In return, farmers got an always imperfect protection from divine and human disaster thanks to the efforts of priestly and military specialists.

What made early civilized society viable was the fact that nearly everyone—up to 95 percent of the total population—lived in villages of no more than a few hundred persons. Such villages proved very hospitable to human reproduction, so much so that, most of the time, villagers raised enough children to keep their fields in tillage for generation after generation while sending surplus young people off to live in cities or, more seldom, to pioneer frontier lands whose local inhabitants were unable to drive them away. Since such permeable frontiers were transitory as a rule, migration into nearby cities was the more common response to the fecundity of rural life.

Having thus arrived, most immigrants to pre-modern cities found marginal jobs and soon died of infections, leaving few or no heirs behind. Rural demographic growth and urban decay never balanced exactly, varying sharply from place to place, year to year and decade to decade. But thanks to villagers’ resilience, in the long run human numbers tended to increase, despite innumerable local disasters and eras of depopulation that sometimes lasted for centuries.

Cities sometimes disappeared entirely, as in the Indus Valley after 1500 BCE and among the Mayans after about 1200 CE, only to revive when local populations recovered. But rural villages always survived because that was where familiar routines of work provided food year after year. No matter what the disaster—pestilence, war, crop failure or a combination of all three—survivors gathered together and resumed work in the fields, thus creating enough food to keep going, and sooner or later started increasing their numbers once again.

Sexual instinct, of course, lay behind the way peasant farmers sustained population growth the world over. But there were supplementary circumstances that made marriage and children necessary and natural. Division of labor between men and women was universal, so farming and housekeeping required daily collaboration between the sexes. Infants required extra effort from mothers, but that did not seriously interfere with their other work. Quite the contrary, women could attend to small children and perform everyday chores at the same time, and they were repaid from the start by infant smiles and babble, and soon by full-fledged speech and lively questions about everything children needed to know. Moreover, from a very early age children began to contribute to family income by undertaking tasks within their powers—gathering berries and other kinds of wild-growing foods, and herding geese and other small animals, for example.

As they grew older, children helped their parents with heavier tasks, indoors and out, until marriage, when their parents’ fields and other property had to be apportioned among a plurality of children. This meant sending some away to seek their fortunes elsewhere if sufficient land for their support was not available within village bounds. Dowry negotiations between families and the division of land and other resources among competing siblings could be contentious. But custom and a modicum of sibling solidarity usually forestalled crippling quarrels, making generational succession almost always peaceable.

More generally, custom cushioned personal interactions of every kind within each village, and however hard the work or variable the return, everyone knew what was expected of him or her at every stage of life in all ordinary situations. Resilience and continuity, both biological and cultural, were thereby sustained, ensuring human survival and long-term population growth.

By comparison, cities remained parasitical sideshows where specialized skills supported religious and military wealth and power. Nonetheless, little by little, voluntary exchanges of goods and service between cities and their hinterlands increased in range and scale. Consequently, one-way transfers of rents and taxes from villagers to city dwellers gradually came to be supplemented by more or less voluntary market dealings, whereby rural folk sold something they had made, grown or gathered, and bought things they could not readily make for themselves—metal tools, for example. The resulting specialization of labor increased wealth for all concerned, as Adam Smith later argued so convincingly in The Wealth of Nations.

Yet until about 1000 CE, such exchanges between town and country remained slight. Most of what farmers raised went into their own stomachs and those of their domesticated animals, and a portion always had to be saved for seeding next year’s fields. Rent and taxes took almost everything else. That was how the great majority of human beings subsisted in semi-isolated villages, where everyone knew everybody else, sharing good times and bad as harvests fluctuated, and as epidemics, wars and natural disasters came and went.

In a few special locations, however, where sea transport was easily accessible, commercial farming came into being at least as early as 600 BCE. Farmers along the shores of the Indian Ocean may have been the earliest commercial farmers, raising a variety of spices for sale in distant markets, but we have no records to establish confidently when the spice trade first arose. But we do have written records (and cargoes of sunken ships) to show that by about 600 BCE farmers living near eastern Mediterranean coasts discovered they could increase their wealth by raising grapes and olives and then exchanging wine and oil for greater quantities of grain than they could possibly raise on the land they farmed. That required shipping their harvest to places where wine and oil were not as easily produced, and convincing local rulers and landlords to collect enough grain from their subjects and tenants to pay handsomely for the wine and oil they wished to consume. Phoenician and Greek cities pioneered this sort of long-range marketing; it undergirded subsequent Greek and Roman history, knitting town and country together more closely than was usual elsewhere and imparting a commercial cast to classical society as a whole. Thereafter, the sale of wine and oil in distant markets within the Mediterranean was never disrupted for long, though prudent farmers always needed grain fields close by in case connections with distant buyers were interrupted.

A second and more massive conversion to market farming occurred in China, beginning about 1000 CE when the Song government decided to collect taxes in the form of cash. That decision compelled ordinary peasants to find something to sell in order to pay their taxes. By that time, thousands of barges and small sailing vessels floating up and down the rivers and irrigation canals of China had created a cheap and reliable internal transport system. Small differences of price for objects of common consumption—even of rice—thus made it worthwhile to carry everyday commodities long distances. Large-scale marketing of specialized crops ensued. Soon millions of peasants found it advantageous to buy the rice they ate and sell silk or some other specialized crop, thus assimilating their way of life to city folks’ long-standing dependence on buying and selling to gain their daily bread.

China’s wealth and skills shot upward as the advantages of specialization were unleashed on a massive scale, and other parts of the earth soon began to follow suit wherever safe and cheap water transport allowed. The Indian Ocean coastlands and Southeast Asia, together with the Mediterranean, Baltic and Atlantic shores of Europe, were the principal places where commercialized farming began to take off within the next two or three centuries.

But wherever it took root, commercial farming put serious strains on village solidarity as some families grew rich while others lost their land and were reduced to working as hired hands in others’ fields. Where transport was more expensive, landlords often monopolized sales and reduced local villagers to harsh economic dependency.

Few readily appreciate how deep the stabilities of village life were planted, or how recently those stabilities have been uprooted. Not until railroads cheapened transport in the world’s continental interiors in the second half of the 19th century did commercialized farming become general practice. And not until the 1950s did old-fashioned village styles of life everywhere begin to collapse due to the encroachment of urban contacts. In particular, radio and television, flaunting the charms of urban life, administered something of a deathblow to traditional patterns of village society wherever these instruments of modernity reached.

The Next Global Demography

The consequences of so recent a major break with the past have yet to be experienced in full. No one can be sure, but there are bound to be far-reaching consequences of the protective frame within which humans lived and died for millennia being swallowed by city-based ideas and lifestyles, and there are bound to be global political implications from the regional unevenness of the process. Urban lifestyles, which are manifestly diverse, rivalrous and even hostile to one another, are unlikely to sustain anything like the biological or cultural stability across future generations that used to prevail. The image of a breaking wave, cresting as it rushes against the shore, comes to mind as we contemplate the changes rolling out before us. Older forms of human society—peasant ways, with all their limitations and hardships—are being left behind. The future is surely going to be different. Exactly how different no one can yet say, but two principal factors appear to loom large at least in the short run.

One factor concerns the half of humankind still living on the land and still cultivating the soil. This half of humanity, overwhelmingly non-Western, is now increasingly aggrieved by poverty, monotony and hardship compared with the lure of urban wealth and comfort. These are the people who see their children hastening away toward the world’s cities in hope of improving their lives—more often than not only to meet disappointment in pullulating urban slums. Inhabitants of those slums, without regular jobs or reliable sources of income, constitute the other major human factor of our times. That human mass constitutes a pool of active discontent far more strategically located than rural dwellers, since their frustration and anger can readily be mobilized against oppressors living in city cores where everything they sought still glitters unshared and unattainable, temptingly close at hand. In short, the phenomenon of the subproletariat is being globalized amid technological conditions well-suited to the rapid spread of demagogic manipulation.

This precarious juxtaposition becomes further inflamed when ethnic and cultural differences divide the rich and privileged citizens from the slum dwellers surrounding them. Wherever urban population growth has flagged, as is now the case in approximately half the inhabited landscapes of the earth, cities cannot sustain themselves without attracting immigrants from across linguistic and cultural boundaries. Europe furnishes the best-known example.

Village autonomy has been eroding in the most prosperous parts of Europe ever since the Middle Ages, and France saw its population fail to reproduce itself after World War I. World War II generalized this phenomenon, breaking up village ways of life throughout central and eastern Europe (except among Albanians). Sharp declines in birth rates resulted as cheap and effective methods of birth control made it possible to engage in sex without risk of pregnancy. Simultaneously, medical novelties—most notably antibiotics, vaccination and pills to lower high blood pressure—lengthened lives, so populations grew older as children became fewer.

The decay of indigenous population, in turn, opened the way for the legal and illegal migration of millions of Muslims and other foreigners into European cities. In the beginning these newcomers retained their familiar ways, including birth rates far higher than those of the host population. But within a few decades, the strains of city living disrupted family patterns and other customary ways, yet without making immigrants into Europeans capable of merging individually and inconspicuously into their new homes. Segregated neighborhoods now widespread in European cities limit the possibility for children from different ethnic backgrounds to assimilate their behavior to a common norm, so something like a caste society has been emerging. All the tensions provoked by economic inequality, reinforced by outward differences in appearance and manners, are manifest. On top of that, fanatic religious hostility has found slender but real lodging in some Muslim circles, as recent acts of terrorism in Spain, Britain, the Netherlands and other European countries show.

All too obviously, the future is uncertain. The eventual disappearance of once-dominant ethno-linguistic groups may well lie ahead. But demographic trends can and do change, sometimes rather quickly, making prophecy risky beyond drawing the obvious conclusion that past patterns are no sure guide to the future. For example, villages can no longer be counted on to sustain human continuity because, with communication and travel as cheap and far-reaching as they have become, population decay in some places juxtaposed with continued population growth in others promotes massive migration [This phenomenon is described in Philip Martin, “Be My Guest Worker?”, The American Interest (Winter 2007).]. Populations may be drawn from villages so quickly as to undermine their demographic vitality. Even strenuous police efforts to stop migration are unlikely to succeed under such circumstances, since diminishing and aging urban populations need imported labor to maintain their standard of living.

The harsh polarity apparent in Europe is, however, exceptional. Different balances between diminishing and still-growing populations prevail in other parts of the world. In general, however, the more urbanized the populace, the more strongly population decline comes into play. At a time when crowded rural landscapes in Africa, Latin America and much of Asia swarm with millions of youths who are eager to try their luck in far away places, migration will surely increase to locales other than Europe—and with it the difficulties arising from cultural gaps between newcomers and host populations.

The extent of those difficulties will vary widely, however. Clearly, cultural gaps are less wide wherever the recipient society is itself a relatively tolerant and diverse place. In the United States, for example, we are not much aware of diminishing segments of society, even though our cities are quite as hostile to human reproduction as the cities of Europe have become. The main difference between Europe and the United States is that the American melting pot still functions almost as well as it did when Europeans were being turned into Americans in the 19th century. Latinos, so-called, are now the largest ethnic group undergoing assimilation, and new Asian arrivals seem well launched on the same path. (The most stubborn social divide in the United States still lies between blacks and whites, and a gang culture of defiance among some young blacks in America’s inner cities resembles the disaffection some young Muslims in Europe feel for their host societies. Language and religious barriers between blacks and whites in America are trivial, but skin color still divides, and moral residues from slavery and segregation linger despite all efforts to bridge the gap.)

Whether white Americans will accept the loss of their numerical predominance within the United States with equanimity remains to be seen. But as long as census statistics record a growing non-immigrant population, alarm is unlikely, even though most of that growth today comes from naturalized Latinos and other newcomers. Since about 1920, most Americans of European descent have been urbanized and, like everyone else in that circumstance, they are not reproducing themselves. If that continues, a tipping point could come within a few generations, and the ethnic balance within the United States will shift. But newcomers living in our cities encounter the same pressures inhibiting childbearing that affect other urban dwellers, so are most unlikely to continue to have as many children as they do on first arrival.

Other places where indigenous populations are not reproducing themselves include Canada, Russia, Japan, China and urban pockets in Latin America, India and even Africa. Resulting migrations in India and China occur mainly within national borders, so newcomers are less conspicuous and more easily accepted by long-established urban dwellers. Yet slums on the fringes of Indian and Chinese cities are vast, crowded and just as miserable as slums anywhere else. Ecological risks from polluted water, air and soil are also severe, and recent efforts to restrict births in both China and India have led to a marked surplus of boys over girls that will create unprecedented social and perhaps political problems as they reach marriageable age.

We can be sure that demographic upheaval now pervades both India and China, affecting all or almost all villages. Migration to cities in both countries is very rapid. Rural customs break down in their cities, too, and lengthened life spans create new problems for young and old. The future of these two countries, as well as of other very populous countries in similarly transitional demographic conditions (Pakistan, Mexico and Indonesia, for example), is sure to outweigh what happens elsewhere simply by dint of numerical size. Whether urban economic growth will provide tolerable conditions and useful work for hundreds of millions of rural migrants remains uncertain. And whether demographic readjustment will work itself out mainly within existing political frontiers, as hitherto, or project massive numbers beyond them in consecutive waves of migration is also unforeseeable. If European history is any guide, persistent rapid economic growth amid stable political circumstances generation after generation is a most unlikely prospect.

Nor can stability be assured in countries rapidly losing population. Russia, which as recently as 1914 had a vigorously growing rural population, has undergone truly catastrophic demographic decay since 1950. Unlike almost every other country on earth, life spans have shortened as birth rates plummeted, so that today about 700,000 more Russians die each year than are born.

The Russians’ path to their declining present is unique and cannot be explained merely as a consequence of post-Communist malaise. Collective farms imposed by force superseded villages in the 1930s, and the ensuing disruption of family life in rural Russia brought old-fashioned population growth to a sudden halt. For a few decades state planning ensured construction and industrial jobs for everyone who could be spared from agricultural work. But when the rural surplus of recruits for the labor force ran dry, due more to collectivization than to the ravages of World War II, more efficient use of manpower became imperative. State managers, however, proved incapable of making necessary changes as both population growth and productivity fell. Then, swiftly, amazingly, the Soviet Union broke up, and public morale broke down. Shortened life spans—presumably arising from excessive drinking, smoking and other bad habits—were an unexpected accompaniment. They accelerated the rate of Russian population decay, but did not cause it.

Even in lands where rural majorities still sustain population growth, big cities constitute demographic sinkholes, just as they usually have. As effective sanitation spread among European and American cities after 1880, some cities began to maintain their numbers thanks to lowered rates of infection and large numbers of immigrants from the countryside who brought high birth rates with them. Some U.S. cities are still doing so, but this was and remains the historical exception. Intensified exposure to infectious disease was the traditional reason why cities did not reproduce themselves, and in Africa, Latin America and Asia today infectious disease continues to play a key role in urban demography. Indeed, the global risk of pandemic disease has been vastly increased by rapid urbanization in places that lack basic health and sanitation infrastructures.

The Young and the Faithful

But it is the cost of raising children in all urban environments, not disease, that best explains why urban populations generally decline without immigrants from rural areas. Wherever adults go off to work in factories, shops and offices, and small children are not allowed to accompany them, who looks after the young? How can they be readied for gainful employment? Public education and pre-schooling are seldom available in urban slums, particularly outside Western countries, but occasionally even within them, too. Grandmothers and elderly neighbors can sometimes do the job, but extended family coherence is not as prevalent in cities, and often such caregivers are not available. Professionals of various descriptions must then be found. That renders the cost of children’s upkeep high, and the nurturing that such professionals usually offer rarely matches their large fees.

Even as children are more expensive in cities, they are less economically useful at an early age. There are few berries to be picked, no small domesticated animals to herd. There is a much longer wait until children can begin to contribute to family income in urban settings.

As long as children remain expensive in urban environments, and public institutions do not nurture children more comprehensively, urban reproduction will surely falter. And with it the ills of contemporary urban society—crime, drugs, alienation and youthful rebellion—will continue to distress us. The underlying reality is that we have not found any satisfactory substitute for village communities as nurturers of the young (and sustainers of the old). Most urban encounters are with strangers, and strangers do not nurture or sustain others; the size and mobility of city populations make that inevitable.

But the effort to recover stability like that of a rural community goes on, and in cities urban mobility permits like-thinking persons to come together and agree to enforce explicit moral standards of behavior among themselves. By far the most common and powerful basis for such voluntary associations is religious commitment. Yet the costs of religious commitment are also real, especially when it sets the community of believers against the rest of the surrounding society.

There is, in other words, a differential human geography to religion in traditional village life on the one hand, and in urban environments on the other. Consider that mere distance and infrequent communication once kept villagers safely apart from surrounding strangers. But that protective barrier crumbled when modern transport and communication brought frequent contact with strangers into nearly all the villages of the world. Urban religious sects can keep strangers at bay only by accepting one code of conduct for fellow believers while embracing different manners for dealing with outsiders. Shifting back and forth and reconciling differences between the two codes is bound to be awkward.

It also means that sectarian cohesion is under constant strain, for in urban settings the ubiquity of choice among beliefs becomes unavoidable. Joining a religious group becomes a deliberate act, departure a perpetual possibility. Lifelong stability and adherence to unquestioned, inherited custom, nearly universal in village life, is unattainable under such circumstances. Instead, the very fragility of bonds invites a fevered intensity among successful sects. Demanding more from true believers and dividing them more sharply from outsiders are what sustain urban sects as their leaders seek to make it more difficult to abandon fellowship. Is it any wonder, therefore, that what is often termed “fundamentalist” religion is overwhelmingly an urban phenomenon?

Can urban society on a global scale endure an indefinite multiplication of close-knit, sometimes fanatical sects? That is what the rapidly advancing urbanization of the planet may portend, with most of that multiplication occurring in its non-Western regions. Religion in urban settings need not be fanatical or violent, of course. Perhaps because their origins were not urban, all the really successful urban religions—Buddhism, Judaism, Christianity and Islam—have managed to inculcate peaceable behavior toward outsiders. But this took time. Governments upholding certain religions have often persecuted dissidents, and sects within each religion have resorted to violence, as well. Even where such behaviors have become rare, however, religious groups operating in urban settings still have not found a way to mimic the nurturing and supportive roles that came naturally to semi-isolated villagers. American Protestant megachurches notwithstanding, no cakes of custom within which millions of strangers can comfortably conduct their lives have yet shown up. Perhaps they never will.

The sociological question of whether we will learn in time to make cities truly thrive is now matched by questions about the ecological sustainability of the high-energy lifestyle prevalent among us. The long-term survival of high-tech urbanized humankind thus remains in question. But, of course, the fact that human societies have never long been able to reproduce themselves while living in cities does not mean they never will. Humans are intelligent and amazingly adaptable, after all. Who could have foreseen our initial, triumphant expansion around the globe beginning 100,000 years ago? Or the material comforts of daily life we take for granted, yet were unknown a mere century ago?

One thing we do know: Innovations that really make urban living sustainable will spread rapidly if they arise anywhere on the face of the earth. In the meantime, the problems caused by the increased but uneven urbanization of the planet will challenge us all. They will do so in some ways we can reasonably guess at on the basis of past experience, and in many ways we probably can’t. We can only wait, and keep looking for promising new ways of living well and peaceably with those around us, both near and far.


[Também de W. H. McNeill: An Emerging Consensus About World History?]