sexta-feira, junho 17, 2016

Primeiro e-book L&LP


Para iniciar (e antecipar) as comemorações dos 500 anos da Reforma protestante (que decorrem durante o ano 2017), o L&LP publica agora o seu primeiro e-book, O Protestantismo Português: História e Problematização.

Trata-se de um livro de 254 páginas, que pode ser descarregado livremente. Tem o ISBN 978-989-20-6785-8.

Destaque da introdução:

«Este livro é uma recolha de textos dispersos já publicados, mas inclui também textos originais. Ao agrupá-los em três partes pretendi que pudessem ser lidos sequencialmente e que constituíssem um todo coerente, dado que as diferentes temáticas se tocam e completam. No geral, o livro pretende ser tanto informativo quanto reflexivo – quer apresentar dados históricos, divulgando-os junto de um público protestante que quase sempre os ignora, mas também problematizar o que é e tem sido ser protestante em Portugal.»

quarta-feira, junho 08, 2016

A soberania de Deus e o sofrimento do justo

Desenho de William Blake, ilustrando a acusação de Zofar,
Elifaz e Bildade contra Job.

Grão de Trigo, Nov. 2015, pp. 2-3 (artigo baseado na pregação de 30.08.2015 na IEL).

Os crentes sinceros em Deus podem ser abatidos pelo sofrimento. O Antigo e o Novo Testamentos concordam que essa pode ser a prova de fogo para a nossa fé.

Na primeira carta de Pedro há um trecho relativo ao sofrimento do crente (1 Pedro 4:12-19). Um «fogo ardente» pode surgir e pôr-nos à prova, apesar de sermos cristãos. Pedro aconselha que esse sofrimento seja encarado sempre com uma atitude de glorificação de Deus. Para o apóstolo parece claro que podemos sofrer segundo a vontade de Deus (v. 19) – não porque Deus se compraza no nosso sofrimento, mas porque esse sofrimento faz parte do Seu plano para nós e é uma prova pela qual temos de passar. A sujeição a essa prova parece ser vista por Pedro como parte do juízo de Deus, um juízo universal que poderia até começar pela Sua casa, pelo Seu rebanho, pela Sua igreja, levando-o a situar as tribulações dos cristãos num contexto mais geral e a perguntar: «se é com dificuldade que o justo é salvo, onde vai comparecer o ímpio, sim, o pecador?» (1 Pedro 4:18).

Este tema do sofrimento do justo tem aqui um eco no Novo Testamento, mas, na Bíblia, é no Livro de Job que é profundamente tratado. Só com a leitura de Job se pode compreender o alcance daquilo que Pedro aconselha aos crentes na sua epístola. Como veremos, só a atitude perante o sofrimento apontada pelo apóstolo é compatível com o reconhecimento verdadeiro e consequente da soberania de Deus – e, não menos importante, só com este reconhecimento pleno da Sua soberania estamos realmente conciliados com Ele e sujeitos ao seu Reino. O tema da nossa atitude perante o sofrimento está, pois, profundamente ligado à robustez da nossa fé e é talvez o principal teste a que pode ser sujeita essa robustez. Esse é, precisamente, o tema em torno do qual gravita o Livro de Job.

Job viveu depois de 1500 a. C. e era ancião na cidade de Uz (a leste de Judá). Era rico e respeitado na sociedade. Mas, acima de tudo, Job era um homem profundamente piedoso. Observava os preceitos da Lei e temia a Deus. Como considerava os seus sete filhos e três filhas a sua maior riqueza e a maior das graças de Deus, agradecia publicamente a sua fortuna e a sua prole, oferecendo holocaustos.

Mas, em Job 1:6-12, Satanás desafia Deus a pôr à prova a piedade de Job. Como se comportaria Job se, em vez de rico, feliz, saudável e pai orgulhoso, fosse pobre, infeliz, doente e um pai enlutado? Deus considera Job o mais justo dos homens, mas permite que Satanás o afete com grandes males. Sobre Job abatem-se então terríveis infortúnios:

Job perde os seus filhos (Job 1:13-22), mas continua a louvar a Deus. Perante esta perda irreparável e devastadora, é-lhe atribuída uma das frases lapidares da piedade bíblica: «Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei; o Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor!» (Job 1:21).

Job é afetado por tumores malignos «desde a planta do pé até ao alto da cabeça» (Job 2:7-8). Mas, quando a sua mulher, revoltada, lhe dá um conselho duplamente diabólico («Amaldiçoa Deus e morre»), Job repreende-a ainda.

Job perde o seu prestígio social, pois na sociedade é agora visto como um homem decaído, doente e de aspeto repulsivo.

Perante tudo isto, como ficou a piedade daquele que Deus considerava antes o mais justo dos homens? Na reação imediata aos infortúnios, animam Job os velhos reflexos de alguém habituado a depositar em Deus a sua confiança. Mas no seu coração forma-se uma teia de ressentimento. Esse ressentimento ficou oculto enquanto Job viveu para si mesmo o que lhe estava a acontecer, sem ser interpelado por ninguém. Mas eis que vieram ao seu encontro três amigos seus: os anciãos Elifaz, Bildade e Zofar (Job 2:11). Choraram com ele e passaram sete dias e sete noites junto dele, para lhe mostrarem a sua compaixão.

Perante esta manifestação de amizade e solicitude, a reação muito humana de Job foi abrir o seu coração, revelando o quão a teia de ressentimento tinha já tomado conta dele. Job então amaldiçoa o seu nascimento e diz querer morrer (Job 3:1-26). Mostra depois estar convencido que Deus decidiu torturá-lo (Job 7:19-20). Por fim, julga-se a si próprio e a Deus, dizendo ser um homem íntegro que Deus decidiu condenar à partida, sem atender às suas qualidades, às suas obras. Centrado no seu ressentimento, na comparação entre o juízo elevado que faz de si próprio e os infortúnios que lhe devastaram a vida e que só poderiam ter ocorrido pela vontade ou com a permissão de Deus, Job chega à conclusão iníqua, dirigindo-se ao seu Senhor: «Sabes que não sou culpado; todavia, ninguém há que me livre da tua mão.» (Job 10:7) No entendimento desviado de Job, só haveria justiça se Deus não fosse soberano. Mais: Job coloca-se a si próprio ao nível de Deus, clamando por outra soberania que retire a Deus o seu atributo de Senhor da Justiça e o julgue em igualdade consigo. Por isso, lamenta: «Não há entre nós árbitro…» (Job 9:33).

Os desabafos ressentidos de Job escandalizam os seus amigos. Zofar acusa-o de iniquidade (Job 11:1-20). Elifaz acusa-o de grandes pecados (Job 22:1-30). Bildade diz que, algures, terá faltado retidão a Job e aos seus filhos (Job 8:1-22). Todos assumem que a justiça de Deus é percetível às mentes humanas, como se fosse um esquema preestabelecido, conhecido e com soluções fáceis, ao alcance de qualquer um: o pecado levaria ao sofrimento e a piedade à salvação. Daí os julgamentos que se arrogam fazer em relação a Job: este poderia acreditar ser piedoso, mas, à vista dos infortúnios sofridos, teria certamente cometido faltas que fossem a sua causa. Como Job, também eles se permitem julgar: a Job, diretamente; a Deus, indiretamente. Na sua conceção, Deus apenas é o executor máximo de uma justiça humana e essa conceção errada da justiça divina pode facilmente evoluir para o tipo de juízos desviados que Job exibiu e que tanto os escandalizou.

Mas eis que Job, depois de ouvir estes falsos arautos da justiça divina, é levado a vislumbrar a esperança numa justiça divina e redentora. Perante os juízos dos seus amigos, confronta-se com a fraqueza da justiça humana. E pronuncia então outra das frases lapidares do seu livro: «Porque eu sei que o meu Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra.» (Job 19:25) No meio do seu sofrimento e desvario, clama por Alguém que é divino, mas também humano – «Vê-lo-ei por mim mesmo, os meus olhos o verão, e não outros.» (Job 19:27).

No capítulo 32 surge a figura de Eliú. É filho de Baraque, o buzita, da família de Rão, e é mais novo que os três anciãos. É uma figura misteriosa, cujo aparecimento repentino na narrativa não é explicado. Claramente, não era um dos amigos de Job. Eliú repreende Job por se julgar mais justo do que Deus (Job 33:1-33). Afirma que Deus não pratica a perversidade nem comete injustiças (Job 34:1-37). Esclarece que Deus só atende quem espera Nele, não bastando clamar contra as (aparentes) injustiças – «Só gritos vazios Deus não ouvirá, nem atentará para eles o Todo-Poderoso.» (Job 35:13) Por fim, aconselha Job a esperar em Deus (Job 35:14). Para Eliú, deixar a nossa ignorância sobre a justiça de Deus significa deixar de pensar que basta estar em sofrimento para chegar a Deus. Na verdade, há que submeter-se primeiro à sua soberania, confiando incondicionalmente na sua justiça – isto é, na Providência Divina –, como até estava implícito em palavras pronunciadas inicialmente pelo próprio Job (1:21).

Deus só responde a Job depois de Eliú se calar. E Deus repreende Job e os três anciãos seus amigos, mas não se refere a Eliú – que não volta a aparecer. Pode pensar-se no discurso de Eliú como uma interpolação no texto do livro de Job, mas não parece ser esse o caso. Não há contradição entre o discurso de Eliú e as palavras de Deus. Por essa razão, é difícil não ver nesta personagem misteriosa a figura do Redentor que Job vislumbrou e esperou ver e ouvir. É ele, na verdade, que traz a Job as palavras de redenção. Já Deus, quando se lhe dirige, emite o que parece mais um juízo soberano. Eliú pode ser claramente uma prefiguração de Jesus Cristo.

Job responde então a Deus e arrepende-se, considerando-se indigno Dele (Job 40:3-5) e confessando a sua ignorância (Job 42:1-6). Depois disso, Deus restaura a Job (42:10-17) porque Job restaurou a sua confiança na justiça e na soberania divinas. Job proclamou novamente a sua fé no Deus soberano e inescrutável e fez-se assim ouvir junto Dele. Entendeu que se afastava de Deus se se fechasse no seu sofrimento, vitimizando-se e, paradoxalmente, exaltando-se a si próprio num ressentimento que excluía a confiança nos caminhos da Providência Divina.

A doutrina de Eliú (Job 32:1-37:24) é a da igreja apostólica (1Pedro 4:12-19). E tem de ser a nossa. O sofrimento não pode tornar-se o centro da vida de quem sofre nem um instrumento para reclamarmos a compreensão e administração da justiça de que só Deus é o Senhor. É nas experiências extremas que somos chamados a confirmar a nossa fé na soberania de Deus – sem condições. Deus reina e só Ele sabe. Venha a tua justiça, Senhor! Ámen.