terça-feira, dezembro 07, 2010

Entre o constitucionalismo e o nacional-radicalismo: uma interpretação da presença monárquica em Portugal no século XX

Comunicação no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, no colóquio As Raízes Profundas Não Gelam? (Ideias e Percursos das Direitas Portuguesas), a 30 de Novembro de 2010.

Agradeço ao Carlos Guimarães da Cunha os comentários às ideias deste ensaio (que acabaram por ser da minha solitária responsabilidade, dado o arriscado voo que tomaram), bem como os dados sobre os acontecimentos de 1951 por si estudados no livro recente Salazar e os Monárquicos (Lisboa: Sítio do Livro, 2010).

Os monárquicos e a questão da ruptura constitucional

A transição do século XIX para o século XX fez-se em Portugal pelo repúdio do liberalismo e, mais concretamente, da ordem constitucional em que aquele se fundira com a tradicional legitimidade monárquica. A ordem constitucional expressa na Carta de 1826 vinha sendo uma poliarquia permeável aos processos democráticos de governação e fiscalização, tendo sido instituída sem ruptura revolucionária – porque o acto da outorga régia garantira essa continuidade de jure, anulando a experiência revolucionária de 1820, tal como a restauração de 1842 anulara a sua reedição de 1836. A quebra da continuidade constitucional ocorreu só em 1910. Portugal entrou então num período que, inspirando-me em Leo Strauss, chamo de pós-constitucional. Ora, nos anos subsequentes a 1910 ocorreu o estranho fenómeno de a maioria esmagadora dos “monárquicos” se situar no campo adverso ao da continuidade constitucional, opção que marcaria durante todo o século XX a presença pública da chamada “ideia monárquica”. O conceito ainda presente na tentativa restauracionista de 1919 de reatar a linha de continuidade constitucional por meio da restauração da Carta foi explicitamente repudiado ou implicitamente ignorado pela generalidade dos que se afirmaram “monárquicos” – nomeadamente aqueles que, na órbita da Causa Monárquica, como tal actuaram politicamente durante o Estado Novo (1933-1974). Perceba-se que restaurar a Carta não significava só regressar a determinado figurino de direitos civis e políticos, mas que, em termos de direito público, era a recusa de introduzir uma descontinuidade (ou ruptura revolucionária) na sua história. No século XX, enquanto esta linha de demarcação os dividiu, os chamados “monárquicos” não foram, pois, um bloco, mas tiveram debaixo dos pés esta fractura, que é talvez a mais marcante e avassaladora da nossa história política.

O nacional-radicalismo: multiforme, anti-liberal e anti-dinástico

Era uma a causa deste duplo desapego da generalidade dos “monárquicos” novecentistas ao reatamento da continuidade constitucional e às liberdades civis e políticas que ela enformava na Carta – o facto de a parte mais relevante desses defensores da “ideia monárquica” pertencer à grande e múltipla corrente política que em Portugal contestou o liberalismo e o quis substituir por algo que, alegadamente, fosse mais “justo” e mais “nacional”. A tese que aqui defendo é que esse anti-liberalismo triunfou definitivamente em 1910 e é mais uno do que a sua expressão histórica multiforme deixa adivinhar. Tratou-se de uma cultura política que desvalorizava ou hostilizava não só o regime de liberdades gravado na Carta e nos códigos do século XIX, mas a própria arquitectura jurídica do Estado no seu formalismo, com as suas garantias e as suas instituições representativas. As suas origens estão no radicalismo encubado no vintismo e no partido de Setembro, sempre misturado com uma ideia de nação como comunidade natural ou histórica distinta de uma ordem constitucional que lhe era alegadamente estranha e serventuária de interesses obscuros e minoritários. Exprimiu-se em geral com cores e intuitos ditos "progressistas" (sobretudo no século XIX), razão pela qual é inadvertidamente associada às chamadas "esquerdas", mas é dela que derivam também as ideias-força das "direitas" domésticas (sobretudo no século XX). Tenho assim que, face a um liberalismo que logrou operar uma metamorfose na ordem jurídica e política do reino, sem ruptura revolucionária, se perfilou um "nacional-radicalismo" que nutriu as modernas "esquerdas" e "direitas" anti-liberais em Portugal. É desta frente anti-constitucional que nasceram as principais correntes políticas portuguesas do século XX, incluindo as que se tornaram mais expressivas e marcantes no campo "monárquico".

[Que esta linha divisória pode ser mais pertinente que outras herdadas da encenação dos próprios actores históricos, é o que algumas afinidades ideológicas pouco exploradas revelam por vezes de modo surpreendente; assim, os pontos de contacto emocionais, simbólicos e ideológicos entre a reacção absolutista e os radicais democratas, ambos de inspiração profundamente nacionalista, podem explicar o antagonismo de ambos ao constitucionalismo da Carta e os caminhos paralelos (quando não de osmose e fusão) que várias vezes seguiram na nossa história política. Veja-se Cândido Rodrigues Álvares de Figueiredo e Lima, Apontamentos para a História da Época (Tipografia Bracarense, 1847), que relata as negociações para uma acção militar comum entre a Junta Provisória do Porto, de 1846-47, e a Junta Realista do Minho, e se refere a setembristas e miguelistas como «estes dois partidos tão generosos e tão nacionais» e como «duas parcialidades que parecem feitas para se amarem, embora alguém cuide que do casamento dos realistas com os setembristas devesse nascer algum aborto». Aliás, à maçonaria radical pertenciam aliados de D. Carlota Joaquina (que com ela tentaram em 1806 um primeiro projecto de regência usurpadora), como o marquês de Ponte de Lima e outros fidalgos que até vieram a ser membros da loja fundada por Gomes Freire de Andrade; a estas ligações não seriam estranhos os moldes maçónicos da miguelista Ordem de São Miguel da Ala que, como uma circular sua de 1856 demonstra, participava nos actos eleitorais para as Cortes. O Dicionário de História de Portugal (s.v. «Deputado», vol. 2, p. 286) refere militares da “Martinhada” (11.11.1820) que queriam o sistema eleitoral “avançado” da Constituição de Cádis e depois enfileiraram nas hostes miguelistas… Como veremos, o Integralismo Lusitano será em boa medida uma reelaboração desta ligação entre “miguelismo” e radicalismo, feita por radicais travestidos de “tradicionalistas” sob os auspícios das ideias de um intelectual radical, J. P. de Oliveira Martins, que não deixou, ante o Portugal liberal do seu tempo, de registar no Portugal Contemporâneo uma mal disfarçada simpatia pela “causa” de D. Miguel.]

É assim que o liberalismo doutrinário tem tido uma presença fantasmagórica em Portugal: apesar de pouco relevante enquanto força política (sobretudo no século XX), tem funcionado na nossa história moderna como uma força simbólica e de referência negativa, para demarcação e definição das correntes mais relevantes que têm constituído a paleta ideo-política portuguesa.

A fraqueza do liberalismo doutrinário e da cultura dinástica antes de 1910

De facto, a partir da Regeneração (1851), o constitucionalismo liberal e dinástico conheceu um esvaziamento doutrinal resultante da dissolução do partido cartista (herdeiro da aliança que desde D. João VI se fizera entre a dinastia e o reformismo liberal), espalhando-se um pragmatismo generalizado que, apesar de aceitar a Carta para pacificar o regime e nele influir, fez vencer em toda a linha a sensibilidade que imperou até 1910 de secundarização do liberalismo doutrinal e da lealdade dinástica; este pragmatismo sofreu as investidas cada vez mais violentas dos radicais (que se republicanizaram explicitamente), não tendo para lhes opor senão um puro situacionismo ou a receita do gradualismo. Acresce que, na segunda metade do século XIX, a Geração de 70 deu ao radicalismo português uma sofisticação e legitimidade intelectuais que ele não tivera nas décadas anteriores – não só por causa das teorias e doutrinas importadas (como o positivismo e o socialismo), mas sobretudo pela crítica elaborada que das instituições e da sociedade produziram as suas principais cabeças (Teófilo Braga, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Eça de Queirós). A intelectualização do radicalismo operou também a sua nacionalização por meio de uma historiografia própria e até de uma etnografia literária e sociológica que pretendia captar a nação no seu pulsar natural sem os grilhões do aparato jurídico, da dinastia e das elites económicas e políticas. Na ementa de "alta cultura" que a Geração de 70 serviu ao País estavam, lado a lado, a revolução social já advogada pelos arsenalistas de 1836, agora vestida do inevitabilismo das doutrinas positivistas e socialistas, e a "ideia nacional" daqueles (os mesmos) que captaram o "país real" no seu devir histórico e podiam, com a ajuda do método científico, diagnosticar a “crise” anunciada do constitucionalismo, como fizeram Silva Cordeiro e Teixeira Bastos. A "geração nova" acotovelar-se-ia para protagonizar as anunciadas transformações, não sendo de espantar que o fizesse sob nomes e causas distintas e concorrentes. O republicanismo e o socialismo, nas suas diferentes sensibilidades, foram as cabeças mais notadas desta hidra anti-constitucional (ou nacional-radical) em formação, mas não seriam as únicas – o século XX acrescentou as do nacionalismo autoritário que, contrariamente a todas as "evidências" das leituras habituais, partilharam as mesmas fontes ideológicas e idiossincráticas por muito que tivessem, como as anteriores tinham, as suas próprias influências estrangeiras.

Em 1910, o País político continuava aparentemente dominado pelos pragmáticos, mas refém do nacional-radicalismo, sobretudo na sua expressão republicana; os primeiros só podiam ser chamados de "monárquicos" pelos segundos, pois a realidade, como bem a captou D. Carlos, era a de «uma monarquia sem monárquicos» – ou quase. Perante a deserção ou extinção dos monárquicos constitucionais, subsistia o grupo dos herdeiros do miguelismo em torno do imprópria e afrancesadamente chamado Partido Legitimista, ainda mais insignificante que os primeiros; o seu manifesto de 28 de Maio de 1907 em A Nação estava, aliás, num ponto de prática adesão a uma monarquia constitucional (entre outras coisas, concedia às Cortes um poder legislativo que D. Pedro IV e a Carta lhes deram, mas que jamais haviam tido antes do liberalismo). À volta do igualmente residual Partido Nacionalista de Jacinto Cândido, uma das expressões do ultramontanismo católico (também representado no miguelismo), havia já quem fizesse pontes com a atitude neo-monárquica e anti-liberal do maurrassianismo francês – era o caso de Fernando de Sousa, o Nemo, que, por essa via, valorizava a instituição dinástica, mas não tanto as instituições representativas e menos ainda o statu quo regalista em que o constitucionalismo mantinha a Igreja Católica. Neste ponto, há a dizer que a militância católica ultramontana, que do século XIX para o século XX crescera em Portugal, estava longe de ter em bloco um alinhamento monárquico; na sua expressão democrata-cristã (no C.A.D.C.) era evidente a desvalorização dessa questão, o que explicará, mais tarde e já no quadro do Centro Católico, a sua atitude de ralliement à República e o choque com a posição lealista do Nemo, preterida pelo Vaticano.

A extinção dos monárquicos constitucionais

Após o 5 de Outubro de 1910, a ditadura do Partido Republicano Português (que, na sua forma de terror político, durou pelo menos até 1913) silenciou todos aqueles, em geral já idosos, que poderiam manter um vínculo simbólico e público com o constitucionalismo. O desaparecimento de cena dos velhos políticos pragmáticos, como José Luciano de Castro ou João Franco, ou da "magistratura de influência" de figuras como o constitucionalista Lopes Praça, retirado para um exílio rural, tornaram o triunfo militar do radicalismo um facto esmagador. O "adesivismo" de gente como Alpoim era inteiramente postiço, pois era actor tão radical e anti-dinástico como qualquer líder republicano. Os monárquicos remanescentes deixaram de ter o enquadramento das instituições constitucionais e, num ambiente em que a cultura política já não primava pelo formalismo legalista nem pelo lealismo dinástico, houve um resvalar para a anarquia na doutrina e na acção política. O maurrassianismo do Nemo pôde medrar, colando a República recém-implantada aos desmandos já criticados do constitucionalismo e não se importando de contribuir para o equívoco histórico de fazer dos republicanos os herdeiros do parlamentarismo e dos direitos e garantias individuais. Na acção de Paiva Couceiro esta tendência dissolvente do campo constitucional e lealista teve outra expressão, patente na bandeira azul e branca que hasteou na sua primeira insurreição, desprovida da coroa, tal como os seus propósitos "patrióticos" estavam desprovidos da Carta (e assim se manteria ao longo do seu percurso de nacionalista integracionista opositor a Salazar este «Nun'Álvares da nova idade», como Rafael Bordalo Pinheiro o saudara, sem ironia, em 1902, na Paródia). É neste ambiente de decomposição que aparece em cena o Integralismo Lusitano.

O Integralismo Lusitano como fenómeno "nacional-radical"

Originando-se curiosamente numa atitude mais estética que política perante a crise nacional (na revista Alma Portuguesa, 1913), este movimento de jovens neo-monárquicos tinha entre as suas figuras mais relevantes ex-republicanos particularmente radicais, como António Sardinha. Este facto não é um acidente, mas, pelo contrário, explica a singularidade do movimento, igualmente marcado pelo positivismo (que, pelo menos na sua vertente jurídica, alguns dos seus líderes beberam em Coimbra) e pela crítica da Geração de 70 ao liberalismo. A autoproclamada originalidade do integralismo é, assim, uma meia verdade: Almeida Braga, Hipólito Raposo, Pequito Rebelo e Sardinha, entre outros, não precisaram de "copiar" Maurras, mas este sem dúvida terá sido uma ajuda intelectual para os levar a reinterpretar os críticos portugueses do constitucionalismo, que realmente foram os "mestres" da sua "contra-revolução". O integralismo nasce, pois, como nasceram outras correntes políticas, do nacional-radicalismo já aqui identificado. Aliás, o integralismo afirmará sempre uma superioridade em relação a essas outras correntes, alicerçado na convicção de que constituía a interpretação mais consequente e mais radical da crítica da Geração de 70: repudiar o constitucionalismo implicava uma revolução de sentido astronómico, de acelerar um movimento que levaria a um regresso à pureza do pulsar nacional na sua organicidade e historicidade originais. Os integralistas poderiam ser, assim, os mais nacionalistas dos nacionalistas (porque supostamente restauravam a nação na sua integridade histórica) e os mais radicais dos radicais (porque rompiam com o constitucionalismo e a sua coloração liberal em nome, não de utopias "metafísicas" para plantar no futuro, mas de uma historicidade positiva, objectivável como os factos estabelecidos pelo método científico). Neste contexto, a "ideia monárquica" era instrumental para legitimar com o peso da história a sua política "nacional" oposta ao individualismo jurídico e económico, tal como o era a recuperação de autores domésticos ditos "contra-revolucionários". No entanto, a obra destes era em geral datada e medíocre e servira pouco aos próprios miguelistas no século anterior para oporem uma verdadeira doutrina política – que não tinham – à cultura pública formada por juristas, historiadores e literatos liberais e constitucionais. Assim, no que tinha de intelectualmente eficaz, o integralismo dependia inteiramente da herança da Geração de 70.

O "monarquismo" instrumental dos integralistas

A filiação verosímil das ideias integralistas de representação de base municipal e corporativa é o radicalismo federalista peninsular e as propostas de Oliveira Martins, não se distinguindo na essência de programas temporalmente mais próximos como o da Aliança Nacional de Machado Santos de Maio de 1911, que encontrou desenvolvimento noutras expressões ideológicas como a do republicano e já fascizante Centro do Nacionalismo Lusitano de João de Castro Osório em 1922. [O integralista João do Amaral (Aqui d’El-Rei…!, n.º 1, Fev. 1914) deixa claro que foi o triunfo da República dos «políticos» contra a República dos «ideólogos» que admira (Machado Santos, Basílio Teles) que o levou a trocar o republicanismo pelo neo-monarquismo – para uma procura mais consequente da via da «constituição orgânica» e da restituição «à nação [d]a sua unidade moral», que o “herói da Rotunda” não conseguiu impor à Constituinte de 1911.] Neste âmbito, o corporativismo tornara-se uma ideia anfíbia capaz de manter o repúdio do liberalismo junto daqueles que temiam a expressão socialista da revolução social, tendo ainda o condão de poder ser colada à doutrina social católica desenvolvida nas encíclicas papais desde o fim do século XIX. Por essa via, mais do que por um autêntico regresso à fé, fizeram os integralistas a ponte com o catolicismo, tornado um dos instrumentos para a objectivação da política "nacional" – por muito que o catolicismo depois do regime de separação, atirado para os braços de Roma e para o protagonismo dos militantes ultramontanos domésticos, pouco tivesse a ver com a ordem regalista que persistira ao longo da história portuguesa [sobre a longevidade histórica desta ordem regalista, ver aqui, sobretudo §§20-24]. Por outro lado, era aos “Vencidos da Vida” e, mais uma vez, a Oliveira Martins que deviam as suas ideias de governo autoritário, degradando (ou, para alguns, "engrandecendo") a monarquia num cesarismo esclarecido; o sobrevivente do grupo do Bragança, Ramalho Ortigão, sentiu-se lisonjeado com o discipulado e fechou o círculo com a Carta de um Velho a Um Novo (1914). Saído deste composto ideológico, o não-programa integralista de 1914 (Nação Portuguesa n.º 1) era uma curiosa mistura de engenharia política e de recurso a instituições criadas pelo constitucionalismo ou inspiradas pelo republicanismo, apesar de se apresentar como um reatamento da "tradição" anterior a 1834, quiçá anterior a Pombal. O que os integralistas propunham não era – não podia ser – a restauração de um regime largamente fantasiado perdido no século XVII, mas uma nova via de radicalismo ideológico e militante cuja tensão revolucionária bem podia ter servido outras opções políticas. São estas características do movimento que explicam a forma como o integralismo dilacerou, nos anos 20, a causa monárquica: após o fracasso da Monarquia do Norte, em 1919, repudiou a lealdade a D. Manuel II, preferindo defender a pretensão do ramo miguelista da Casa de Bragança, até então com um apoio residual, dificultando depois a aplicação do Pacto de Paris (1922), em que o seu novo pretendente reconheceu a legitimidade do último rei aclamado.

A dispersão integralista: extremismo totalitário, integração no Estado Novo e estratégias "frentistas"

O integralismo oscilará entre uma recaída extremista e maximalista (como expressa na revista Ordem Nova de Marcelo Caetano e Pedro Teotónio Pereira em 1926-1927 ou na aventura do nacional-sindicalismo a partir de 1932) e as pontes com outros sectores políticos concorrentes dentro do tronco do nacional-radicalismo (de que foram sinais a revista Homens Livres em 1925, com uma secundarização na prática da questão dinástica, e as aproximações de alguns dos seus dirigentes à oposição democrática no segundo pós-guerra). No entanto, pode captar-se sempre a permanência de uma matriz ideológica bem expressa no mote livres dos partidos e da finança, que partilharam com os seareiros e que vai ditar as suas atitudes perante a ditadura militar e o Estado Novo. Como os mais nacionalistas dos nacionalistas e os mais radicais dos radicais, os integralistas quiseram acima de tudo fazer prevalecer uma ruptura total com o constitucionalismo e a herança do Estado liberal, achando que o novo modelo político em vias de implantação, na sua plataforma compromissória, não assegurava esse corte na sua totalidade. Antes da derrota do nazi-fascismo, a estratégia será extremar e maximizar a sua capacidade de influência, o que explica a arriscada empresa nacional-sindicalista de Monsaraz e Rolão Preto e a sua colagem icónica a Mussolini e a Hitler – aliás secundarizando novamente a questão dinástica. Um dos resultados dessa guinada foi o abandono de muitos militantes, que preferiram acomodar-se no Estado Novo, dentro ou fora da Causa Monárquica. Desde aí, há que distinguir o núcleo de fundadores do integralismo, representante da opção maximalista (e que explica a sua auto-exclusão da plataforma do Estado Novo), do grosso dos seus militantes, que ingressou no novo regime e na Causa Monárquica. Esta apoiara a ditadura militar e a transição para a II República e era, em 1933, constituída por integralistas, por dissidentes do integralismo (como os membros da Acção Realista Portuguesa, que haviam mantido a lealdade a D. Manuel II) ou por monárquicos ainda vindos da última geração do constitucionalismo que, em termos práticos, se haviam rendido aos pressupostos ideológicos do integralismo (advogando uma monarquia não-constitucional e não-parlamentar). Ou seja, a Causa Monárquica que o Estado Novo vai tolerar até 1974 era uma agremiação de monárquicos que tacticamente não haviam seguido o grupo de fundadores na sua demarcação do salazarismo, mas que, em termos ideológicos, eram filhos acabados do integralismo.

Ser "monárquico" no Estado Novo: preferir Salazar à dinastia e fazer o papel de "duro" do regime

Esta relação ideológica umbilical com o integralismo é a razão de a Causa Monárquica – ou os indivíduos politicamente activos no Estado Novo a ela ligados e rotulados de "monárquicos" – assumirem dentro do novo regime o papel de "ala dura", ou seja, dos que defendiam as posições mais reactivas ao que restava da herança do constitucionalismo e das suas liberdades civis e políticas. Essa posição afectou a imagem pública da "ideia monárquica", que deixou de estar ligada à intenção de restaurar o regime "corrupto" e "tumultuoso" da Carta para ser associado a um ideal hierárquico e de poder paternalista de que Salazar podia ser tornado o lugar-tenente de facto em nome de um rei não restaurado e sempre adiado (aliás, o lugar-tenente de jure era por ele de facto nomeado). Perante estes "monárquicos", os republicanos da ditadura militar e do Estado Novo passavam facilmente a "liberais". Em todo o enredo da chamada tentativa de restauração monárquica de 1951 (por um grupo de membros da Assembleia Nacional) o que verdadeiramente esteve em jogo foi a defesa de um arranjo legal que assegurasse a perpetuação da praxis autoritária do regime contra as possibilidades que, na letra da lei, estavam abertas a uma deriva liberal e democratizante da II República. Caetano Beirão, Cancela de Abreu, João Ameal e outros queriam um seguro de vida contra um sucessor de Salazar que se desviasse do salazarismo e não tornar o duque de Bragança um chefe de Estado "de todos os Portugueses"; muito menos estavam na política do regime como defensores da restauração institucional e patrimonial da Casa de Bragança, que o dux do Estado Novo liquidara, depois de ter passado incólume a I República e a ditadura militar, ou verdadeiramente empenhados no regresso da Família Real, apenas possibilitada pela iniciativa (em 1950) de um deputado republicano, Botelho Moniz.

Alfredo Pimenta e os equívocos ideológicos dos seus críticos

Mesmo assim, graças a Alfredo Pimenta, a Causa podia fazer de moderada (e ponderada) no universo “monárquico” do regime. Aquele antigo dirigente da Acção Realista empreendeu um exercício não de redução mas de exacerbação ao absurdo das premissas mais radicalmente anti-liberais do neo-monarquismo novecentista, o que lhe permitiu desenvencilhar-se da dependência intelectual da Geração de 70, que criticou, embora ele, que fora discípulo dilecto de Teófilo, se mantivesse estruturalmente um positivista. O resultado foi um monismo político difícil de distinguir da concepção da chefia totalitária do nazi-fascismo, o que explicará que um nascente núcleo neofascista português no segundo pós-guerra adopte Pimenta como mestre e polemize com os monárquicos da Causa. Perante tal dedução totalitária do anti-liberalismo, a generalidade dos monárquicos refugiou-se na terceira via do personalismo, o qual permitia também anatemizar os pimentistas a partir do conforto da doutrina social católica e do magistério dos papas – isso se constata nos debates da Semana de Estudos Doutrinários de 1959. Mas esse já fora um terreno marcado pelo núcleo fundador do integralismo para, depois das mudanças internas e globais de 1945, colorir e justificar a reconversão da sua diferença política com o Estado Novo. Em Portugal Restaurado Pela Monarquia (1950), os fundadores sobreviventes do integralismo redigiram uma versão soft da sua ideologia, já sem o pesado palavreado anti-liberal tornado obsceno no segundo pós-guerra pelas experiências totalitárias e pela geoestratégia bipolar. O que nesse documento está latente (dando involuntariamente razão às críticas ásperas de Pimenta) é o que será patente daí a dez anos nos dissidentes da Causa Monárquica: uma evolução não confessada em direcção à monarquia constitucional e parlamentar, sem a assunção de erros tácticos e ideológicos passados. Àquela formulação prefeririam a de uma “monarquia democrática e popular”, fórmula que permitia contornar o liberalismo e as questões delicadas da nossa história constitucional e dinástica, bem assim o papel do integralismo de entre guerras na preparação de um terreno político receptivo às soluções autoritárias – e em que Salazar fez triunfar a sua. Com esta atitude, puderam formar movimentos alternativos (Barrilaro Ruas) ou juntar-se a listas oposicionistas (Sousa Tavares ou Ribeiro Teles); esta última opção tinha um precedente no percurso de Rolão Preto, que, afastado do nazi-fascismo durante a guerra, aproximou-se da oposição democrática, mantendo, como bom ex-“sindicalista”, uma intervenção pautada pela "questão social" – cuja motivação está patente no paralelo que estabeleceu em 1942 entre Antero e Sardinha, reclamando o apelo revolucionário do primeiro para o "tradicionalismo" do segundo (em Para Além da Guerra). Fê-lo, aliás, assumindo implicitamente um marxismo funcional, ao aceitar a validade e objectividade da luta de classes na forma como descreve a realidade. [Mesmo que esta leitura da realidade chegue a Rolão Preto através de Georges Sorel, isso não invalida que a sua genealogia seja (no autor francês) claramente marxista. Aliás, o marxismo articulou-se várias vezes com “organicismos” e nacionalismos vários, como se pode constatar, para o caso português, em José Neves, Comunismo e Nacionalismo em Portugal: Política, Cultura e História no Século XX, Lisboa: Tinta da China, 2010, sobretudo conclusão, pp. 389-415. Este autor, se tivesse tido o arrojo de abordar esta genealogia “nacional-radical” do nacional-comunismo doméstico, poderia ter filiado a resolução da aparente contradição entre internacionalismo e nacionalismo na proposta de Maria de Fátima Bonifácio no ensaio «O proteccionismo como ideologia radical» (aí oposto ao cosmopolitismo liberal clássico), também válida para resolver a mesma problemática nos outros tentáculos e gerações da multiforme corrente nacional-radical portuguesa, nomeadamente do republicanismo positivista.] Isso permitiu-lhe [a Rolão Preto] proceder ao alinhamento de 1945 e 1958 com uma oposição democrática de expressão essencialmente socialista, bem como de reclamar "o rei e os sovietes" após o golpe militar de 1974. Nesta altura, Rolão Preto tornou-se presidente do Partido Popular Monárquico, formação que, com Barrilaro Ruas e Ribeiro Teles, navegaria sempre nas águas da «monarquia popular e democrática», só questionada pela cisão nos anos 80 da Nova Monarquia direitista, que estava também longe de se identificar com o constitucionalismo anterior a 1910.

O xeque-mate dos neo-monárquicos à restauração da monarquia

Assim, tanto a atitude situacionista da Causa como os percursos das suas dissidências no segundo pós-guerra dão bem a medida das combinações ideológicas possíveis dentro do que aqui definimos como a tradição nacional-radical e o legado da Geração de 70. Puderam até passar a representar plenamente o campo monárquico desde que, nos anos 20 e 30, haviam falecido os últimos monárquicos constitucionais com projecção pública, como Aníbal Soares (director do Correio da Manhã) ou o conselheiro Luís de Magalhães; terão subsistido adeptos do constitucionalismo dinástico, mas desapareceram as sociabilidades em nome dessas ideias. A passagem rápida da monarquia constitucional ao neo-monarquismo foi facilitada por esta contingência geracional. O salto sucessório de 1932 também descontinuou o passado e o presente, pois, embora feito dentro das regras constitucionais, consagrava uma deslocação de cultura política que os adeptos dinásticos (muitos de fresca data) do príncipe D. Duarte Nuno exploraram habilmente. Perante esses adeptos, mais e menos salazaristas, o príncipe e o seu sucessor tiveram de afirmar a independência dos seus propósitos e da sua Casa, evitando enredar-se demasiado num partidarismo limitado – como ficou patente no protesto pela nacionalização dos bens da Casa de Bragança (1934), no caso do casamento real de 1942, ou nas posições políticas do então Príncipe da Beira no início dos anos 70 (D. Duarte Pio viria a ser o inspirador das Reais Associações no fim dos anos 80, reorientando a pertença monárquica, de uma militância política partidária, para uma presença cívica de cariz suprapartidário, mais consentânea com uma cultura de lealdade dinástica).

Concluamos. Por influência dos neo-monárquicos, o novo regime republicano ou o que dele subsistiu depois de 1926 confrontou-se essencialmente com uma alternativa monárquica que era uma ideologia tão revolucionária e utópica quanto outras ideologias que marcariam o século XX português. A ideia monárquica não pôde, por acção dessa ideologia, reclamar-se propriamente de uma restauração feita de regresso a uma normalidade e continuidade constitucional e dinástica – como a viam homens como Luís de Magalhães –, mas tornou-se realmente uma proposta de revolução (por mais contra-revolucionária que se afirmasse). A minha tese é que este carácter ideológico e revolucionário deu uma aparente força à ideia monárquica – por a fazer mais apelativa às novas gerações –, mas veio a enfraquecê-la muito no plano das alternativas políticas credíveis à situação de limbo constitucional inaugurada em Portugal em 1910 (e relativamente à qual as três repúblicas foram tentativas de resgatar o País). Este carácter revolucionário da ideologia neo-monárquica teve ainda o condão de divorciar da ideia da restauração da chefia de Estado dinástica as elites conservadoras que viviam à sombra do Estado, para as quais uma república ordeira e rendida a uma lógica administrativa, encimada por uma pequena "aristocracia" de professores catedráticos, era muito mais prática, realizável e, por isso, desejável. A abdicação da tradição constitucional concreta em favor da ideologia enredou depois os monárquicos na pequena política do Estado Novo, tornando-os dentro dele um mero grupo de pressão ideológica. Quando os dissidentes desta acomodação se manifestaram, a partir de 1957, "apanhando" no caminho as críticas do núcleo integralista de 1950 e a oposição já democratizada de Rolão Preto, tiveram de participar na dinâmica política de uma "oposição democrática" completamente hostil a qualquer veleidade restauracionista. E, presos ainda à ideia do País e da sua história que herdaram do integralismo, nunca foram capazes de recuperar e fazer sua – mesmo depois da transição de 1976 – a aliança (consagrada na Carta Constitucional de 1826) da dinastia histórica com a liberdade e a modernidade políticas.

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O L&LP ao centro, no dia do colóquio no ICS.