domingo, janeiro 22, 2017

Donald Trump? Continuo a pensar como Tintim...


A inquietação de muita gente com a eleição (e, agora, a tomada de posse) de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos tem-me feito sorrir algumas vezes. Não é que eu goste do homem ou que me identifique com ele. O que me faz sorrir é a incongruência das pessoas autointituladas democratas e progressistas que se inquietam com Trump na Casa Branca e, como fazem alguns norte-americanos com ideias semelhantes, participariam de bom grado em manifestações contra a sua tomada de posse.

A eleição de Trump deveria ser festejada por toda a gente que acredita num sistema de eleição do chefe de Estado - sobretudo por aqueles que defendem esse sistema com base em ideias igualitaristas, de recusa do "privilégio de nascimento" no acesso ao cargo e na ideia de "igualdade de oportunidades" transposta para o acesso à chefia do Estado. Um puro outsider do sistema político, apoiado no voto dos seus concidadãos, conquista o cargo de topo da República. Isto não é lindo, bonito, emocionante, para quem se demarca, com grandes ares de modernidade e superioridade, daquele outro sistema em que ser chefe de Estado é algo reservado a uma só família?

"Não, nada disso", dizem-nos esses entusiastas dos chefes de Estado eleitos, "com o sistema de eleição, pelo menos, podemos ver-nos livres deles quatro anos depois". Então, tudo bem, não protestem, esperem quatro anos... Mas a questão não é essa. E se ele ganha outra vez? Foi possível a primeira e pode ser a segunda. E os estragos entretanto feitos? E o que garante que a seguir a um Trump não vem outro Trump? Mas, se não faz mal mesmo assim, então, não se inquietem - está tudo bem, de acordo com as vossas ideias.

Pessoas como Trump (e como demagogos dos "bons" de que os autointitulados democratas e progressistas já gostam) seriam ótimas pessoas como deputados num parlamento cheio de gente eleita e muito diferente entre si. A democratas sinceros (como eu neste ponto me considero), essa diversidade num parlamento não causa ansiedade. Mas como chefes de Estado, como alguém que, sozinho e em si mesmo, tem de representar toda a nação e esta ver-se por ele representado - são uma desgraça.

Por esta razão, o pensamento que está na imagem em cima já está comigo há muito tempo. E já fiz algum esforço de o racionalizar politicamente (§§10-12), é certo que às cavalitas de alguns gigantes como David Hume. Mas também, como explico a seguir, às "cavalitas" de instintos políticos da minha infância...

***

Eu cresci, por influência da minha mãe, num ambiente muito pró-americano - a minha mãe dizia «a América», nunca «os Estados Unidos» e era assim que eu também dizia até ser corrigido na escola. Nesse ambiente, através do cinema e da televisão, tive contacto com a célebre frase «Na América, qualquer um pode crescer e tornar-se presidente» (ou a variante «Meu filho, neste país, tu também poderás um dia ser presidente» ou qualquer coisa do género). Esta frase era a medida da grandeza da «América» e, por extensão, de todos os países que adotassem o sistema norte-americano. A minha mãe sorria com aprovação em relação a esta frase.

Mas sempre houve algo que, desde criança, eu achava disfuncional naquela ideia. As conceções políticas mais antigas de que me lembro ter deviam-se ao livro O Ceptro de Ottokar, uma das aventuras de Tintim e que foi o meu livro preferido nesses tempos em que comecei a ler (tinha a velha edição brasileira da Record). Adorava aquele livro, lia-o e admirava, literalmente, cada uma das páginas desenhadas. Mas com este livro eu adquiri alguns instintos políticos. Tintim era o meu herói e n' O Ceptro de Ottokar ele corre grandes riscos para salvar o rei da Sildávia de uma conspiração do Partido da Guarda de Ferro. O ajudante de campo do rei (fardado de negro na imagem de baixo) está implicado na conspiração e faz tudo para evitar que Tintim consiga avisar Muskar XII.

Para mim, não era nada evidente que aquele ajudante de campo (ou qualquer um dos que pensavam como ele) pudesse crescer com a ideia de que poderia ter o lugar de Muskar XII. Aquele lugar era do rei - o descendente de Ottokar IV, que cunhara o lema da monarquia sildava contra os usurpadores da função régia (Eih bennek, eih blavek, isto é, «aqui estou e aqui ficarei»). Eu via e vejo isso tão instintivamente como Tintim.


sábado, janeiro 21, 2017

O espelho do príncipe

Alexandra [Grace Kelly] e Albert [Alec Guiness] na cena da varanda: depois de todo o fair play com o desamor de Alexandra (que uma cultura de abnegação lhe dá com naturalidade), Albert confronta-a com a realidade. Esta é a base do serviço da realeza; a majestade de que é revestida é um verniz protetor e não mistificador.

O filme The Swan [1956, de Charles Vidor] com Alec Guiness e Grace Kelly, sobretudo o sublime diálogo entre ambos na varanda (cena final), é um dos melhores retratos humanos da instituição monárquica tal como ela foi recriada na Europa contemporânea.

A metáfora do cisne, aí usada para descrever a condição do monarca e dos seus familiares também investidos das funções dinásticas, coloca a importante questão de saber se tal condição e funções são um “sacrifício” e se este “desumaniza” os seus protagonistas (por lhes exigir a renúncia à “vida vulgar”): parece-me claro que é, de facto, um sacrifício e que este é inseparável da própria missão da realeza (como aliás acontece em muitas outras missões que os seres humanos se podem atribuir ou aceitar que lhes atribuam), mas é abusivo dizer-se que desumaniza por princípio – porque pressuporia que ser humano se limita a ser viver a tal “vida vulgar” (e é defensável que o é na maior parte do tempo).

Mas, no diálogo referido, Alec Guiness (o Crown Prince do filme) não diz que o cisne, no fundo e em privado (nomeadamente entre os seus ou na forma como ele e a sua Princess sempre partilhariam experiências como aquelas que nos foram dadas ver no filme), não seja um ganso – que “canta”, desajeitado, em privado e na experiência da morte, mas não em público enquanto cisne.

O drama da falecida princesa [Diana] de Gales foi que o sacrifício parecia não ser assumido e o que a realeza não comporta, precisamente, é uma posição dúbia nesse campo – ou se está no lago ou se está na margem (a posição demagógica de dizer-se que quer aproximar-se da margem ou mesmo estar na margem como cisne é pretender que se é cisne por natureza, em si mesmo; ora, como é claro no diálogo do filme, ninguém é realmente mais que ganso – o deslizar, a brancura e a majestade são atributos do lago, não do cisne individual, e que se degradam na margem).

É então o lago (a majestade – diferente de pompa – da realeza) uma hipocrisia? Pode ser se o sacrifício não estiver interiorizado pelos protagonistas, tornando-se assim vulneráveis ao chamamento e à adulação das margens; a educação dos príncipes e infantes deveria sempre orientá-los (e julgo que em geral orienta) para uma consciência aguda da natureza da sua condição e funções, devendo eles optar solenemente pela margem ou pelo lago.

Resta outra questão: é necessário à instituição monárquica este paradigma do cisne e do lago (que não foi sempre o seu)? A minha convicção pessoal é que esse paradigma (diferente do do rei pastor, do rei guerreiro ou do rei déspota iluminado) é uma recriação (ou reinvenção) histórica da instituição que a adaptou a uma função constitucional moderadora e de partilha da soberania e que a preserva melhor do desgaste quotidiano. Criou também, dentro do poder político constituído, um género de reserva humana que transporta um importante capital cultural familiar e que tem com a opinião pública uma relação mediada pela sua estrutura simbólica que, pela sua continuidade, tem uma oportunidade única de aperfeiçoar-se por constante reelaboração. Isso permite-lhe corrigir permanentemente a sua relação com a opinião pública e, nela, fortalecer a base de mútua confiança que só na realeza é, em alto grau, simultaneamente política e humana.

Uma última questão, bem importante, é a de algumas pessoas acharem que a vida privada do monarca e dos seus familiares deve ser de algum modo “exemplar”; aqui há que desfazer este terrível mal-entendido, de que se servem – não sem tremenda hipocrisia – muitos anti-monárquicos: ninguém deve saber da vida privada do monarca e dos seus familiares e muito menos se deve cultivar a ideia da “família real” como família-modelo seja do que for.

Essa rigorosa privacidade é, aliás, condição do que aqui escrevi acerca do lago em que se move a instituição: essa majestade é eminentemente política e simbólica (entre a realeza e os súbditos) e não tem nenhum carácter de ideal comportamental privado. É evidente que podemos preferir príncipes virtuosos – e muitos sê-lo-ão –, mas é absurdo exigir que o sejam necessariamente; isso seria um peso que nenhuma instituição aguentaria...


[Com o título Cisnes que são gansos, ou a condição da realeza, esta nota foi publicada na revista Real n.º 49-50 (Nov. 2001-Nov. 2002), p. 22.]