quinta-feira, setembro 27, 2007

Parecer do Dr. Augusto Ferreira do Amaral sobre os direitos dinásticos de S.A.R. o senhor D. Duarte Pio de Bragança

Dom Duarte é o sucessor dos Reis de Portugal
por Augusto Ferreira do Amaral

INTRODUÇÃO

O reconhecimento do Senhor Dom Duarte como Pretendente ao Trono e legítimo sucessor dos Reis de Portugal tem sido de tal maneira consensual e pacífico no nosso País e no estrangeiro que os fundamentos jurídicos dessa identificação são mal conhecidos para a maior parte das pessoas, de tal maneira supérflua tem sido geralmente considerada a necessidade de os relembrar. Porém, algumas escassas vozes ignaras, sem qualquer credencial que lhes confira autoridade nem crédito sobre a matéria, surgiram ultimamente a pretender causar sensação levantando dúvidas sobre aquela insofismável realidade.

Vale a pena por isso recapitular os referidos fundamentos jurídicos, para que o público os tenha à disposição.

1 - LEI APLICÁVEL

Está em causa a qualidade de Pretendente ao Trono de Portugal, ou seja, de quem seria Rei no caso de Portugal passar a ser uma Monarquia, isto é, de o Chefe de Estado passar a ser hereditária e vitaliciamente designado.

Não existem normas expressas no actual direito positivo português que regulem directamente esta matéria. A Constituição, como é natural, e as leis ordinárias omitem totalmente a qualidade de Pretendente ao Trono de Portugal. E elas são igualmente omissas quanto à regulação da representação viva dos reis de Portugal.

Também não há regras internacionais que sirvam de critério para a determinação de quem são os pretendentes ao trono ou chefes das casas reais dos países que deixaram de ser Monarquias.
Saliente-se ainda que, para o efeito são juridicamente irrelavantes as posições tomadas por Reis em exercício que contrariem as normas de sucessão vigentes.

Já D. João II, apesar de todo o poder que então dispôs, não foi capaz de satisfazer o seu desejo de que lhe sucedesse um filho bastardo – apesar das tentativas que realizou nesse sentido - e teve de conformar-se em que lhe viesse a suceder seu primo D. Manuel I. Isto porque não era aos reis de Portugal que competia estabelecer as regras da sucessão, e muito menos as decisões desta, mas sim à lei fundamental, objectivamente aplicada e confirmada por um acto simbólico de Aclamação.

Por muita importância histórica, pois, que tenham tido os chamados "pacto de Dover" e "pacto de Paris", entre D. Manuel II e D. Miguel II, eles são irrelevantes para efeitos da designação do sucessor de D. Manuel II. Essa sucessão tem de encontrar-se, não naquilo que tivesse sido decidido pelo último Rei, mas sim nas normas constitucionais aplicáveis.

Importa então saber qual a sede jurídica dessas regras de sucessão.

Desde logo é de perfilhar o princípio de que à sucessão do Pretendente deverão aplicar-se as normas da sucessão do Rei. Não havendo especial norma, a analogia justifica-se plenamente. Ora, tratando-se duma qualidade que encontra o seu fundamento num direito histórico, haverá que recorrer a normas escritas já passadas.

A cisão que por cerca de século e meio dividiu os monárquicos (entre constitucionais e absolutistas) poderia levar a uma hesitação preliminar, na opção entre a Carta Constitucional e as Leis Fundamentais anteriores. Não temos dúvidas, porém, em optar pela Carta. Por várias razões. A mais decisiva é, como tem sido nossa orientação, partirmos do princípio de que, havendo que recorrer a preceitos escritos do tempo da Monarquia, importa preferir os que sejam mais próximos no tempo. E as normas legais que, na ordem jurídica portuguesa, ultimamente, até 5 de Outubro de 1910, regulavam a sucessão hereditária da chefia de Estado eram as da Carta Constitucional.

Os artigos que, para o efeito, importa levar em conta são os seguintes.

«Art. 5.º - Continua a dinastia reinante da Sereníssima Casa de Bragança na pessoa da Senhora Princesa Dona Maria da Glória, pela abdicação e cessão de seu Augusto Pai o Senhor Dom Pedro I, Imperador do Brasil, legítimo herdeiro e sucessor do Senhor Dom João VI.
[...]
Art. 86.º - A Senhora D. Maria II, por graça de Deus, e formal abdicação e cessão do Senhor D. Pedro I, Imperador do Brasil, reinará sempre em Portugal.
Art. 87.º - Sua descendência legítima sucederá no trono, segundo a ordem regular da primogenitura e representação, preferindo sempre a linha anterior às posteriores; na mesma linha o grau mais próximo ao meia remoto; no mesmo grau o sexo masculino ao feminino; no mesmo sexo a pessoa mais velha à mais moça.
Art. 88º - Extintas as linhas dos descendentes legítimos da Senhora D. Maria II, passará a coroa à colateral.
Art. 89º - Nenhum estrangeiro poderá suceder na coroa do Reino de Portugal.
Art. 90º - O casamento da Princesa herdeira presuntiva da coroa será feito a aprazimento do Rei, e nunca com estrangeiro; não existindo a Rei ao tempo em que se tratar este consórcio, não poderá ele efectuar-se sem aprovação das cortes gerais. Seu marido não tomará parte no governo, e somente se chamará Rei depois que tiver da Rainha filho ou filha.»

Importa, portanto, interpretar estes preceitos.

Não se conhecem trabalhos preparatórios da Carta, constando que ela terá sido redigida em poucos dias, talvez pelo Ministro da Justiça brasileiro, Marquês de Caravelas. Os comentadores apontam a Constituição do Império do Brasil, outorgada por D. Pedro IV em 11 de Dezembro de 1823, como a possível fonte directa mais importante (por todos ver Mário Soares, «Carta Constitucional», in Dicionário de História de Portugal, vol. I, p. 495).
No entanto, nesta matéria da designação do Rei e da sua sucessão, a nossa Carta Constitucional seguiu de perto outra fonte portuguesa: a Constituição de 1822. Com efeito, é o seguinte o texto desta última, no que toca à sucessão real:
«Art. 31.º - A dinastia reinante é a da Sereníssima Casa de Bragança. O nosso rei actual é o senhor D. João VI.
[…]
«Art. 141º - A sucessão à coroa do Reino Unido seguirá a ordem regular de primogenitura e representação entre os legítimos descendentes do rei actual o senhor D. João VI, preferindo sempre a linha anterior às posteriores; na mesma linha o grau mais próximo ao mais remoto; no mesmo grau o sexo masculino ao feminino; no mesmo sexo a pessoa mais velha à mais moça.»

Portanto:

I. Somente sucedem os filhos nascidos de legítimo matrimónio;

II. Se o herdeiro presuntivo da coroa falecer antes de haver nela sucedido, seu filho prefere por direito de representação ao tio com quem concorrer;

III. Uma vez radicada a sucessão em uma linha, enquanto esta durar não entra a imediata.

«Art. 142.º - Extintas todas as linhas dos descendentes do senhor D. João VI, será chamada aquela das linhas descendentes da Casa de Bragança que dever preferir segundo a regra estabelecida no artigo 141.º. Extintas todas estas linhas, as Cortes chamarão ao trono a pessoa que entenderem convir melhor ao bem da nação; e, desde então continuará a regular-se a sucessão pela ordem estabelecida no mesmo artigo 141.º.
Art. 143.º - Nenhum estrangeiro poderá suceder na coroa do Reino Unido.
Art. 144.º - Se o herdeiro da coroa portuguesa suceder em coroa estrangeira, ou se o herdeiro desta suceder naquela, não poderá acumular uma com outra; mas preferirá qual quiser, e optando a estrangeira se entenderá que renuncia à portuguesa. Esta disposição se entende também com o rei que suceder em coroa estrangeira.
Art. 145.º - Se a sucessão da coroa cair em fêmea, não poderá esta casar senão com português, precedendo aprovação das Cortes. O marido não terá parte no governo, e somente se chamará rei depois que tiver da rainha filho ou filha.»

Nesta matéria da sucessão real, as disposições constitucionais, quer da Constituição de 1822 quer da Carta, inspiraram-se basicamente nas leis fundamentais portuguesas vigentes no antigo regime, as quais, por isso, são importantes para integrar lacunas e precisar sentidos quando se procede à interpretação dos citados preceitos da Carta.

Essas leis fundamentais constavam do Assento feito em Cortes pelos Três Estados, na aclamação de D. João IV, assinado em 5 de Março de 1641, e na Carta Patente de D. João IV em que iam incorporados os Capítulos Gerais dos Três Estados e Resposta a eles nas Cortes de Lisboa de 28 de Janeiro de 1641. E estes documentos seguiam princípios constantes da apócrifa acta das falsas Cortes de Lamego no reinado de D. Afonso Henriques, a qual, contudo, a partir da sua publicação em 1632, passou a ser entendida, na consciência generalizada dos Portugueses, como consubstanciando a lei fundamental. Na verdade, a remota origem das regras sucessórias do trono achava-se nos costumes e nas cláusulas dos testamentos de D. Sancho I, D. Afonso II e D. Sancho II (ver Martim de Albuquerque e Rui de Albuquerque, História do Direito Português, vol. I, 1984/85, pp. 400 e segs.; Marcello Caetano, História do Direito Português, 2.ª edição, 1985, pp. 211 e 212; F. P. de Almeida Langhans, Fundamentos Jurídicos da Monarquia Portuguesa, Lisboa, 1951; Gama Barros, História da Administração Pública em Portugal nos Séculos XII a XV, 2.ª edição, vol. III, p. 300 e segs.; Paulo Merêa, Novos Estudos da História do Direito, p. 47 e segs.; António Caetano do Amaral, Memória V para a História da Legislação e Costumes de Portugal, ed. Civilização, 1945, p. 31 e segs.; J. J. Lopes Praça, Collecção de Leis e Subsidios para o Estudo do Direito Constitucional Portuguez, Coimbra 1893, p. XXII; e M. A. Coelho da Rocha, Ensaio sobre a História do Governo e da Legislação de Portugal, Coimbra, 1861, p. 49).

Segundo um dos doutores clássicos da Restauração, Francisco Velasco de Gouveia (Justa Acclamação do Serenissimo Rey de Portugal Dom João o IV, 1644, p. 79), «entre as quatro qualidades, que se consideram, e atentam na sucessão dos bens vinculados, morgados, e Reinos, que por sua instituição hão-de vir a uma pessoa de certa geração, para se ver qual há-de preferir, e suceder neles, a primeira de todas, é a linha. A segunda, o grau. A terceira, o sexo. A quarta, a idade». E conclui que na crise de 1580 «o direito legítimo da sucessão destes Reinos pertencia à Infanta Duquesa Dona Catarina. Por melhor linha. Por igualmente melhor grau. Por capacidade do sexo. Pelo benefício da representação. Por vocação. Por agnação. E por ser Portuguesa, e casada com Príncipe Português» (ibidem, p. 78). Nesta síntese poderá verificar-se como as normas constitucionais relativas à sucessão no trono seguiram, no essencial, princípios com muitos séculos de vigência.

2 - PRINCÍPIOS DECORRENTES DA CARTA CONSTITUCIONAL

Qual, então, o regime de sucessão régia que decorre da Carta Constitucional ?

Desde logo se observe que, conforme resulta dos arts. 5.º e 88.º, nada impede que a sucessão caia em descendentes de irmãos de D. Pedro IV. Isto é, não se exige, como antigamente estava estabelecido, a aprovação das Cortes para a passagem do trono a um colateral, quando o Rei não tivesse descendentes. A Carta seguiu aí a orientação do art. 142.º da Constituição de 1822, que, curiosamente, restringiu neste particular os poderes do Parlamento. Enquanto houvesse descendentes da Casa de Bragança, não era necessária a aprovação das Cortes para que na coroa sucedesse um colateral do Rei.

Os arts. 86.º a 90.º da Carta instituem quatro conjuntos de regras para a sucessão: definição do autor da sucessão, relação de parentesco, condição da nacionalidade, e condição da autorização régia para o casamento de princesa.

O itinerário de uma designação de sucessor régio é, pois, basicamente, constituído pelos seguintes passos. Primeiro, há que determinar a pessoa em relação à qual se apurará o parentesco definidor do sucessor. Depois, fazem-se funcionar as regras do parentesco, com vista a apurar um candidato. Apurado este, importa saber se, quanto a ele, não ocorre algum dos factos que levam à exclusão da sucessão, isto é, se ele não deve ser afastado por razões da nacionalidade ou de casamento de princesa.

Vejamos então esses passos em pormenor.

2.1 - Quem é o autor da sucessão

Aqui são regulados dois casos: a sucessão de D. Maria II, e a dos que viessem de futuro a suceder-lhe no trono.

Havia na Carta Constitucional uma expressa declaração de D. Maria II como Rainha. E nem sequer fora uma especialidade daquele documento, atribuível a circunstâncias únicas da vida política portuguesa, desencadeadas historicamente após a morte de D. João VI. Já a Constituição de 1822, como vimos, tivera o cuidado de determinar pessoalmente que o Rei era D. João VI e que a dinastia reinante era a de Bragança.

É de aceitar esta declaração, não tanto pela sua validade inicial e intrínseca, que aliás nos não cabe agora discutir, mas sobretudo porque a realeza de D. Maria II teve efectividade, directa e indirectamente, na ordem jurídica portuguesa até 1910. Trata-se, de resto, do que a consciência generalizada, quer em Portugal quer no estrangeiro, reconhecia como válido e regular nos últimos momentos da vigência da Monarquia.

Apenas haverá que observar que esta designação de D. Maria II não era inovadora; não era constitutiva, mas sim meramente declarativa. Não rompia com a linha sucessória entendida como correcta, mas sim nela reconhecia a pessoa a quem competia a qualidade de sucessor dos anteriores reis portugueses. Verdadeiramente, só talvez nas cortes de Coimbra de 1385, com a aclamação de D. João I, houvera a criação de uma nova dinastia. E, mesmo assim, o Mestre de Avis era filho de um rei, para alguns em igualdade de parentesco, quanto à ilegitimidade, com os outros pretendentes, quer a filha de D. Leonor Teles, quer os de D. Inês de Castro. Mas, quer a dinastia dos Filipes, quer a brigantina, socorreram-se da invocação do direito a suceder no trono que fora de D. João I. No que diz respeito à pessoa real à data em que era emitida a Carta Constitucional, portanto, nenhuma dúvida.

E quanto aos futuros reis?

Dois caminhos alternativos poderiam teoricamente abrir-se para a determinação de quem, de futuro, seria o autor da herança, isto é, o Rei relativamente ao qual haveria que determinar quem, pela relação de mais próximo parentesco, competiria suceder no trono. Ou esse parentesco era sempre aferido relativamente ao Rei inicial, ao fundador, ou relativamente àquele que, em cada sucessão régia, tivesse sido o último Rei.

Os teóricos sempre preferiram a primeira concepção, em tudo o que concerne à «sucessão dos reinos, dos morgados, dos usufrutos, dos bens da coroa, e, em geral, na sucessão de todos e quaisquer bens, que, por morte da pessoa que os administra devem por Lei ou por instituição passar a outra certa e determinada pessoa» (D. Francisco de S. Luís, Obras Completas do Cardeal Saraiva, tomo IV, 1875, p. 168). Nessas sucessões, o sucessor sucede «ex propria persona, jure proprio, e não pelo direito de seu pai, ou antecessor» (ibidem, p. 169). Aliás, se não fosse assim, isto é, se fosse preferida a segunda alternativa acima exposta, podiam suceder na coroa parentes do rei antecessor que não fossem descendentes do fundador da dinastia. Mas, no que respeita à sucessão real, havia também a preocupação de garantir uma continuidade na linha sucessória. E, para o efeito, não seria satisfatória a adopção extreme da primeira alternativa. Se o parentesco fosse, pelo grau, reportado sempre ao fundador da dinastia, sem mais, resultaria a possibilidade frequente de o filho de um rei ser preterido por um irmão ou mesmo por um primo deste.

Daí que a escolha do fundador como fulcro da relação de parentesco haja sido temperada por um tertium genus, o princípio da continuação da linha.

Parece ter sido essa a solução preferida do legislador constitucional.

O art. 87.º dá a entender que o primeiro critério é o da descendência de D. Maria II; mas logo como segundo critério, antes dos demais, declara o da linha. Ora isso só pode significar que, enquanto uma linha se não extinguir, não pode suceder ninguém de outra linha, ainda que de parentesco mais próximo com D. Maria II. E há que levar em conta o esclarecimento expresso que era feito no próprio n.º III do art. 141.º da Constituição de 1822, que serviu de fonte àquele preceito da Carta: «uma vez radicada a sucessão em uma linha, enquanto esta durar não entra a imediata».

Quer dizer: a sucessão no trono apura-se pela relação de parentesco legítimo com D. Maria II. Mas, entre os parentes, a primeira preferência é pelos da linha mais próxima; enquanto esta não estiver extinta, não sucedem os parentes de outra linha.

Com o Pretendente ao Trono não há razão para não aplicar exactamente esses princípios.

2.2 - Relação de parentesco

O fundamento para a sucessão régia, na Monarquia portuguesa, era uma certa relação de parentesco entre o herdeiro da Coroa e um antecessor.

Na Carta, como acima vimos, essa relação começa por ser apresentada quanto aos descendentes da Rainha. E só depois surge regulada a hipótese de a Coroa ir parar a colaterais. Vejamos então separadamente cada uma dessas relações.

2.2.1 - Na descendência

Aponta o art. 87.º uma série de critérios de apuramento do parentesco susceptível de gerar a condição básica de sucessor no trono.

2.2.1.1 - Legitimidade

A primeira exigência é de que o parentesco seja «legítimo», ou seja, baseado em filiações havidas de matrimónio. Já a Constituição de 1822 esclarecia que somente sucediam os filhos nascidos de legítimo matrimónio. E era regra antiga, como se vê, entre outros, por Afonso de Lucena (Allegações de direito ....... por parte da Senhor Dona Catherina ........, etc., 1580, p. 93), e Francisco Alvarez de Ribera (De Sucessione Regni Portugalliae, 1621, p.p. 17 e segs.).

Aqui colocam-se duas dúvidas.

A primeira advém do desaparecimento, da ordem jurídica portuguesa, da distinção entre filhos legítimos e ilegítimos. Será correcto, ainda, levar em conta a distinção estabelecida na Carta, entre descendentes legítimos e ilegítimos ? Estamos em crer que sim. A interpretação preferível de uma lei fundamental que, neste particular, gozou de uma longuíssima estabilidade, terá de privilegiar a conservação do sentido histórico que era conferido aos preceitos. E tal sentido, neste particular, não pode deixar de manter como decisiva a exclusão da sucessão dos parentes cuja relação com o autor da herança não assente numa linha totalmente legítima, isto é, em sucessivas filiações decorrentes do matrimónio.

A segunda dúvida é a de saber se será de admitir, para basear a filiação legítima, o casamento civil. O problema está em que, à data da outorga da Carta Constitucional, os católicos por via de regra só podiam casar-se validamente por casamento canónico. Ainda a especial natureza destes preceitos, profundamente impregnados de uma tradição muito estável, parece tornar preferível que apenas se considere como eficaz, para efeitos da geração de filiação legítima dos descendentes do Rei, o matrimónio religioso. Isto não implica a afirmação de uma potencial Monarquia como Estado confessional, nem a exigência de confissão religiosa ao Pretendente. Apenas significa a preferência por uma interpretação favorável à rigidez das normas fundamentais reguladoras da sucessão régia.

2.2.1.2 - «Segundo a ordem regular da primogenitura e representação»

Esta expressão, que resume dois dos mais característicos princípios da sucessão nos bens vinculados, tem interesse, não já pela referência à ordem da primogenitura, de que adiante se falará, mas sobretudo pela adopção do instituto da representação.

Que significa esta?

Que se, antes de o titular falecer, morrer o filho que devia suceder-lhe, qualquer filho deste tem preferência, na sucessão, sobre os irmãos do titular.

Tradicionalmente se admitia este instituto na própria sucessão de reinos. Disso dão conta autores como Afonso de Lucena (ob. cit., pp. 46 e segs.), António de Sousa de Macedo (Lusitania Liberata ab injusto Castellanorum dominio Restituta, 1645, pp. 258 e segs.), Velasco de Gouveia (ob. cit., pp 151 e segs.), João Pinto Ribeiro (Injustas Successoens dos Reys de Leam, e de Castella. e izençaõ de Portugal, in Obras Varias, parte segunda, 1730, p. 102) e Francisco de Santo Agostinho de Macedo (Jus Succedendi in Lusitaniae Regum Dominae Catherinae, 1641, pp. 50 e segs.).

E era também pacífico o princípio de que, na linha recta descendente, a representação não tinha limites, isto é, podiam dar-se em duas ou mais gerações. Dizia Pascoal José de Melo Freire, a propósito da sucessão do Reino: «admittendam in linea descendentium repraesentationem in infinitum» (Institutiones Juris Civilis Lusitani, 1800, livro III, p. 120).

A Carta é expressa em consagrar a regra da representação, naturalmente no sentido tradicional.

Assim, tratando-se de representação na descendência do autor da herança, não se suscitam dúvidas sobre o modo de entender essa representação. Os problemas surgem, sim, quando se trata de sucessão de colaterais, como adiante se verá.

Ainda uma questão é de pôr quanto ao correcto funcionamento do instituto da representação - o que sucede quando o representado não poderia suceder, se vivo fosse à data em que morre o autor da herança?

2.2.1.3 - «Preferindo»

Preferir é aqui estar antes, estar à frente de. Nenhuma dúvida descortinamos no uso de tal termo.

No enunciado dos critérios de preferência, segue a Carta, uma vez mais, a doutrina tradicional. Dizia Manuel Pegas, a propósito da sucessão nos morgados: «Enucleationem suppono vulgarissimam esse in jure nostro, et pro constanti ab omnibus traditam, quatuor qualitates in successione maioratus inspici, et attendi debere, prius lineam, postea gradum, tuns sexum, et ultimo aetatem» (Tractatus de Exclusione, Inclusione, Successione, et Erectione Maioratus, 1.ª parte, 1685, p. 37).

2.2.1.3.1 - «a linha anterior às posteriores»

Interessa saber em que consistia, na ordem jurídica da monarquia constitucional, a linha. O conceito não é exclusivo das leis fundamentais das monarquias. Foi fundamentalmente usado e tratado em pleno direito civil, no ramo das sucessões. Aí «se diz linha a série de gerações entre determinadas pessoas» (António R. de Lis Teixeira, Curso de Direito Civil Portuguez, parte segunda, 1848, p. 516).

A linha é directa ou recta quando um dos parentes descende do outro; e colateral quando liga pessoas que não são ascendentes uma da outra, mas têm um progenitor comum (ibidem, e art. 1580.º do Código Civil actual).

Que será então uma linha anterior e uma linha posterior?

A terminologia não é corrente do direito civil. E a Carta foi bebê-la à Contituição de 1822. Afigura-se-nos que uma linha será anterior a outra quando o progenitor comum entre a linha anterior e o autor da herança seja de grau mais próximo que o progenitor comum entre a linha posterior e o autor de herança; ou, sendo o mesmo o progenitor comum das duas linhas com o autor da herança, quando provenha de um filho desse progenitor que prefira ao filho donde provém a linha posterior. Por preferir entenda-se aqui ser do sexo masculino e/ou mais velho.
O princípio era o da prioridade absoluta da linha sobre o grau, o sexo e a idade, como critério de preferência na sucessão.

A Carta afirmava-a implicitamente ao antepor a linha aos outros critérios. Mas baseava-se de resto na Constituição de 1822, que era expressa em declarar enfaticamente que, uma vez radicada a sucessão numa linha, enquanto esta durasse, não entrava a imediata. No que se conformava com o entendimento tradicional. Ensinava Pascoal José de Melo Freire (ob. citada, p. 120): «successionem non nisi una linea extincta ad aliam transire».

2.2.1.3.2 - «na mesma linha o grau mais próximo ao mais remoto»

Os graus devem contar-se aqui segundo o direito civil. Tanto na linha recta como da colateral, contam-se as pessoas que formam a linha de parentesco, mas excluindo o progentitor comum (Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Tratado Pratico de Morgados, 3.ª edição, 1841, p. 198, e art. 1581.º do actual Código Civil). O grau mais próximo será o menor.

2.2.1.3.3 - «no mesmo grau o sexo masculino ao feminino»

Esta regra, posto que contrariando o princípio da igualdade dos sexos hoje muito generalizado na civilização ocidental, não apenas na ordem jurídica portuguesa, mas também na sucessão régia de algumas monarquias europeias, deve continuar a manter-se enquanto as normas da Carta Constitucional não forem substituídas por outra lei fundamental que se aplique à sucessão régia ou do Pretendente.

2.2.1.3.4 - «no mesmo sexo a pessoa mais velha à mais moça»

Este preceito apenas levantaria dúvida séria quando estejam em causa gémeos do mesmo sexo. Mas não valerá a pena abordar-se tal pormenor, correspondente a uma hipótese rara.

2.2.2 - Nos colaterais

Quais as regras aplicáveis à sucessão de colaterais do autor de herança?
Quanto à sua admissibilidade, não pode haver dúvidas. O art. 88.º consagra a sucessão pela linha colateral de D. Maria II, quando deixar de haver descendentes legítimos dela.

Suscitam-se contudo alguns problemas.

Desde logo, a Carta não regula expressamente a sucessão régia quando haja de seguir por linha colateral. Nem sequer remete para as regras da sucessão da descendência.

Parece que o silêncio significará aí que, basicamente, se seguirão as normas constantes do art. 87.º para determinar qual o parente colateral de D. Maria II que deve suceder no trono. Assim, não temos dúvidas de que também na sucessão de colaterais prefere a linha anterior, dentro dela o grau, dentro do grau o sexo masculino e dentro do sexo masculino a maior idade. Porém, as dificuldades aparecem quando se coloca a questão de saber se é aplicável a representação nesta sucessão por linha colateral.

É de partir do pressuposto que a Carta, tal como a Constituição de 1822, empregou o conceito de representação no sentido técnico-jurídico que ele à época tinha, e que a entendia regulada pelos princípios que então geralmente se entendia que a regiam.

Importa, pois, recorrer à doutrina dominante da época.

Segundo essa doutrina, existia direito de representação também na sucessão na linha colateral para sobrinhos, filhos de irmão. Tal fora instituído por Justiniano e os tratadistas aludem frequentemente a essa figura, sustentando inclusivemente que na sucessão civil a herança dos sobrinhos era por estirpes (Velasco de Gouveia, ob. cit., p. 203; Afonso de Lucena, ob. cit., p. 46; e Domingos Antunes Portugal, Tractatus de Donationibus Regiis, 1726, tomo 2.º, p. 138).

Por outro lado, a representação nos colaterais vai apenas até o segundo grau (António de Sousa de Macedo, ob. cit. , p. 318, e Velasco de Gouveia, ob. cit., p. 204).

2.3 - Condição da nacionalidade

Como se viu, a Carta não admite que na coroa suceda um estrangeiro (art. 89.º). Por isso, uma vez apurado a pessoa a quem, pela relação de parentesco com o autor da herança, competiria suceder-lhe, há que saber se é, ou não, português.

2.3.1 - Que deverá entender-se por estrangeiro ?

Aplicar-se-á a lei da nacionalidade que presentemente vigora? Ou a lei da nacionalidade que vigorava à data em que a Carta foi outorgada? Ou a última lei da nacionalidade que vigorou durante a Monarquia? Ou deve encontrar-se um conceito especial, apenas para uso das normas constitucionais da sucessão?

A palavra, à data da outorga a Carta, significava o mesmo que não natural de Portugal, como afirmaram, por exemplo, M. A. Coelho da Rocha (Instituições de Direito Civil Portuguez, 4.ª edição, tomo I, 1857, p.136) e D. Francisco de S. Luís (ob. cit., p.p. 137 e segs.). Diz este que as nossas leis «chamam sempre naturais, isto é, verdadeiramente Portugueses, os que nascem nestes reinos e seus senhorios».

A naturalidade portuguesa, à data da outorga da Carta, era regulada pelo título LV do 2.º Livro das Ordenações, que preceituava:

«...as pessoas que não nascerem nestes Reinos e Senhorios deles, não sejam havidas por naturais deles, posto que neles morem e residam, e casem com mulheres naturais deles, e neles vivam continuadamente, e tenham o seu domicílio e bens.
1. Não será havido por natural o nascido nestes Reinos de pai estrangeiro, e mãe natural deles, salvo quando o pai estrangeiro tiver seu domicílio e bens no Reino, e nele viveu dez anos contínuos ........
2. E sucedendo que alguns naturais do Reino, sendo mandados por Nós, ou pelos Reis nossos sucessores, ou sendo ocupados em nosso serviço, ou do mesmo Reino ou indo de caminho, para o tal serviço, hajam filhos fora do Reino, estes tais serão havidos por naturais, como se no Reino nascessem.
3. Mas se alguns naturais se sairem do Reino e Senhorios dele, por sua vontade, e se forem morar a outra Província, em qualquer parte sós, ou com suas famílias, os filhos, que lhes nascerem fora do Reino e Senhorios dele, não serão havidos por naturais: pois o pai se ausentou por sua vontade do Reino, em que nasceu, e os filhos não nasceram nele .......»

A Constituição de 1822, enquanto vigorara, regulara diferentemente. Estabelecia o seu art. 21.º serem cidadãos portugueses: «I. Os filhos de pai português nascidos no Reino Unido ou que, havendo nascido em país estrangeiro, vieram estabelecer domicílio no mesmo Reino; cessa porém a necessidade deste domicílio se o pai estava no país estrangeiro em serviço da nação ....... V. Os filhos de pai estrangeiro que nascerem e adquirirem domicílio no Reino Unido; contanto que chegados à maioridade declarem, que querem ser cidadãos portugueses. VI. Os estrangeiros que obtiverem carta de naturalização.»

A Carta, por sua vez, estatuiu, no art. 7.º:

«São cidadãos portugueses:
1.º Os que tiverem nascido em Portugal ou seus domínios, e que hoje não forem cidadãos brasileiros, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço da sua nação.
2.º Os filhos de pai português, e ilegítimos de mãe portuguesa, nascidos em país estrangeiro, que vierem estabelecer domicílio no reino.
3.º Os filhos de pai português, que estivesse em país estrangeiro em serviço do reino, embora eles não venham estabelecer domicílio no reino.
4.º Os estrangeiros naturalizados ......»

Houve alterações neste regime com a Constituição de 1838 (art. 16.º).

Reposta a Carta, a definição de cidadão português veio a ser feita pelo art. 2.º do Decreto de 30 de Setembro de 1852 (lei eleitoral), em termos idênticos aos daquele diploma constitucional. Tempos depois entrou em vigor o Código Civil de 1867, que regulou a matéria no seu art. 18.º, estabelecendo serem cidadãos portugueses:

«1.º Os que nascem no reino, de pai e mãe portugueses, ou só de mãe portuguesa sendo filhos ilegítimos;
2.º Os que nascem no reino, de pai estrangeiro, contanto que não resida por serviço da sua nação, salvo se declararem por si, sendo já maiores ou emencipados, ou por seus pais ou tutores, sendo menores, que não querem ser cidadãos portugueses;
3.º Os filhos de pai português, ainda que este haja sido expulso do reino, ou os filhos ilegítimos de mãe portuguesa, bem que nascidos em país estrangeiro, que vierem estabelecer domicílio no reino, ou declararem por si, sendo maiores ou emancipados, ou por seus pais ou tutores, sendo menores, que querem ser portugueses;
4.º Os que nascem no reino, de pais incógnitos, ou de nacionalidade desconhecida;
5.º Os estrangeiros naturalizados.......»

Era duvidosa a constitucionalidade deste artigo, na medida em que parecia contrariar o texto da Carta (José Dias Ferreira, Codigo Civil Portuguez Annotado, 1870, vol. I, p. 40). No entanto, a verdade é que se manteve até depois de 1910.

Qual, então, a regulamentação que deve ser preferida, para integrar o conceito de estrangeiro, para efeitos, da exclusão prevista no art. 89.º da Carta?

Apesar de ser a própria Carta a regular a nacionalidade portuguesa, parece preferível a preferência por um conceito específico, elaborado em função do interesse muito especial que subjazia àquele artigo.

Se se argumentasse com uma interpretação mais literal do diploma constitucional, sempre seria de responder que o art. 7.º regula especificamente sobre quem é cidadão português. Ora, o Rei não era cidadão português. Tinha, na Carta, outro tratamento. Por isso, à letra, as regras do art. 7.º não lhe eram directamente aplicáveis. E a analogia não parece inteiramente adequada a suprir a falta de esclarecimento do sentido de estrangeiro usado pelo art. 89.º.

D. Francisco de S. Luís sustentava que o termo estrangeiro tinha, com vista à sucessão no trono, um conteúdo específico, não coincidente com o da lei civil. Era ele de opinião que um português, nascido em Portugal, que se tivesse naturalizado noutro país nem por isso deixava de ser português, para efeitos da Lei Fundamental. E que um estrangeiro que se naturalizasse português não deixava de ser um estrangeiro, inábil para suceder na coroa portuguesa (ob. cit., p. 141).

Essa era a doutrina oficial, visível no Manifesto dos Direitos de Sua Magestade Fidelíssima a Senhora Dona Maria Segunda: «Estrangeiro opõe-se a Natural, isto é, ao que nasceu Português» (2.ª edição, 1841, p. 24). Esta interpretação parece a mais conforme à ratio juris do princípio da exclusão do candidato estrangeiro ao trono. Se se admitisse que um estrangeiro, naturalizando-se, pudesse ser Rei de Portugal, correr-se-ia o risco da perda da independência. E foi este o grande problema que emergiu em duas crises sucessórias da nossa História agitando os jurisconsultos (em 1385 e em 1580) e que muito contribuiu para o enunciado das regras constitucionais sobre a sucessão régia.

Preocupação que ainda perdura na actual Constituição, a qual declara inelegível para a presidência da República quem não seja originariamente português (art. 125.º).

Deste modo, deverá entender-se que um candidato à sucessão no trono que seja originariamente estrangeiro e que só depois haja adquirido a nacionalidade portuguesa está excluído dessa sucessão.

2.3.2 - [...]

Por outro lado, não é de aceitar que a chamada «dupla nacionalidade» portuguesa e brasileira atribuída aos cidadãos brasileiros satisfaça os requisitos para que algum destes possa suceder no trono português.

A própria Carta, historicamente emergente da separação de soberanias entre Portugal e o Brasil, consagra um nítido afastamento entre a nacionalidade portuguesa e a brasileira, contrastando aí com o texto que fora da Constituição de 1822. No §1.º do art 7.º exclui da cidadania portuguesa os cidadãos que fossem brasileiros, apesar de terem nascido portugueses. O brasileiro, ainda que tendo também nacionalidade portuguesa, deve ser considerado estrangeiro para efeitos do art. 90.º da Carta Constitucional. Os direitos civis que ele tem, na ordem jurídica portuguesa, são os mais diversos. Mas, como dizia D. Francisco de S. Luís, a sucessão dos tronos deve regular-se, não pelas leis civis, mas sim pelas leis e foros particulares de cada nação. E os problemas, a cultura e as ligações do brasileiro são, de raiz, dum país que, embora com a mesma língua e um longo passado comum, está separado de Portugal há mais de século e meio. Os interesses do Estado recomendam que se não corra o risco de que na chefia dele se coloque quem não seja português de raiz.

2.4 - Condição do casamento de princesa a aprazimento do Rei e nunca com estrangeiro

Esta condição, que pode também levar à exclusão de uma parente do sexo feminino que se achasse em posição de suceder, tem talvez a sua remota origem na crise do final da 1.ª dinastia.
O princípio enunciado pela falsa acta das Cortes de Lamego era o de que a filha do Rei, para suceder no trono, não casasse senão com português nobre.

A Constituição de 1822 estipulava que, se a sucessão caisse em fémea, esta teria de casar com português e carecia de aprovação das Cortes.

A Carta, através do art. 90.º, introduziu algumas alterações. Estabeleceu que o casamento teria de ser «a aprazimento do Rei» e nunca com estrangeiro; embora, se não houvesse Rei ao tempo em que se tratasse do casamento, este não poderia efectuar-se sem aprovação das Cortes. Mas a mais significativa alteração é a de que a limitação se aplica, literalmente, apenas à Princesa herdeira presuntiva da coroa. Suscitar-se-ia a dúvida sobre se a letra da Carta não careceria, aí, de uma interpretação extensiva, de modo a abranger também a Rainha, já entronizada. Não parece que assim deva ser. Desde logo porque a própria D. Maria II casou duas vezes com estrangeiro; e da segunda vez já falecera seu pai e não careceu de aprovação das Cortes. Depois porque não faria sentido o preceito na exigência do aprazimento do Rei se a noiva fosse já Rainha, pois então seria ela a aprazer a si própria.

É de concluir, portanto, que, se à data em que sucede, a Princesa não é casada, poderá vir a casar com estrangeiro e o seu casamento não carece de aprovação. Porém, se é casada, para poder suceder, tem de ter o aprazimento do Rei; e o marido não pode ser estrangeiro.

Não vemos razões para aplicar aqui, ao conceito de estrangeiro, um sentido diferente do que apontámos no número anterior.

Quanto ao significado de aprazimento do Rei, parece ser o de ter a aprovação do Rei (que pode não ser o pai, mas também, por exemplo, irmão, primo, sobrinho ou tio da Princesa). Parece exigir uma aprovação expressa, e não meramente implícita. Não se trata de tirar conclusões de quaisquer factos indirectamente relacionados, que geram a ambiguidade. O texto consitucional não consagraria tão formal exigência se não houvesse uma preocupação de que o aprazimento do Rei fosse manifestado por um modo formal e minimamente solene. A própria fórmula utilizada, pela positiva - que é preciso que o casamento apraza ao Rei e não, simplesmente, que não despraza - inculca a necessidade de uma clara manifestação explícita da vontade real. Mas é de admitir que tal aprovação possa ser dada a posteriori, isto é, como ratificação do casamento. Apenas essa aprovação tem de estar dada à data em que se abre a sucessão no trono, sob pena de, por falta desta condição, passar este ao parente imediato.

2.5 - O hipotético banimento

Tem sido por vezes suscitado um condicionamento da sucessão régia da linha descendente de D. Miguel com base na chamada "lei do banimento". Esta foi uma lei ordinária, sem natureza constitucional, emitida sob a forma de Carta de Lei em 19 de Dezembro de 1834. Pelo seu art. 1.º, «O ex-infante D. Miguel, e seus descendentes são excluidos para sempre do direito de succeder na Corôa dos Reinos de Portugal, Algarves, e seus Dominios». E o seu art. 2.º preceituava: «O mesmo ex-Infante D. Miguel, e seus descendentes são banidos do territorio Portuguez, para em nenhum tempo poderem entrar nelle, nem gosar de quaesquer direitos civis, ou politicos …»

Sucede, porém que se trata de uma lei sem natureza constitucional, que não pode prevalecer contra o regulado diferentemente na lei fundamental.

Por outro lado, a Carta Constitucional de 1826 foi objecto, depois de 1834, de uma reposição e de várias alterações, a saber, por um Acto Adicional em 5 de Julho de 1852, e revisões de 15 de Maio de 1884, de 24 de Julho de 1885, de 3 de abril de 1896 e de 1 de Agosto de 1899. Em nenhuma delas se alteraram os acima referidos arts. 87.º e 88.º, apesar de terem sido modificados alguns preceitos do mesmo Título V ao qual pertencem aqueles dois artigos. Em nada se alterou a clareza e universalidade das regras constantes desses arts. 87.º e 88.º, segundo as quais, por extinção das linhas dos descendentes legítimos de D. Maria II, passaria o trono colateral, preferindo sempre a linha anterior às posteriores.

Quer dizer, segundo esses preceitos, não havendo português legítimo descendente de D. Maria II, passaria a coroa à linha anterior dos colaterais, que seria a dos descendentes de D. Pedro IV; mas, não havendo portugueses legítimos descendentes de D. Pedro IV, passaria a coroa à linha seguinte, que era a dos portugueses legítimos descendentes de D. Miguel (o filho varão imediato de D. João VI).

Nenhuma restrição a essa regra foi estatuída na Carta Constitucional nem nas suas várias revisões.

Mais. Os arts. 86.º a 90.º da Carta Constitucional representam a regulação sistemática da sucessão régia. É essa, de resto, a epígrafe desse capítulo – "Da sucessão régia". Aí reside a totalidade do sistema de sucessão da coroa, tal como vigorou a partir da vigência da Carta Constitucional até à implantação da República. Trata-se de uma regulação "de sistema", que exclusivamente rege a matéria.

Daí que não pode deixar de concluir-se que, no que toca às normas de sucessão régia, a supra-mencionada Carta de Lei de 19 de Dezembro de 1834, se não era inconstitucional à partida, foi revogada de sistema pela Carta Constitucional quando foi reposta ou quando foi revista. Não pode sobrepor-se nem muito menos contariar, na medida em que regule a sucessão régia, os preceitos que regeram tal matéria até 5 de Outubro de 1910.

3 - APLICAÇÃO AOS FACTOS DOS PRINCÍPIOS ADOPTADOS

Tendo presentes as regras atrás enunciadas, caberá aplicá-las à situação de facto existente.

À data em que faleceu o último Rei de Portugal, D. Manuel II – 2 de Julho de 1932 –, não havia descendentes portugueses legítimos de D. Maria II.

A propósito, note-se que uma tal Ilda Toledano, que se intitulou a si própria "Maria Pia de Bragança" e fez muito alarido nos anos 50 a 80 do século XX, sustentando que seria filha de D. Carlos I e reclamando direito à sucessão na Coroa, não poderia ser entendida como incluída nessa categoria. Na verdade, mesmo que ela fosse filha de D. Carlos – o que de todo se discorda, pois a justificação que apresentou não tem a mínima credibilidade sob o ponto de vista histórico –, ainda assim, sendo filha adulterina e, portanto, ilegítima, não detinha quaisquer direitos à sucessão no trono.

Também em 1932 não havia descendentes portugueses legítimos de D. Pedro IV.

Portanto, a sucessão régia, ou seja, a sucessão na qualidade de Pretendente ao trono de Portugal, coube ao descendente português, legítimo, de D. Miguel I que chefiava a sua representação – e esse era D. Duarte Nuno, neto paterno deste.

Tendo sido deferida a sucessão nessa qualidade para D. Duarte Nuno, transmitiu-se por sua morte para seu filho primogénito, também português, o Senhor D. Duarte João Pio.

Mas mesmo que se entendesse que a Carta de Lei de 1834, acima citada, permaneceria em vigor – o que de forma nenhuma se aceita pelas razões acima expostas -, ainda assim haveria de reconhecer-se que é ao Senhor D. Duarte João Pio quem compete a qualidade de Pretendente ao Trono e sucessor dos Reis portugueses, pois é o descendente português, legítimo, de D. Pedro IV, que ocupa o primeiro lugar nessa linha.

Isto, por sua mãe, a Senhora D. Maria Francisca de Orléans e Bragança, filha do Príncipe D. Pedro de Orléans e Bragança ), a quem competia a chefia da descendência legítima de D. Pedro IV. E a Senhora D. Maria Francisca foi o mais velho dos filhos desse Príncipe D. Pedro que tiveram filhos portugueses.

4 – AS TENTATIVAS DE ATINGIR D. DUARTE

As insustentáveis tentativas de algumas criaturas sem qualquer qualificação para dissertar sobre estes temas e para porem em causa estas evidências, têm por vezes resvalado para a pura calúnia relativa ao Senhor D. Duarte.

Entre as mentiras que se tentam fazer passar figura a de que D. Duarte viveria à custa do Estado português, ou de dinheiros públicos.

Nada de mais torpemente falso.

D. Duarte não aufere quaisquer rendimentos da Fundação da Casa de Bragança. E deveria até ter direito a auferi-los.

A Casa de Bragança possuía um acervo grande de bens vinculados, que assim permaneceram, excluídos das regras gerais da sucessão, depois da abolição do morgadio e mesmo durante a 1.ª República, que os respeitou. Quando D. Manuel II morreu, Salazar, prepotentemente, subtraiu esses bens ao seu normal e correcto destino e transmitiu-os para uma fundação, que instituiu por Decreto – a Fundação da Casa de Bragança –, gerida por pessoas nomeadas pelos Governos e cujos rendimentos deixaram de ser fruídos, como deviam, pelo Chefe daquela Casa ou pela Família a quem, como bens privados, pertenciam.

D. Duarte não vive, pois, à conta de rendimentos daquela fundação, como seria seu direito se o ditador os não tivesse confiscado em 1933 por essa insólita arbitrariedade.

D. Duarte também não aufere de qualquer fonte pública os seus rendimentos. Nada recebe do erário público. Ao invés: tem aplicado boa parte do seu rendimento pessoal em serviço do País, em causas de grande relevância nacional, como foi, exemplarmente, toda a persistente e intensa actividade que ao longo de anos desenvolveu, quase sozinho, pela causa da liberdade de Timor.

Lisboa, 18 de Junho de 2007

Augusto Ferreira do Amaral

Via Lusitana Antiga Liberdade.

33 anos depois: Um herói chamado António de Spínola

Na sequência dos acontecimentos de 28 de Setembro de 1974, o general Spínola demitiu-se, dois dias depois, da presidência da república. Os radicais haviam ganho no braço de ferro com o general liberal e ordeiro que queria preservar a honra e a responsabilidade (mesmo com os povos das províncias ultramarinas) na transição para as liberdades civis e o pluralismo político. No discurso de demissão, António de Spínola avisou os Portugueses dos perigos que os esperavam no ano seguinte. Poucos perceberam e poucos quiseram ouvir, incluindo os que depois tiveram de fazer o 25 de Novembro de 1975, já depois do País ter sido vandalizado e amputado pela "ditadura policêntrica" dos radicais militares e civis.

quinta-feira, setembro 20, 2007

Não vivemos em mercado livre (caso ainda não tenham percebido)

Alan Greenspan, o ex-banqueiro central norte-americano, revela no "Daily Show" uma dose considerável de honestidade intelectual: antes de mais, admite que, com o sistema monetário que temos depois do padrão-ouro, não vivemos realmente num mercado livre. Toda a economia é condicionada pela unidade monetária de papel que circula em regime de monopólio e esta é administrada por "reguladores", que tomam decisões arbitrárias impostas a todos os agentes económicos. Sobre o processo de decisão desses "reguladores", Greenspan não podia ser mais claro: não sabem - ninguém sabe - fazer previsões e aquilo que usam são os dados disponíveis a toda a gente interessada. E é curioso que, perante perguntas do senso comum como as de Jon Stewart ("porque tem de existir um banco central?"), Greenspan não tenha nada para dizer em defesa do sistema. Se não estivessemos viciados no sistema inflacionista em que vivemos - que realmente penaliza o trabalho e a poupança, como Jon intui -, o que teria sentido seria restaurar o padrão-ouro (é o que Ron Paul anda a dizer na campanha para as primárias republicanas).

quarta-feira, setembro 19, 2007

segunda-feira, setembro 17, 2007

"Fuor del Mar"

Ramón Vargas canta a célebre ária em que Idomeneo, já depois do "voto tremendo", é intimado pelos deuses a cumpri-lo. Temendo pela vida do filho Idamante, prometeu oferecer em sacrifício o primeiro súbdito que lhe aparecesse se Idamante se salvasse; logo se arrependeu de tal voto, mas Neptuno não se esqueceu. A tragédia adensa-se quando, para terror de Idomeneo, a primeira pessoa que encontra é Idamante... Nesta ópera, Mozart dá tratamento musical, com grandeza, a um episódio da mitologia pagã semelhante ao episódio bíblico de Abraão e Isaac, a que Kierkegaard deu outra grandeza em "Temor e Tremor". Os dois episódios, formalmente semelhantes, são essencialmente distintos, como os leitores de Kierkegaard saberão: de acordo com a sua terminologia, Abraão é o perfeito "cavaleiro da fé", enquanto Idomeneo personifica o "herói trágico" do qual o primeiro se distingue em absoluto. [Ver aqui.]

"D'Oreste d'Ajace"

No Youtube há desgraçadamente poucos vídeos com "Idomeneo", a ópera das óperas. Agora, apesar de tudo, apareceram alguns que já se podem ver (embora, nem sempre com a qualidade desejável, como este). Aqui, Anja Harteros interpreta Elettra na ária "D'Oreste d'Ajace", no fim do 3.º acto (da representação desta ópera em Salzburgo no ano passado). Apesar da qualidade sofrível do som (volume ao alto...!) e da imagem, esta representação parece-me muito boa e esta Elettra com bastante densidade dramática (além de dotes vocais), quase provocando compaixão no seu acesso de loucura face ao esboroar de todos os seus planos.

Pedro Arroja em cheio!

Quando discordo, critico; quando gosto, gosto mesmo. Recomendo vivamente estes sete excelentes posts no "Portugal Contemporâneo":

um
dois
três
quatro
cinco
seis
sete

quarta-feira, setembro 12, 2007

Sempre gostei de estados confessionais...


O Dalai Lama está em Portugal e parece que não vai ser recebido pelos representantes da república laica que por cá vamos tendo. Razão de Estado? Talvez se perceba. Mas Sua Santidade não fica a perder por aí além; tem a sua autoridade simbólica, mesmo que, como a outra, não tenha "divisões". No tempo longo o que contará mais? Alguém tem dúvidas?

"Dunque io son"

Bom, não é a interpretação que queria da Bartoli com Bryn Terfel (o Youtube não deixa postar), mas fica esta versão com a mesma senhora como Rosina e Gino Quilico no papel de Figaro. Neste dueto (deixem passar o recitativo, que aliás parece saído de Mozart) respira-se o tipo de ambientes bem dispostos que Rossini sabia criar e a música é excelente: pôr dois intérpretes a cantar ao mesmo tempo sem resultar numa gritaria e conseguindo-se perceber o que cada um diz (para isso seguindo o seu próprio trilho definido na música) é o que este senhor sabia fazer como o mestre. Bartoli tem uma interpretação límpida, numa personagem que outros sopranos assassinam por não saberem manter na ordem (por vezes nos limites do decoro) a sua coloratura.

Pinochet entrevistado (1988)

Pinochet entrevistado (1973)

Há 34 anos no Chile (II)

Neste vídeo, a posição do presidente da Democracia Cristã, Patricio Aylwin, no centro do espectro partidário de então.

Há 34 anos no Chile (I)

O golpe militar contra Allende foi uma decisão tomada como alternativa à guerra civil.

terça-feira, setembro 11, 2007

O 11 Set. por dentro

Muitas vezes, aqueles que perderam a liberdade não perceberam às mãos de quem a perdiam.

O 11 Set. de uma casa particular

"There are people there..." Essa é que é a verdade.

O 11 Set. de Kevin Cosgrove

O 11 de Setembro não é para mim um objecto de crença. Para muita gente, até parece ter-se tornado um género de totem. Desse dia ficam-me apenas muitas dúvidas. Só espero que os responsáveis por este crime hediondo sejam um dia conhecidos - inteiramente. Devemos isso à memória dos mortos.

sexta-feira, setembro 07, 2007

Cecilia Bartoli em "La Clemenza di Tito"

Depois de várias tentativas infrutíferas de postar o dueto "Dunque io son" do "Barbeiro de Sevilha" (com Cecilia Bartoli e Bryn Terfel), deixo aqui a ária "Parto, parto" da ópera "La Clemenza di Tito" (1791), a última de Mozart e, de forma muito interessante, um caso "arcaizante" depois das suas aventuras inovadoras. Em "La Clemenza di Tito", Mozart volta - e em grande - ao estilo da ópera de Corte (a "opera seria"); com "Idomeneo", uma das suas primeiras, é o melhor exemplo deste género neste compositor. Hei-de conseguir postar o "Dunque io son"...

Maria Callas canta "Non più mesta"

Da ópera "La Cenerentola" também.

Uma abertura de Rossini

A Filarmónica de Viena a todo o gás e dirigida por Claudio Abbado no memorável Concerto de Ano Novo de 1991, interpretando a abertura da ópera "La Gazza Ladra" de Rossini. Antes de voltarmos às árias de Rossini, um cheirinho das aberturas aceleradas que o mais simpático dos génios musicais fazia para as suas óperas. São obras sinfónicas por si mesmas e trouxeram à música um espírito de "carga de cavalaria" em que em vez de cavalos só correm notas e muito talento.

Cecilia Bartoli canta Rossini

"Nacqui all'affano" da ópera "La Cenerentola". Rossini é um compositor que aqui vai aparecer mais (assim o permita o Youtube). Acho-o um genuíno continuador (o grande herdeiro) - na forma e no espírito espontâneo - da ópera mozartiana.

Cecilia Bartoli canta Mozart

O Aleluia do "Exsultate Jubilate" pela mesma intérprete mostra a desenvoltura com que Mozart levou a sua revolução também à música litúrgica. E aqui Bartoli até está um bocadinho dominada demais pelos sentimentos que era suposto transmitir. Prefiro outras interpretações (por exemplo uma antiga de Edith Mathis).

Cecilia Bartoli canta Haydn

"Al tuo seo fortunateo" de "L'Anima del filosofo". Depois de se ouvir as obras líricas dos compositores barrocos e mesmos de autores já "classicistas" como Haydn é que se percebe a volta que Mozart deu não só à ópera, mas à música em geral.

Cecilia Bartoli canta Vivaldi

"Agitata da due venti". Uma das coisas que na ópera mais parece absurda no início é que, muitas vezes, numa ária, haja tão pouco texto, insistentemente repetido. Mas a ária é a exploração musical (daí os efeitos vocais neste caso) de uma ideia ou, mais propriamente, de um sentimento. E é suposto pegar nas palavras que o expressam, esticá-las, gritá-las, declamá-las, cantá-las, acelerando ou quase soletrando. A ária é uma forma de falar pondo a música (vocal e instrumental, numa só) como serva do sentimento. Quanto a esta senhora é sempre fantástica.

quinta-feira, setembro 06, 2007

Aceitando o desafio

Para responder ao desafio da Margarida, apresento a seguinte lista:

1. A generalidade dos manuais escolares que me fizeram ler (já não tenho dados para os listar).

2. Os livros aos quadradinhos Disney que incompreensivelmente li (idem).

3. O “Amor de Perdição” de Camilo Castelo Branco (no 11.º ano).

4. A Constituição da República Portuguesa, que me convenceu por alguns tempos que ou estava na época errada ou o País estava dominado por extraterrestres.

5. “O que é a História?” de Marc Bloch (no 12.º ano).

6. Os livros de Georges Duby na faculdade.

7. Os livros de Jacques Le Goff na faculdade.

8. "Siddartha", de H. Hesse, porque uma amiga queria discuti-lo comigo.

9. Alguns livros de teoria curricular e de didáctica da História (que querias tu da vida, meu Deus?).

10. Um livro que não devo nomear que prometi recensear numa revista que também não devo nomear e que me fez aprender a não cair mais nestes servicinhos (para mais não remunerados e dos quais se espera uma complacência a que dificilmente me consigo obrigar).

Desafio para o mesmo exercício o CN, o Álvaro, a Ana Cláudia, o Bruno e o João.

PC 3-1

As coisas previsíveis relativas a pessoas apenas conhecidas são-no por vezes a um ponto que nos surpreendemos a adivinhar o futuro em conversas com amigos. Embora possa não parecer em relação a um deles, tenho o maior respeito pelos três "contemporâneos". Aliás, só um grande respeito e até um sentimento de dívida - daquele género que nos faz já ter defendido uma pessoa e as suas ideias em várias ocasiões - pode justificar que chegue a apoquentar-me com a forma da recente postura pública de alguém a quem não me unem laços familiares ou de amizade. Mas as pessoas são responsáveis e não precisam que tomem conta delas.

quarta-feira, setembro 05, 2007

O Super Gualter

Pela descrição, deve ser este o Gualter de quem toda a gente fala. Está bem ambientado num programa como "Rua Sésamo", que sempre me pareceu imbatível no tratamento dos seus espectadores potenciais como imbecis chapados.

domingo, setembro 02, 2007

Da acracia moral do Evangelho

Em torno de Gál. 5:1

O dito o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente, pronunciado por Lord Acton na época em que tentou mover a sua influência em Roma contra a proclamação da infalibilidade papal, teve uma origem religiosa e uma aplicação política significativas.

Em termos mundanos, poder é essencialmente capacidade de coagir; é dessa capacidade que falamos quando dizemos poder, quer seja o poder político ou qualquer outra forma de poder, necessariamente “social”, mesmo o poder paternal do direito civil.

Isto é essencialmente diferente das formas de persuasão utilizadas na retórica como Aristóteles a ensinou, mesmo em assembleias deliberativas ou tribunais, ou na pregação como Jesus a modelou na proclamação do Evangelho – nos âmbitos da retórica e da pregação, tenta-se convencer, não coagir.

Onde a coerção começa já acabou a persuasão. Retórica e pregação são pois distintos do poder e, provavelmente, seus contrários. Ora, a razão de no dictum de Acton estar pressuposta a natureza corruptora do poder não é geralmente associada à coerção como natureza do poder, mas a uma acção misteriosa que o seu exercício alegadamente teria sobre o discernimento e as rectas intenções de quem o detém. Não creio dever ser esse para um cristão o entendimento da frase de Acton.

O que torna o poder moralmente degradado e/ou degradante – ou, mais correctamente, amoral, senão imoral –, independentemente do comportamento daquele que o detém, é que ele é essencialmente o exercício de coerção e é esta que é imoral. É que um dos traços morais marcantes do evangelho de Jesus Cristo – e o único que tem um real significado social e político – é a abstenção de coerção. Jesus não coage; convence pelo que diz ou realiza ou deixa ver de si mesmo.

O Reino anunciado vem ao mundo porque as pessoas se convertem ao seu evangelho, o aceitam por decisão interior (a decisão cristã de Lutero), selando uma aliança com o Pai mantida pelo vínculo do Espírito Santo – e agindo em consequência, nomeadamente abstendo-se de coagir o próximo. É essa abstenção de exercício de coerção sobre os seus semelhantes que, no limite, levou Jesus à cruz. Ele, que era Deus, para anunciar o Reino do Pai como os seus irmãos o deveriam viver auxiliados pelo Espírito, absteve-se de usar uma parcela que fosse da omnipotência divina – era a única forma de, nessa divina e humana demonstração do Reino, não haver qualquer exercício de coerção da sua parte.

E o Evangelho, essa mensagem proclamada e vivida que é a chave da Salvação sob a Nova Aliança, é o modelo moral para os cristãos. Ninguém se salva pelo exercício da coerção sobre outros nem pela coerção que outros possam exercer sobre ele. É por isso que, de um ponto de partida cristão, o poder corrompe – porque coagir e ser coagido não são as experiências humanas em que o Reino se manifesta. A corrupção vem daí: é imoral o que obsta ao que vem de Deus e conduz à Salvação.

O poder (kratos em grego), sinónimo pois de coerção, não é próprio do Reino de Deus e essa é uma das razões pelas quais Jesus disse que aquele não era “deste mundo”. Porque o poder “deste mundo”, de natureza social e política, requer realmente a coerção. Por contraste, a acracia – se assim nos podemos expressar – é um traço essencial do Reino anunciado no Evangelho para ser trazido ao mundo pelos cristãos. E se o Reino vive na Igreja de Cristo, esta terá, em termos mundanos, de ser uma realidade acrática, na qual ninguém pode exercer coerção nem ser objecto de coerção. Nesses termos, dificilmente ela poderá ser algo mais do que a “Igreja invisível” e as presenças sacramentais de Cristo pelo Espírito Santo na oração, na eucaristia e no baptismo.

Assim se pode entender o que é a liberdade cristã «para que Cristo nos libertou» aqui referida por Paulo. Essa liberdade é a experiência do Reino. Sou livre por não coagir nem ser coagido – porque só assim posso ser um sujeito do «povo de sacerdotes» fundado por Jesus a partir daqueles que ele próprio, presencialmente, trouxe à conversão, até aos que hoje se convertem.

Este eixo acrático da moral evangélica tem de guiar a leitura dos escritos de Paulo no que se refere às relações entre cristãos e entre estes e os não cristãos ou qualquer realidade mundana que exerce poder. Os escritos de Paulo não devem ser interpretados nem contrariando nem sobrepondo-se ao que se infere do próprio Evangelho. Os cristãos não se podem coagir uns aos outros sem suspenderem o Reino dentro de si mesmos e nas suas relações. A mesma suspensão ocorre se coagirem não cristãos.

Os membros do povo de sacerdotes são chamados a dar testemunho do Reino, mesmo quando são alvo da coerção de outros – no limite, isso pode implicar o martírio (que é sempre decorrente de decisões coercivas de outrem e não, em si mesmo, uma opção moral do cristão). Cair no jugo da servidão «de que Cristo nos libertou» é participar em actos coercivos ou ser beneficiário de actos coercivos não directamente cometidos por si mesmo.

Não se opor por meios coercivos aos poderes mundanos não significa que se aceite a coerção desses poderes ou que eles tenham lugar no Reino e na Igreja. Significa que nos abstemos de colaborar na praxis mundana da coerção. Porque o Reino não vem pelos poderes deste mundo e estes são a servidão que obsta à liberdade com que nos mantemos sob o sumo sacerdócio de Cristo, nosso único Mediador. É por isso que a ideia de que o Reino tenha uma natureza social ou política só pode ser heresia e apostasia.

O mesmo se pode dizer das ideias ou predisposições que de algum modo o aproximem da realização de projectos que se servem ou sujeitam à natureza coerciva dos poderes deste mundo – nestes casos, estaríamos perante uma corrupção da nossa vivência do Evangelho nos termos em que aqui entendemos a palavra corrupção na frase de Acton.