domingo, novembro 29, 2015

Sobre a degradação em curso dos nossos costumes políticos (com uma tentativa de historiar a sua origem e de identificar os dois grandes perigos que dela decorrem)

Para a minha amiga Sónia dos Reis,
farmlady, empresária e líder autárquica do PSD em Grândola.


É bom começar por lembrar que, logo a seguir às eleições de 2011, o PS adotou uma posição de distanciamento em relação ao Memorando da Troika. Os Socialistas passaram a agir como se não tivessem nada a ver com o Memorando. A aplicação deste pelo governo de Passos Coelho foi sempre considerada à luz de duas ideias: o governo estava a ir «para além da Troika» e as condições impostas ao País pelos credores deveriam ser renegociadas em Bruxelas com «murros na mesa». Só não se percebia por que razão Sócrates não o fizera quando negociou o Memorando com os credores. Esta atitude justificava-se quer pela psicose de negação da realidade que se instalara no PS desde as eleições de 2009, quer por uma habilidade consciente de que assim se evitaria a responsabilização do PS pelas medidas de austeridade que estavam a ser implementadas. É importante explicar a psicose que se instalara no PS.

A crise financeira internacional de 2008 veio estragar a estratégia neokeynesiana de Sócrates (obras públicas faraónicas e despesas sociais generosas financiadas por endividamento externo crescente), embrulhada em lustroso papel de socialismo «moderno», «tecnológico», cosmopolita e pós-ideológico. Esta natureza pós-ideológica era patente na desenvoltura com que o poder socialista na versão de Sócrates convivia com certa banca privada, sem aparente nojo do mercado e dos negócios, e substituíra aparentemente o estatismo e os antigos combates ideológicos do velho socialismo pelas modernas e urbanas «causas fraturantes» (uma estratégia considerada unanimemente inteligentíssima pelos comentadores para esvaziar o Bloco de Esquerda). Daí que Sócrates se tivesse içado a líder do PS como moderado e mesmo centrista face à sinistrose rezingona de Manuel Alegre (primeiro seu adversário na disputa da liderança, depois candidato presidencial à revelia do líder).

Tudo isto se esboroou quando o recurso ao endividamento externo se tornou insustentável. Mas, entretanto, Sócrates construíra uma poderosa teia de poder pessoal que mudou o PS tal como o conhecíamos. Apesar dessa fama de líder socialista “pós-moderno”, Sócrates comportou-se como um simples cacique, fazendo aliados entre elementos da velha guarda (de preferência próximos do tempo do guterrismo) e sobretudo plantando no partido uma nova geração de fiéis que, como ele, não tinham currículo e apenas queriam protagonismo e lugares à sombra de um padrinho político (que Sócrates seria para eles como Guterres fora para si próprio). Quando Sócrates radicalizou o discurso, após perder a maioria absoluta em 2009, e à medida que o seu desespero crescia na exata proporção dos juros que os aforradores internacionais pediam pelas novas emissões de dívida soberana portuguesa, estes fiéis apolíticos, que teriam sido centristas se Sócrates continuasse centrista, radicalizaram-se obedientemente com o chefe. E passaram a condicionar completamente os jogos de poder dentro do PS, onde no fim do socratismo não se ouvia qualquer voz dissonante.

O grupo parlamentar saído das eleições de 2011 tinha toda a «nova geração» bem representada, o que impediria António José Seguro de fazer qualquer corte com a herança socratista. Não foi possível, por isso, o PS sequer esboçar um exercício de autoexame que qualquer pessoa ou agremiação no seu perfeito juízo teria de fazer: o que se passara no partido desde o guterrismo para alguém como Sócrates chegar onde chegou? Pela mesma razão, foi impossível o PS questionar os resultados económicos do consulado de Sócrates. A bancarrota do Estado era uma invenção, o Memorando mal negociado por Sócrates (entre outras razões porque parte substancial da dívida pública ainda estava ocultada pela engenharia contabilística do seu governo) era da responsabilidade dos partidos que assumiram então o poder e nada na estratégia neokeynesiana do anterior líder estava errado (apesar do País nada ter crescido com tanto estímulo e demand management).

Neste cenário, qualquer aproximação ou convergência com Passos Coelho e o PSD punha em causa o pacto negacionista em que o partido escolhera aprisionar-se para – acreditavam – poder sobreviver ao infortúnio de 2011. Admitir as falhas clamorosas de Sócrates seria um processo suicida: onde pararia o apuramento de responsabilidades? Quem não alinhara com o líder e não o defendera até ao fim? E que hipótese de sobrevivência política teria quem admitisse responsabilidades? A melhor estratégia era negar que houvesse razões para assumir responsabilidades. O problema, a origem do mal, teria de passar a ser outro, que permitisse a autovitimização: a ortodoxia financeira e orçamental defendida pela chanceler alemã e a que o governo de Passos Coelho era indecentemente submisso, aparentemente por livre escolha – servindo a velha tese da conspiração neoliberal para explicar tão improvável conversão ideológica do PSD e do CDS. E tudo o que se dizia sobre a chegada ao Memorando era um hediondo conjunto de mentiras. Se isto fosse repetido contínua e insistentemente, uma grande parte do País desconfiaria que teria mesmo de ser assim e não como o senso comum apontava serem as coisas. Deste modo, negociar com o PSD e com Passos Coelho era uma impossibilidade. A radicalização do discurso criaria um fosso intransponível porque afastaria a maioria PSD/CDS e a levaria a ter, por seu lado, um discurso reativo ao negacionismo reinante no PS. A indignação das vozes da maioria seria transformada em manifestação de indisponibilidade para a negociação e o «envolvimento» do PS. Assim se virava tudo convenientemente de pernas para o ar.

Uma das vozes que mais repetiu este delírio preocupante foi António Costa, catapultado pelos apoiantes de Sócrates e pelos bem-pensantes nos meios de comunicação social a exímio autarca de Lisboa e a grande promessa do PS, da governação e do País. Em Lisboa, Costa aterrara numa autarquia desgovernada por um incapaz e onde o PSD desistira da luta: conseguiu assim uma vitória retumbante, que os incautos acharam ser reveladora, não da circunstância política local, mas da idiossincrasia do homem. Costa sabia da sua fortíssima conivência com o socratismo e teve as mesmas razões que os outros para aderir ao negacionismo. Na patetice à solta a que se resume boa parte do comentário político, Costa era dado indiferentemente como candidato forte à presidência da República ou à chefia do Governo; caberia ao próprio optar por qualquer um dos grandes destinos. Para estes, o sucessor de Sócrates na liderança do PS, António José Seguro, fazia o papel de tontinho a quem ainda não haviam explicado que tudo o que ele queria pertencia por direito a Costa. Contrariamente a Seguro, Costa tinha «currículo»: este, na verdade, resumia-se ao facto de já ter sido ministro – pouco importando o facto mais relevante de não ter currículo quando foi ministro pela primeira vez.

À medida que desfilavam as dificuldades reais, imaginárias e fabricadas do governo de Passos Coelho, agigantou-se o mito de um Costa que arrasaria em qualquer eleição quando apeasse Seguro. Muitos socialistas acreditaram tanto nisso que não puderam suportar a tentação de Seguro de aceitar o repto do presidente da República para negociar com o Governo várias medidas a que convinha apoio alargado. Não custou nada, por isso, demonizar, enxovalhar e conspirar contra Seguro. Como ousava ele colocar-se no caminho de Costa e das promessas que com ele se materializariam? Costa defenestrou Seguro sem pruridos e com uma arrogância que só os cínicos não quiseram ver. A degradação dos costumes políticos começou dentro do PS e Costa assumiria a tarefa de a exportar a todo o sistema político português, tornando-se o coveiro do «arco da governação» do nosso regime constitucional.

É verdade que houvera um ensaio desta degradação no breve período em que Ferro Rodrigues foi líder dos Socialistas e em que fez uma oposição ao governo de Durão Barroso pautada por uma radicalização já alimentada de negacionismo (este em relação ao «pântano» em que o próprio Guterres assumiu ter deixado o País), de combate privilegiado aos outros partidos moderados (PSD e CDS) e de atitude trauliteira com linguagem duvidosa (o famoso “argumentário” do «governo da tanga»). Costa, porém, ao alinhar numa coligação negativa com o PCP e o Bloco de Esquerda para afastar do poder Passos Coelho, após as eleições de 4 de outubro último, parece ter lançado o PS na via sem retorno daquela degradação. De uma assentada, Costa rompeu as regras civilizadas – estabelecidas há quarenta anos – de viabilizar os primeiros programa e orçamento do governo apoiado pelo partido com mais deputados e de dar a esse partido a presidência da Assembleia da República. É verdade que, até agora, o PS tinha sido o principal beneficiário dessas regras, de que o PSD e o CDS tinham sido os mais frequentes executantes (a única vez que o PS o foi passou-se há 30 anos, depois da sua maior derrota eleitoral). Mas, sobretudo por isso, deveria perceber o quão contraproducente poderá esta quebra ser.

Identifica-se aqui o primeiro perigo iminente resultante da degradação em curso dos nossos costumes políticos, por ação acelerada de António Costa: o rebaixamento qualitativo da componente parlamentar do nosso regime político. Até agora, a «partidocracia» do nosso parlamentarismo autodisciplinava-se ao respeitar a regra de que cabia aos eleitores designar a força política que deveria suportar o novo governo: isto fazia-se com um princípio semelhante ao first past the post, ou seja, o chefe do partido com mais deputados eleitos tornava-se primeiro-ministro. Para que isso fosse possível aceitavam-se as regras de viabilização e trégua política já referidas. Os partidos (os do «arco da governação», bem entendido) recusavam, assim, a prática das combinações pós-eleitorais no parlamento para «cozinhar» governos sem a intervenção dos eleitores. Foi isso que permitiu que as eleições legislativas em Portugal se assemelhassem a uma corrida de (em geral, sobretudo dois) candidatos ao cargo de primeiro-ministro, apesar de o sistema parlamentar português não estar dotado de um bipartidarismo que assegure permanentemente maiorias alternativas e estáveis. Embora funcionasse com falhas, a regra first past the post tinha a virtude de aceitar uma decisão clara do eleitorado, não sujeita a interpretações, considerações e apetites dos diretórios partidários, que podem presumivelmente mudar ao longo da legislatura.

Foi esse facto que não divorciou ainda mais os Portugueses do sistema parlamentar e que os levou a confiar mais do que se diz nos partidos do regime – facto patente na estabilidade do nosso sistema partidário desde 1976. Os eleitores têm tido, apesar de tudo, a perceção de que a sua escolha conta e que é definidora da solução governativa que se segue à eleição do Parlamento – é essa a raiz, em parte saudável, da crença assumida (e não concorde ao formalismo constitucional) de que «elegem o governo». O precedente agora criado por ação de António Costa é o oposto de tudo isto e empurra-nos para a lógica dos governos resultantes das combinações parlamentares pós-eleitorais, dominadas pelos círculos muito restritos dos diretórios partidários e que, a prazo, criarão nos eleitores a ideia de que, ao votarem nas eleições legislativas, estão a dar um incontrolável cheque em branco aos diferentes líderes partidários. Esta mudança perigosa teve como efeito colateral nada despiciendo a implosão do «arco da governação».

Na verdade, todas estas regras de moderação (e civilidade) do nosso sistema parlamentar desenvolveram-se no quadro da formação e vigência do «arco da governação», pois pressupunham partidos apostados em preservar a sobrevivência do sistema e a possibilidade do seu próprio acesso ao poder em condições mínimas de governabilidade. Isto excluía a demagogia grosseira e o mais puro maquiavelismo no trato entre esses partidos do «arco». Preservava também a componente parlamentar do regime da necessidade de intervenções «disciplinadoras» do Presidente da República, como as que foram inevitáveis em 1978-79. Daquelas regras autoexcluíram-se durante quarenta anos o PCP e a extrema-esquerda, adversários confessos de toda esta cultura política. É assim que se pode perceber como a comparação do «arco da governação» ao Muro de Berlim, feita por António Costa, é expressão eloquente da degradação já declarada (e com epicentro no PS) dos nossos costumes políticos.

A implosão do «arco» pela mão de António Costa fez-se para permitir algo, para todos os efeitos, conjuntural: a negociação do seu acesso ao poder. Mas esse acesso acabou de fazer-se com elementos que já têm menos aparência conjuntural: além do sacrifício do «arco da governação», foi a cedência aos interesses estratégicos mais importantes do PCP (a reversão das concessões das empresas de transportes públicos e a privatização da TAP, onde se joga a influência sindical e eleitoral dos comunistas nas grandes áreas urbanas). É provável que cedências semelhantes e ainda pouco notadas estejam a caminho no setor da educação, onde a CGTP tem também grande influência e necessidade de mostrar eficácia política a uma grande clientela de funcionários públicos. As cedências ao Bloco de Esquerda são (para já) conjunturais e menos significativas do que as feitas ao bem implantado e resiliente PCP.

Mas este discurso da «queda do Muro» é outra face do negacionismo imperante no PS: desta vez, a negação da própria história do partido. O «Muro» – se assim pode ser chamado – foi erguido por Mário Soares ao recusar, em 1976, a armadilha da equívoca «maioria de esquerda» a que Cunhal quis atrair o PS para o dividir e destruir, criando um, dois, muitos Manuel Serra. Soares e os seus sucessores aliaram-se preferencialmente ao PSD e ao CDS, mesmo depois de estes dois terem demonstrado saber aliar-se entre si. O PCP só foi (e tardiamente) um parceiro de coligação autárquica em Lisboa, facto que teve relativamente pouca duração e não se reproduziu pelo País. A infeliz analogia com o Muro de Berlim vitimiza historicamente o PCP e introduz uma esquizofrenia na consciência histórica dos Socialistas, que parecem agora imputar a terceiros (o PSD? O CDS?) a autoria de uma exclusão de que foram eles próprios os criadores e atores e que ainda hoje é funcional e bem real onde o PS é o principal concorrente autárquico do PCP (no Alentejo sobretudo).


A implosão do «arco da governação» permite perceber o segundo perigo iminente da degradação em curso dos nossos costumes políticos: a criação de um clima de antagonismo que inviabilizará «acordos de regime» como os de 1982 e 1989 (revisões constitucionais) e de 1985 e 1999 (adesão à CEE e à moeda única). No momento atual, a opção pelas companhias à sua «esquerda» leva o PS a estar ainda menos predisposto e com menor margem de manobra política do que tem estado nos últimos anos para reconhecer a necessidade de reformar a Segurança Social – que é a maior bomba-relógio da nossa sociedade em vista das evidências demográficas e das transferências anuais do OGE, sem as quais já seria insolvente. Alguém já chamou a este problema a «guerra do Ultramar» deste regime e a comparação poderá pecar só por insuficiência. Não se trata de viabilizar programas de governo ou orçamentos, nem de tomar pequenas e circunstanciais «medidas difíceis». Trata-se de uma alteração de paradigma sem a qual o regime e a sociedade como a conhecemos não sobreviverão. Ora, o «arco da governação» e a sua capacidade de gerar «acordos de regime» era o instrumento necessário para fazer aquela alteração – ou para, pelo menos, começar a pensá-la.

[Ver também: O rol da desonra (acrescentado em 04.05.2018).]