sexta-feira, abril 29, 2016

190 anos da Carta Constitucional

A Outorga, conquista da maioridade
constitucional do reino.

Pedro IV e D. Maria II seguram a Carta
Constitucional (gravura do século XIX).
29 de Abril de 2016.

Passam hoje 190 anos sobre a outorga da Carta Constitucional por D. Pedro IV, em 29 de Abril de 1826.

Tratou-se da adaptação do nosso direito público a uma modernidade irrecusável, mas bem ancorada na tradição política do reino - na legitimidade dinástica e nos direitos, liberdades e garantias dos súbditos/cidadãos, já consagrados, mas até então não coerentemente integrados juridicamente.

Na sua redacção, no reconhecimento do melhor da nossa tradição jurídica, no equilíbrio de poderes que estabeleceu, nos direitos individuais gravados no artigo 145.º, a Carta Constitucional é o nosso melhor código de direito público de sempre.

Utilizando a feliz imagem de Luís de Magalhães, tratou-se da concessão de uma carta de foral colectiva.

Como tantas vezes se ouviu em Portugal no passado, que ecoe hoje também este grito sentido:

                                                             VIVA A CARTA!

quinta-feira, abril 28, 2016

Igrejas britânicas na Madeira

Church of the Holy and Undivided Trinity, Madeira.
Versão original da entrada «Igrejas britânicas», publicada no Dicionário Enciclopédico da Madeira, sem as modificações que o texto sofreu e que foram da responsabilidade dos coordenadores dessa obra.

A presença de comunidades estrangeiras organizadas e reconhecidas pelos poderes públicos está identificada em Portugal desde a Idade Média, sendo que o problema da sua liberdade religiosa só se colocou depois da separação entre católicos e protestantes, na sequência da Reforma do século XVI. De entre essas comunidades, as de súbditos britânicos eram as mais numerosas desde a Idade Moderna, dada a sua maior relevância económica, sendo também as que maior influência cultural e religiosa tiveram em Portugal.

A possibilidade de os britânicos não católicos residentes em Portugal gozarem de liberdade de culto doméstico parece remontar, pelo menos, à Paz de 1604 entre a monarquia hispânica e as potências protestantes do Norte da Europa. As garantias então concedidas não permitiam cultos públicos, e muito menos o proselitismo, e também não evitaram a ação do Santo Ofício contra britânicos e outros estrangeiros não católicos acusados de desrespeito ao culto ou às doutrinas católicas. Na sequência da Restauração portuguesa (1640) e da Paz de Vestefália (1648), estabeleceram-se tratados de amizade entre Portugal e a Inglaterra em 1642 e 1656, que asseguravam, numa base de reciprocidade, a liberdade de consciência aos ingleses anglicanos e protestantes residentes em ou em trânsito por território português e mesmo a posse de bíblias (no caso do segundo tratado).

A presença de capelães foi inicialmente restringida às comitivas de embaixadores, mas foi sendo aceite na segunda metade do século XVII, mesmo quando em Lisboa só residiam os cônsules (ORDERS, St. Andrew’s, 13ss, RIBEIRO, «O anglicanismo», 33ss, e HAMPTON, History, 9ss). Este facto explica que no Porto, junto do respetivo consulado, existissem também capelães anglicanos desde 1671, embora a sua presença em ambas as cidades não fosse contínua até 1693 (Lisboa) e 1709 (Porto), devido tanto a vicissitudes internas às comunidades britânicas como a conflitos com o Santo Ofício.

Na Madeira, o primeiro cônsul britânico foi nomeado em 1658 (NEWELL, The English, 5), sendo provável que a presença de serviços religiosos e de capelães ocasionais remonte a essa época. Na segunda metade do século XVIII, sobretudo depois da sua desvinculação a Roma e neutralização operadas pelos estatutos de 1774, o tribunal português do Santo Ofício deixou de ser o poderoso elemento de pressão e vigilância sobre a vida religiosa dos estrangeiros que até a ação da Coroa condicionava na negociação com as outras Cortes dos privilégios a conceder às comunidades radicadas no reino. Assim, aquando das Invasões Francesas (1807-1811) e do tratado luso-britânico de 1810 (celebrado no Rio de Janeiro), havia já mais de um século de presença em Portugal de capelanias anglicanas e de proteção legal da liberdade de consciência e de culto dos súbditos britânicos não católicos (incluindo já os escoceses, após o Ato de União de 1707) e algumas décadas de distensão entre a sociedade católica portuguesa e as comunidades não católicas de estrangeiros residentes. Foi nesse contexto que a edificação e consagração de cemitérios e de edifícios dedicados ao culto (capelas e igrejas) se puderam estabelecer e consolidar, aceleradas pela presença militar britânica em Portugal no contexto da Guerra Peninsular, para não mais voltarem a ser postas em causa. A única ocasião em que a autonomia das igrejas britânicas veio a ser posta em causa no ordenamento jurídico-político português foi aquando da publicação da Lei de Separação do Estado das Igrejas, de 20 de abril de 1911, sendo intenção do governo revolucionário então estabelecido de a estender às capelanias estrangeiras; a exigência, nomeadamente do Governo britânico (sob o que este fazia depender o reconhecimento do novo regime republicano), de um regresso ao status quo ante das garantias asseguradas no tempo da Monarquia, acabou por ser aceite, isentando as capelanias estrangeiras do disposto na lei (MATOS, A Separação, 178-185).

Aliás, todo este acquis de tolerância, estabelecido na sua forma completa sob a regência do futuro D. João VI – e que se tornou então também extensível aos Judeus –, virá a ser consagrado constitucionalmente na Carta outorgada por D. Pedro IV em 1826. Esta, no seu artigo 6.º, garantia aos estrangeiros não só o culto doméstico da respetiva religião, mas também o «particular, em casas para isso destinadas», isto é em templos próprios. Os cultos, anteriormente realizados nas instalações da embaixada e dos consulados ou nas casas particulares de alguns residentes, puderam passar a fazer-se em templos para o efeito construídos a partir do período da Guerra Peninsular – em Lisboa, o edifício já em uso pelos Britânicos em 1815 foi substituído por outro edificado de raiz em 1822, e no Porto uma igreja foi inaugurada em 1818 e ampliada em 1867 (altura em que a comunidade de Lisboa construiu o atual edifício da igreja de São Jorge).

Outro aspeto importante da vida religiosa das comunidades estrangeiras não católicas prendia-se com o enterro dos seus mortos e a maior ou menor dignidade que lhes era permitido colocar nesses atos. Até ao século XVIII, o enterro de residentes não católicos fazia-se em terrenos não consagrados ou em areias junto ao curso de rios, sendo por vezes os corpos deitados ao mar, como ocorria na Madeira. O primeiro cemitério britânico só foi permitido em Lisboa no fim do primeiro quartel de Setecentos, tendo o primeiro funeral sido realizado em 1724; só em 1787 se estabeleceu no Porto outro cemitério britânico. Ambos os cemitérios passaram a receber protestantes de outras nacionalidades.

Na Madeira (Funchal), um primeiro cemitério (Old Factory Burial Ground) foi estabelecido em 1767 no atual Largo do Visconde Ribeiro Real e, dada a presença militar britânica entre 1807 e 1814, foi criado junto ao mesmo local, na Rua da Carreira, um segundo cemitério, inicialmente militar, em 1808, várias vezes ampliado (New Burial Ground), que passou também a receber civis e para o qual foram trasladadas as sepulturas do primeiro cemitério, desativado em 1890. Em 1808 foi também decidido, numa reunião do cônsul com a comunidade, a construção de uma igreja, o que o tratado de 1810 veio facilitar. O terreno para esse efeito adquirido (rua do Quebra Costas) era próximo dos cemitérios e o projeto foi entregue ao escocês Henry Veitch, cônsul-geral desde 1813 e arquiteto amador. A igreja só foi inaugurada em março de 1822 e o seu estilo neoclássico puro deveu mais aos gostos da época do que a qualquer intenção de lhe retirar a aparência de templo (GREGORY, The Beneficent, 79, e NEWELL, The English, apêndice III). A presença dos militares britânicos na Madeira fez-se acompanhar de um capelão anglicano, o Rev. W. G. Cautley, que chegou a ser convidado pela comunidade local e pelo cônsul para permanecer na ilha após a retirada das tropas aliadas.

Era a comunidade britânica de comerciantes e seus familiares na Madeira que assegurava a remuneração do capelão e a manutenção do cemitério, tal como acontecia em geral nas comunidades britânicas semelhantes espalhadas pelo Mundo, que tinham um nível notável de auto-organização e autossustentação. Embora um regulamento interno da Igreja de Inglaterra, de 1633, concedesse ao bispo de Londres jurisdição eclesiástica sobre as comunidades anglicanas no estrangeiro, o elevado grau de autonomia económica das comunidades, a ligação direta aos cônsules e embaixadores (dependentes do Governo através do Foreign Office) e a diversidade de sensibilidades religiosas representadas entre os britânicos expatriados levava-os a tomar em mãos a sua organização religiosa e a provisão dos capelães (NEWELL, The English, 6ss, GREGORY, The Beneficent, 78ss, e PINNINGTON, «Anglican», 328ss).

A liturgia seguida era a do Book of Common Prayer da Igreja Anglicana, uma vez que a maioria dos expatriados pertencia à igreja de Estado inglesa, mas o governo eclesiástico da comunidade era na prática congregacional (independente) e a tendência teológica e pastoral notoriamente de cunho bastante evangélico ou protestante («low church» dentro do Anglicanismo), de forma a poder incluir mais facilmente quer ingleses não conformistas quer os próprios presbiterianos escoceses. Era precisamente o que acontecia na Madeira. O diferendo do cônsul-geral Veitch com o Rev. Henry Leeves, capelão entre 1815 e 1817, sobre assuntos especificamente relativos à vida eclesiástica, demonstra o quanto a liderança pertencia aos principais comerciantes e ao cônsul, que entendiam o papel do capelão como pouco mais do que o de um funcionário encarregado da liturgia.

A mesma atitude existiu em relação a tentativas de interferência de bispos anglicanos na vida da capelania (casos dos bispos de Barbados e de Calcutá), o que explica que a jurisdição do bispo de Londres também não fosse tida em grande consideração, mesmo antes do Consular Advances Act de 1825, aprovado pelo Parlamento britânico. Aquela lei limitou um pouco a autonomia das comunidades de expatriados quanto à administração das capelanias, pois a nomeação e demissão do capelão passou a caber, depois de indicação do bispo de Londres, ao Governo em nome do soberano, que enviaria a partir de então um subsídio anual para pagar metade do salário do ministro (a outra metade seria assegurada pela comunidade). As opções quanto ao governo da capelania deveriam ser feitas numa reunião anual de todos os contribuintes da comunidade (40 libras de inscrição e 3 anualmente), dirigida pelo cônsul-geral, na qual seriam eleitos os três trustees que, juntamente com o capelão, administrariam a igreja ao longo do ano.

Estas medidas foram aplicadas na Madeira a partir de 1831 e, dois anos depois, após a resignação do Rev. W. W. Deacon, foi nomeado um novo capelão, o Rev. R. T. Lowe. No entanto, a partir de 1836, estalou um conflito entre o novo capelão e o cônsul-geral que iria durar décadas e dividir a comunidade britânica da Madeira. Lowe tinha uma posição «high church», mais ritualista, e tendia a agir com um protagonismo que Veitch e outros membros da comunidade não estavam preparados para reconhecer-lhe. Um dos assuntos que causou polémica foi a recusa de Lowe em celebrar casamentos no consulado, escudando-se, para tanto, no English Marriage Act (aliás, revogado em 1836), mas contradizendo os hábitos da comunidade. Invocando alegadas falhas no comportamento moral do cônsul-geral (que, por outro lado, se opunha ferozmente às pretensões proselitistas do capelão), Lowe conseguiu que o bispo de Londres apoiasse a sua posição e o Governo britânico acabaria por suspender Veitch do seu cargo, que passou para George Stoddart. No entanto, anos depois, as práticas litúrgicas do capelão haviam de tal modo instalado um ritualismo estranho aos membros da comunidade residentes na Madeira (embora fossem do agrado de alguns visitantes) que, na reunião anual de 1847, foi votada uma petição do cônsul à rainha Vitória para a substituição do capelão. Tendo o Governo acedido ao pedido da maioria da comunidade e à nomeação de um novo capelão, o Rev. T. K. Brown, criou-se tanto um conflito com o bispo de Londres (que não aceitava a substituição) como uma divisão entre os anglicanos da ilha, pois Lowe manteve-se na Madeira e abriu a chamada “Capela do Beco”, para onde o seguiram algumas dezenas de fiéis. Com o regresso de Lowe a Inglaterra em março de 1852 (embora voltasse à Madeira uma meia dúzia de vezes), a capela deixou de ser reconhecida pelo bispo de Londres e acabou por encerrar os seus serviços regulares, fechando definitivamente em 1892 (NEWELL, The English, 15-28, e GREGORY, The Beneficent, 81-86).

Entretanto, por motivos a que não fora alheio o pastorado de Lowe, vários residentes tinham abandonado a capelania anglicana para se juntarem à capelania escocesa, que iniciara os seus serviços religiosos na ilha em 1840. De facto, desde 1838 que um ministro presbiteriano, Mr. Barrie, passara a oficiar serviços numa ampla sala alugada na Travessa do Surdo para aqueles (sobretudo escoceses e também alguns ingleses) que, como ele, não aceitavam as opções litúrgicas de Lowe. Desde 1840, a nova igreja ligara-se ao presbiterianismo escocês, assumindo-se como nova capelania e registando dois anos depois, no auge da sua vida como congregação, 72 membros comungantes. Em 1843, este grupo decidiu aderir à Igreja Livre da Escócia (que se separara então da oficial Igreja da Escócia), o que denota a sua forte identidade evangélica, impossibilitando qualquer acesso a fundos oficiais e levando alguns escoceses (como o ex-cônsul Veitch) a afastar-se.

Igreja Presbiteriana da Madeira.
Com os fundos necessários já reunidos, em 1857, a igreja presbiteriana da Madeira decidiu construir um templo de raiz, para o que adquiriu um terreno no Funchal, na rua do Conselheiro. Inaugurada na primavera de 1861, a igreja pôde ser construída com forma exterior de templo apesar de visível da via pública. Esta data, no entanto, coincidiu com o declínio da congregação, uma vez que a crise no comércio vinícola levou a um êxodo de residentes britânicos, fazendo o número de comungantes cair para pouco mais de 40. Em 1862, o capelão resignou, alegando a quebra de membros e a sua fraca remuneração, havendo um hiato de nove anos até que novo capelão fosse nomeado (Rev. Alexander Paterson).

Nesse período, um português chamado Manuel Melim ficara encarregado de acompanhar os convertidos portugueses reunidos nesta igreja. Esta presença de nativos denota uma diferença fundamental entre as duas capelanias: enquanto a anglicana sempre evitara encorajar ou envolver-se em ações de proselitismo (com a preocupação explícita de não ofender as autoridades católicas locais), a presbiteriana (sobretudo depois da sua ligação à Igreja Livre) arriscou um trabalho missionário junto dos portugueses no período imediatamente posterior à perseguição de que foram alvo os convertidos do Dr. Robert R. Kalley, alguns dos quais permaneceram na ilha. Aliás, o trabalho de Kalley começara de forma independente e a Igreja Livre aceitara associar-se a ele já depois de iniciado e expandido sem seu auxílio; é, no entanto, indubitável que entre os membros desta igreja na Madeira existia uma predisposição para o proselitismo que explica o auxílio aos convertidos remanescentes de Kalley após 1846.

Por contraste, pode notar-se numa petição enviada pela capelania anglicana ao Foreign Office em agosto de 1861 a preocupação oposta. Tendo o Rev. T. K. Brown sido nomeado para Lisboa, os residentes reunidos pediam a Londres, «unanimemente», um pastor que evitasse «ofender os preconceitos da comunidade católica romana deste país» (NEWELL, The English, 30-31). Alguns anos depois, esta posição, que caracterizou sempre a igreja anglicana da Madeira, estava em claro contraste com o que se passava em Lisboa após 1864, com a chegada do capelão Thomas G. P. Pope. Tal como os seus homólogos presbiterianos de Lisboa e do Funchal, Pope apostou no proselitismo e protegeu um projeto eclesial (neste caso, de feição episcopal) completamente virado para os Portugueses (SANTOS, «A primeira», passim).

Pastoreando a igreja escocesa, mas valorizando o trabalho evangélico junto dos Madeirenses, o Rev. Paterson permaneceu 33 anos na Madeira. Após o interregno que sucedeu à sua demissão, a igreja presbiteriana passou a cooperar, por volta de 1913, com uma missão norte-americana, desenvolvendo um trabalho cada vez mais voltado para os naturais da ilha. Mantiveram-se serviços mensais em inglês para o número cada vez mais reduzido de britânicos residentes e para visitantes, mas o próprio Scottish Colonial Comittee (órgão missionário da Igreja da Escócia, a que se reuniu a Igreja Livre em 1929) reconheceu em 1950 que a sua ajuda à manutenção do pastor se devia à obra missionária junto dos portugueses (GREGORY, The Beneficent, 86-88). Em 1952, esta igreja já só nominalmente «escocesa» foi incorporada na recém-formada Igreja Evangélica Presbiteriana de Portugal. Em 1954, com a morte do último ministro escocês residente, o Rev. J. Calderwood, grande parte dos membros escoceses da igreja passaram para a capelania anglicana (NEWELL, The English, 53).

Assim, a capelania escocesa, tornada missão herdeira do trabalho de Kalley, naturalizou-se progressivamente até ao ponto de se tornar igreja portuguesa e ser absorvida por um projeto eclesial mais amplo, de projeção nacional. Esta evolução contrastou com a da capelania escocesa de Lisboa, associada desde o início à Igreja Livre da Escócia em 1866. O capelão Robert Stewart acolheu um grupo de fiéis de língua portuguesa, mas britânicos e portugueses mantiveram-se separados até que, mais tarde, condicionados pelas restrições impostas pela Lei de Separação de 1911, as duas comunidades seguiram caminhos distintos (ORDERS, St. Andrew’s, 19ss).

Quanto à capelania anglicana, ocorrera em 1873 uma mudança importante: o anúncio da revogação pelo Parlamento britânico da ajuda do Governo ao pagamento dos capelães (com efeito a partir de 1875), que passava a ser novamente da integral responsabilidade das comunidades. A mudança foi bem acolhida pelos membros da comunidade da Madeira, uma vez que lhes devolvia a autonomia plena na gestão financeira da capelania e do cemitério. De acordo com a nova legislação aprovada em Westminster, constituiu-se então o Church of England Chapel and British Cemeteries Trust for Madeira, com uma direção constituída por três trustees eleitos anualmente, acumulando a função de gestores dos assuntos administrativos da capelania. O estatuto legal do Trust foi aprovado, pelo lado português, por decreto de 18 de janeiro de 1876. O novo regulamento então aprovado internamente foi assinado por George H. Hayward, presidente, e por John B. Blandy, Chris. Donaldson e Leland C. Cossart, trustees. O capelão passava a ser escolhido por um período determinado e o presidente do Trust (ou Establishment) deveria ser o bispo anglicano que exercesse controlo espiritual sobre a Madeira. Desde 1875, coube ao bispo de Gibraltar essa incumbência, transferida em 1886 para o bispo de Serra Leoa (para facilitar as visitas episcopais); em 1932, esta diocese foi dividida e a Madeira ficou na parte norte, a nova diocese do Norte de África; em 1949, a Madeira regressou à diocese de Gibraltar. A velha capelania anglicana deixava, assim, tal como as suas congéneres do Continente, de ser igreja consular para se tornar igreja da comunidade de crentes residentes na Madeira e espiritualmente dependente de uma diocese da Igreja de Inglaterra ou da Comunhão Anglicana, embora com autonomia administrativa e de escolha do capelão. Desde então foi adotada a denominação de Church of the Holy and Undivided Trinity (Igreja da Santa e Indivisível Trindade). Esta organização manteve-se, com pequenas alterações, nos tempos subsequentes. Em 25 de maio de 1926, a qualidade de membro e eleitor das reuniões anuais (General Meeting) foi alargada a todos os residentes contribuintes com pelo menos um guinéu (£1,05) por ano, o que denota o enfraquecimento económico da comunidade e a diminuição de membros empenhados na vida da igreja na Madeira (NEWELL, The English, 32-33).

Atualmente, a igreja recebe sobretudo turistas em trânsito pela Madeira (nem todos britânicos), variando a assistência nos cultos dominicais entre 70 e 150 pessoas ao longo do ano (http:/www.holytrinity-madeira.org). Apesar da diminuição da comunidade de anglicanos residente (cerca de 700 em 1822, 185 em 1931 e 70 atualmente), a igreja manteve, assim, médias de assistência ao culto superiores à da sua congénere lisboeta.


BIBLIOGRAFIA: GREGORY, Desmond, The Beneficent Usurpers: A History of the British in Madeira, Londres, Associated University Presses, 1989; HAMPTON, John D. [revisto por Rev. E. N. Staines], History of the Lisbon Chaplaincy, S.l., [Capelania Anglicana de São Jorge, Lisboa], 1989 (1.ª ed. 1965); MATOS, Luís Salgado de, A Separação do Estado e da Igreja: Concórdia e Conflito entre a Primeira República e o Catolicismo, Alfragide, D. Quixote, 2010; NEWELL, H. A., The English Church In Madeira, Now The Church of the Holy And Undivided Trinity: A History, Oxford, The University Press, 1931 (reed. 1973); ORDERS, D’Arcy, St. Andrew’s Presbyterian Church, Lisbon, Portugal, Founded 1866: A History, Parede, St. Andrew’s Church, 1990; PINNINGTON, John E., «Anglican Chaplaincies in Post-Napoleonic Europe: A Strange Variation on the Pax Britannica», Church History, vol. 39, n.º 3 (Set. 1970), pp. 327-344; RIBEIRO, Jorge Martins, «O anglicanismo em Portugal do século XVII ao XIX», in Luís A. de Oliveira Ramos et al. (org.), Estudos em Homenagem a João Francisco Marques, Porto, Faculdade de Letras, 2001, pp. 339-353; SANTOS, Luís Aguiar,  «A primeira geração da Igreja Lusitana Católica Apostólica Evangélica (1876-1902)», Lusitania Sacra, 2.ª série, n.º 8, 1996-1997, pp. 299-360.

quinta-feira, abril 21, 2016

Do «editor escolar» como «artesão»

Nem todas as pessoas podem ver num produto acabado (ou em dois ou três) o resultado de um ano do seu trabalho. O editor de um manual escolar pode. É uma sensação muito forte, mais parecida com a de um artesão do que com a de outros editores.
Capa do novo manual de História e Geografia de Portugal
de 5.º ano da Santillana. Ver aqui.

Aquilo que sente ao ver o livro já impresso não é exactamente o mesmo que sente um profissional análogo em edições gerais - esses editam em grande quantidade livros de texto, que não foram trabalhados com tanto detalhe, corte, recorte e acrescento, polimento e atenção ao pormenor, página a página. Qualquer profissional deste segmento do mercado editorial olha para estes produtos como um artesão olha para um produto finalizado, feito pelos do seu ofício: com olhos de quem sabe que tudo foi feito e refeito, observado, pensado e mexido, percebendo o que está mais ou menos conseguido, apreciando mais ou menos as soluções e acabamentos encontrados, adivinhando a experiência, a sensibilidade e as competências de quem editou o projecto. Várias pessoas contribuíram para o manual (desde logo os autores), mas foi o editor que coordenou todo o processo; foi por ele que passou o trabalho de todos, foi ele que aprovou o contributo de cada um ou o substituiu ou modificou, foi ele que foi tomando decisões que permitiram que os diferentes contributos convergissem num produto coerente e acabado.

O olhar sobre o manual escolar finalizado e impresso, do ponto de vista do editor, é feito a vários níveis: enquanto produto de arte gráfica, enquanto produto de texto, enquanto produto que reproduz variada iconografia, enquanto produto didáctico. Ao observar e manusear o manual, vemo-lo como uma obra que em nós desperta ou não uma sensação de equilíbrio nos sentidos e de satisfação estética; lemos o texto e este ou nos agarra e conduz na sua narrativa ou não; analisamos toda a parte iconográfica (dando como adquirida a sua boa qualidade intrínseca) e ou ela se articula bem com o texto e funciona como uma extensão natural do conteúdo discursivo daquele ou não; simulamos o manuseamento do manual como se fôssemos utilizadores (docente ou discente, num exercício difícil e falível, mas necessário) e, nele, os elementos expositivos e práticos ou se articulam bem e nos puxam para o prazer de o explorar e utilizar ou não. É neste olhar a vários níveis que nos apercebemos se temos nas mãos e sob os nossos olhos um nado-vivo literário, estético e didático ou algo que apenas na forma se lhe assemelha.

Não é raro, meio a sério, meio a brincar, alguns de nós tratarmos estes livros como "filhos". É um sentimento instintivo, mas que me foi desaconselhado logo no primeiro ano de trabalho na Santillana por um editor veterano da casa-mãe, Julián Abad Caja, preocupado em incutir-nos um género de espírito crítico metódico em relação ao nosso próprio trabalho. Esse distanciamento não é nem pode ser instintivo depois de um ano de tanta dedicação e preocupação, de centenas de horas revendo e refazendo originais, seleccionando imagens, acompanhando o trabalho de gráficos e desenhadores e, depois, a paginação em várias provas, com novas revisões e sempre mil e um ajustamentos. Mês após mês, vemos o livro a tomar forma e começamos a imaginá-lo já parecido com o que ficará. De repente, o trabalho duro inicial dá lugar a uma relação com algo que já tem identidade e ao qual nos começam a prender emoções fortes (de reconhecimento no que vemos, de defesa instintiva, de irritação por nos absorver quase toda a energia). O sentimento de paternidade, por mais alegórico que seja, parece justificado.

Mas o Julián tinha razão: a melhor maneira de fazer um manual escolar crescer é ver logo para lá dele. Esse «amor» tem de conter também a predisposição para o superar. Passa, pois, por antecipar as suas dificuldades, por equacionar outras opções, por saber ver nos outros, seus concorrentes, elementos a ter em consideração. O nosso verdadeiro «filho», enquanto editores, é a nossa produção continuada, de que cada manual (e cada ano) é apenas uma «geração» ou uma fase. E para educar, ou ajudar a crescer, é necessário esse exercício crítico em relação aos objectos do nosso trabalho - ou do nosso amor. E poder aqui colocar «trabalho» e «amor» como sinónimos ou equivalentes é um motivo de gratidão.

sábado, abril 02, 2016

Considerações sobre os manuais escolares e o debate em torno da sua "gratuitidade"

Declaração de interesses

Antes de mais, começo por fazer uma «declaração de interesses»: trabalho em edição de manuais escolares há mais de dezasseis anos. Este facto tornar-me-á parte interessada nesta questão, mas, por outro lado, deverei ser alguém que sabe minimamente do assunto de que discorre neste texto. As opiniões que aqui apresento são, porém, da minha exclusiva e pessoal responsabilidade.

O que significa «gratuitidade» dos manuais

O XXI Governo Constitucional anunciou recentemente a introdução da gratuitidade dos manuais escolares para o 1.º ano de escolaridade e ficou prometida a sua extensão progressiva a outros anos do Ensino Básico.

Convém esclarecer a noção de gratuitidade aplicada aos manuais escolares. Aquela pode aplicar-se, à primeira vista, ao adquirente (o encarregado de educação), mas importa chamar atenção para o facto de que os manuais vão continuar a ter de ser concebidos, realizados, produzidos e distribuídos – e que continuarão, assim, a ter custos que alguém terá de pagar.

Neste contexto, o que o Governo está a propor é que os gastos em que incorriam até agora os adquirentes sejam partilhados pelos restantes contribuintes (através de impostos, de dívida pública ou de outro meio de financiamento da despesa pública). Gratuitidade propriamente dita não há – o que há é uma difusão dos custos de aquisição dos manuais em uso por todos os contribuintes.

Uma vez que o debate público sobre o livro escolar é geralmente feito por pessoas da classe média ou média alta, é estranhamente esquecido que existe há muitos anos em Portugal um sistema público de oferta ou empréstimo de manuais escolares a estudantes de famílias carenciadas. Implícita no debate sobre o livro escolar está quase sempre a ideia de que essas famílias carenciadas seriam prejudicadas pelos preços (alegadamente) demasiado altos praticados pelas editoras escolares. O esquecimento conveniente destes apoios públicos – reforçados, aliás, por várias câmaras municipais – distorce o debate e introduz-lhe uma componente emotiva que só pode fazer-nos derrapar para a demagogia.

As ideias-feitas sobre o preço dos manuais escolares

A popularidade da ideia da «gratuitidade» dos manuais escolares radica na convicção acriticamente repetida de que os manuais escolares são «caros». Mais: que o são porque as editoras escolares, de alguma forma, se conluiam para manter esses preços acima do que seria razoável para assegurar a rentabilidade da sua atividade.

Se essa fosse a realidade seria difícil explicar por que razão se tem assistido, nos últimos anos, a uma concentração das editoras em grandes grupos. Várias pequenas editoras escolares foram adquiridas por editoras maiores, o que dificilmente aconteceria se estivessem a colher grandes proventos na sua atividade.

Contrariamente à convicção irrefletida e generalizada, os materiais didáticos são produtos caros em termos de realização e produção. A quantidade de pessoas que trabalha num manual escolar é muitíssimo maior e diversificada do que a que trabalha num simples livro de texto. Se comparados com simples livros de texto (como são a generalidade dos livros de edições gerais), os manuais escolares são realizados por equipas de autores a que se juntam consultores científicos e, nos últimos anos, uma certificação oficial que é imposta pelo Ministério da Educação, mas que é paga pelas editoras. Além disso, são livros que incluem imagens (cujos direitos são pagos), mapas, gráficos, ilustrações e infografias feitos de raiz (que têm custos) e que são impressos a cores e em condições mínimas de robustez.

Acresce a estas características sui generis do livro escolar o facto de que as editoras oferecem, em todos os anos de novidades (que obedecem a um calendário de adoções estabelecido pelo Ministério da Educação), milhares de livros a todos os professores em exercício. Os docentes de todos os anos de escolaridade não adquirem livros – são as editoras que lhos oferecem, obviamente com custos elevados. Este facto nunca é referido, mas são as editoras escolares que pagam os materiais didáticos que permitem aos docentes de todas as disciplinas e de todos os anos de escolaridade fazerem diariamente o seu trabalho nas escolas.

No caso das editoras mais pequenas, com quotas de mercado mais reduzidas, as tiragens de livros gratuitos para os professores excedem muitas vezes as tiragens de livros para os alunos, adquiridos pelos encarregados de educação. São livros «invisíveis» para a generalidade do público, mas que foram produzidos e pagos pelas editoras, sem qualquer ganho direto.

Nas últimas décadas, estas ofertas aos professores – que se tornaram uma instituição adquirida e indiscutida – complexificaram-se e incluem recursos de avaliação (fichas, guiões de trabalho, etc.) e de programação do trabalho letivo (planificações e planos de aula), além de um conjunto cada vez mais desenvolvido de recursos multimédia para projeção e utilização em sala de aula. Estes materiais têm contribuído para uma melhoria do trabalho dos docentes sem que o Ministério da Educação e os contribuintes os tenham de pagar.

O mercado do livro escolar não é um mercado livre

A responsabilidade do Estado na moldagem da atual configuração do mercado da edição escolar tem sido pouco considerada. O preço dos livros escolares é, de há muito, tabelado pelo Governo. Dada a convicção generalizada, também há muito tempo, de que o preço dos manuais é alto, é fácil perceber que a tendência dos governantes não é permitir grandes aumentos de preços.

Esta situação de preços tabelados beneficia objetivamente (em termos concorrenciais) as grandes editoras e grupos editoriais, que estão em posição de realizar economias de escala na produção e divulgação – que se tornam mais caras e arriscadas para as suas concorrentes mais pequenas.

A este facto soma-se a instabilidade normativa e curricular a que o Ministério da Educação sujeita o trabalho das editoras e que as tem feito incorrer em custos de que ninguém fala e que dificultam o planeamento estratégico da sua atividade. Mais uma vez, as pequenas editoras são as que ficam mais vulneráveis por terem menos almofadas financeiras e menos capacidade de realizar economias de escala para amortecer estes embates muitas vezes imprevistos.

No entanto, isto não quer dizer que as grandes editoras sejam responsáveis por esta situação. A sua atividade está condicionada e é prejudicada pelos mesmos elementos que afetam as pequenas; simplesmente, elas estão em melhores condições de suportar estes choques.

O que, de qualquer forma, deve ser claro é que o mercado da edição e do livro escolar é particularmente regulado e condicionado pela ação arbitrária das «políticas públicas» definidas pelo Estado para as áreas da edição e da Educação – estando longe, pois, de ser um mercado livre em que as editoras «fazem o que querem».

O que são bons livros e bons autores

O manual escolar é um produto final que tem um longo trabalho de anos (para não dizer de décadas) por trás. Há quem julgue que seria fácil «encomendar» livros aos «bons autores» e que esses livros apareceriam para ser impressos. Tal ideia resulta de um completo desconhecimento sobre como se faz um bom livro didático ou de como se «faz» um bom autor.

Ninguém aprende a fazer materiais didáticos na sua formação profissional – nem os professores recrutados pelas editoras como autores. As editoras contratam docentes para esse trabalho porque são eles que conhecem melhor do que ninguém a realidade das escolas, as componentes curriculares, os hábitos pedagógicos estabelecidos e as necessidades dos seus colegas, bem como as dos discentes em ambiente de escola. Mas isso não chega para se ser um bom autor. As editoras têm de arriscar, apostando em professores que lhes parecem ter potencial como autores. Enganam-se algumas vezes. É um trabalho de descoberta e que vai sendo afinado ao longo dos anos e em que os profissionais das editoras – nomeadamente os coordenadores editoriais ou editores – têm um input muito maior do que se pensa.

São as editoras que descobrem profissionais com potencial e que os formam como autores. Frequentemente, os novos autores integram-se em equipas já consolidadas e fazem um autêntico percurso de formação e maturação de vários anos. O mesmo poderia ser dito sobre outros profissionais, muitas vezes externos, que trabalham nos projetos didáticos: paginadores, documentalistas, infografistas, ilustradores, revisores linguísticos e até consultores científicos e pedagógicos recrutados em universidades e escolas superiores de educação.

As editoras escolares são vistas por muitos como empresas apenas movidas pelo objetivo do lucro – e certamente que esse objetivo faz parte da sua atividade como organizações privadas que têm de remunerar o trabalho pelos seus próprios meios, assegurar investimentos sem recurso excessivo ao crédito e uma margem financeira que as coloque ao abrigo de maus anos de vendas e dos imponderáveis que afetam a sua atividade no mercado.

Mas cada editora é muito mais do que isso. Cada uma delas transporta uma cultura própria, um know-how transmitido entre gerações de profissionais e que se entrecruza com o trabalho de colaboradores externos que são integrados nesse ambiente único em que circulam conhecimentos, experiência acumulada e hábitos de trabalho em equipa. É nesse ambiente que nascem os manuais escolares. Esse ambiente leva décadas a construir. Não se cria de um dia para o outro nem se gera com a constituição de equipas ad hoc como as que certos organismos do Estado formam para elaborar documentos ou pareceres.

Ninguém conseguirá fazer bons manuais escolares fora deste ambiente empresarial. Esta é uma realidade em Portugal e em todo o Mundo.

Onde está o verdadeiro perigo de más práticas

As editoras escolares são ciclicamente apontadas por certas vozes como organizações poderosas e influentes sobre o sistema educativo e o Ministério da Educação. Esta ideia pode radicar numa simples ilusão de ótica. Essas editoras são, sem dúvida, por razões já aqui referidas, importantes parceiras dos professores no seu trabalho diário. Por razões também já referidas, veem a sua atividade profundamente afetada por decisões tomadas por sucessivos governos – que afetam tanto a sua atividade como o trabalho dos professores nas escolas.

Que, neste contexto, existam contactos entre essas editoras e responsáveis do Ministério da Educação não é só natural – é inevitável. Que as editoras tentem dar a conhecer os seus pontos de vista sobre decisões que as afetam é algo que só pode espantar pessoas distraídas. Que desses contactos se tirem ilações sobre más práticas, é algo que convém provar. Essas más práticas até podem (em teoria e ocasionalmente) acontecer, mas não devem servir para justificar uma mudança completa de um estado de coisas que não está diretamente relacionado com elas.

A lógica da difusão da suspeição e da demonização pública de pessoas e organizações pode ser instintiva para muita gente, mas não se coaduna com uma sociedade civilizada e com o Estado de Direito. Tudo o que nos impeça de olhar racionalmente para a realidade pode ter custos muito elevados. As intenções podem ser as melhores, mas isso não exime ninguém de responsabilidade.

Atualmente, temos um processo claro, descentralizado e fiscalizável de prescrição de manuais escolares pelos grupos disciplinares de docentes de cada escola. Temos um processo claro, no mercado, de aquisição pelos encarregados de educação dos manuais prescritos. A «gratuitidade» vai processar-se como? Quem adquirirá os manuais? Como chegarão eles aos discentes ou aos encarregados de educação? De quem serão os manuais? Como será suposto um aluno manusear um manual destinado à partida à reutilização? E em que estado chegará esse manual às mãos de um aluno no seu sexto ano de utilização (período de vigência dos manuais prescritos)? Que processo alternativo ao existente será tão célere na aquisição e distribuição dos manuais antes do início do ano letivo?

A estas perguntas somam-se outras, para terminar. Fazer sair do mercado a compra e distribuição dos manuais para a entregar ao Ministério da Educação, às câmaras municipais ou aos agrupamentos escolares não vai criar grandes incentivos para essas entidades manifestarem preferências por certas editoras e para pressionarem os grupos disciplinares na decisão da prescrição? Um tal sistema não estará a criar todas as condições para ser muito mais opaco do que o atual – e propenso a más práticas?


A alternativa, dentro da lógica da «gratuitidade», poderia ser o envio de um «cheque escolar» às famílias para aquisição de manuais. Mas antevêem-se aqui, facilmente, custos de fiscalização enormes sobre um processo de casuística medonha. Mais fácil seria estabelecer uma dedução fiscal (sem «tetos») dos gastos com manuais escolares nas declarações de rendimentos dos encarregados de educação, os quais deveriam, no ato da compra, facultar ao livreiro o seu número de contribuinte, aproveitando-se assim o sistema já existente de e-fatura. O benefício seria poupar ao Estado (e aos contribuintes) custos de fiscalização e, sobretudo, o incentivo a más práticas – que são potenciadas pela substituição do mercado por circuitos burocráticos.

[Ler também: Do «editor escolar» como «artesão».]