terça-feira, novembro 29, 2005
A propósito da laicidade nascida em 1910...
LAS, no blogue da Causa Liberal (que, by the way, continua com problemas):
A propósito da laicidade que agora se discute na blogosfera, convém não dar como adquiridas algumas falsas "verdades históricas". De facto, antes de 1910, em Portugal, não se toleravam outras religiões apenas aos estrangeiros. Também os portugueses tinham liberdade de culto e, graças às outras liberdades civis existentes (de associação nomeadamente), podiam organizar-se em grupos religiosos diferenciados. Existiam igrejas protestantes de portas abertas, com escolas e jornais. Portugal não precisava na altura da laicidade que a República trouxe, bastaria ter consolidado juridicamente a tolerância já praticada em relação às minorias religiosas (que, por exemplo, já tinham direito ao registo civil integral desde 1878), como se fez no Reino Unido, onde a ampla tolerância convive com um estado confessional bem melhor do que em França com um estado laico (aliás, por cá, em 1910, a laicidade foi um retrocesso que levou, por exemplo, ao encerramento das escolas protestantes).
Algumas reflexões adicionais sobre a laicidade nascida em 1910. Uma ilusão de óptica muito comum na memória histórica portuguesa é pensar-se que a República trouxe a "modernidade" em termos de relação entre o Estado e a religião. Nada mais errado. Apesar de em Portugal, até 1910, o Estado ser confessional e minorias como a protestante serem toleradas, mas não poderem constituir-se como pessoas jurídicas, o essencial da separação (a liberdade de consciência, de culto público e de associação) já estava garantido desde pelo menos o reinado de D. Luís I. Não se fez uma lei explícita de liberdade religiosa porque essas minorias identificadas como "religiosas" eram ínfimas, pequeníssimas, microscópicas, e foram vítimas mais de esquecimento que de intolerância. As verdadeiras minorias religiosas no Portugal anterior a 1910 eram as das religiões seculares (as "religiões políticas" no dizer de Voegelin): o positivismo académico e os associativismos republicano e socialista, que eram constelações de clubes, jornais, tipografias, associações cívicas e até de centros escolares. Para esses, ninguém falava da necessidade de liberdade porque já era o que tinham desde a segunda metade do século XIX, ao ponto de terem consigo uma parte muito considerável da opinião pública. Ora, longe de ser a vitória de um Estado neutro em matéria religiosa e de uma igualdade de situação entre as confissões, a famosa "laicidade" triunfante em 1911 (na sequência da mudança de regime em 1910) foi a imposição da "religião cívica" do partido republicano ao conjunto da sociedade, com um controlo político e administrativo sobre as restantes realidades (sobretudo a numericamente mais relevante, a Igreja Católica) muito mais pesado e intenso do que durante a monarquia constitucional foi alguma vez imposto a qualquer confissão, tanto a "oficial" (por sinal, bastante vigiada pelo poder civil a coberto da tradição regalista) quanto as "outras". Sobre isto, é aconselhável uma tese recentemente saída em Coimbra (orientada pelo grande especialista na matéria, Prof. Fernando Catroga), de Maria Lúcia Brito Moura ("A Guerra Religiosa da República", Editorial Notícias).
LEWIS WALKER