A memória histórica do Calvinismo enquanto movimento religioso ficou ligada à problemática das suas relações com o desenvolvimento do «capitalismo» e da modernidade económica no mundo ocidental. A obra de Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1904-1905), está há mais de um século no centro desta discussão, tendo feito correr litros de tinta. Nesta comunicação não vou tratar especificamente da tese de Weber nem dos seus críticos, mas da necessidade de, em termos historiográficos, se colocar de um modo diferente do habitual o problema das relações do Calvinismo com a realidade económica.
Por outro lado, distingo aqui João Calvino (1509-1564) do Calvinismo enquanto movimento religioso nele inspirado, mas que a ele se não limita em termos históricos. Ou seja, interessar-me-á sobretudo a vivência histórica dos calvinistas e as mudanças por eles operadas na história, num tempo longo.
Para tanto, parto de alguns pressupostos: 1) Quaisquer práticas económicas dificilmente derivam mecanicamente de um conjunto de ideias ou de uma doutrina (o que não invalida necessariamente a tese de Weber, mas utilizações ou críticas que lhe atribuem um alcance que ela nunca procurou ter); 2) O conceito de «capitalismo» é problemático do ponto de vista do rigor conceptual que deve presidir à identificação de problemas (estamos a falar de um nível micro de atitudes pessoais como «a procura do lucro» e a tendência para a «poupança» ou de um nível macro como a «economia de mercado»?); 3) As práticas económicas não podem ser desligadas do conjunto de vivências dos indivíduos e dos grupos, os quais, enquanto actores históricos, raramente consideram autónoma a vertente económica das suas vidas (e isto parece-me particularmente verdade quando se fala de grupos e igrejas de inspiração calvinista entre Seiscentos e Oitocentos).
É verdade que as práticas «capitalistas» de nível micro e a formação, num nível macro, de modernas economias de mercado assumem historicamente significado em áreas geográficas de influência do Calvinismo – nomeadamente a Grã-Bretanha e os Países Baixos no século XVII (estendendo-se nos dois séculos seguintes à América do Norte). Mas a dificuldade de encontrar nessas áreas geográficas uma confirmação clara da ligação entre o desenvolvimento daquela realidade económica com aspectos concretos da teologia e da piedade calvinistas lançou dúvidas legítimas sobre a possibilidade de verificar a tese weberiana. Acrescia o facto de os calvinistas não terem um domínio da realidade religiosa e das relações sociais e políticas que pudesse explicar uma acção tão eficiente sobre a organização económica das sociedades em que viviam.
Aliás, a «massificação» das práticas capitalistas e a formação de economias de mercado consolidadas em arranjos jurídicos que as favoreciam não ocorreu em todas as sociedades influenciadas pela Reforma; mas parece certo que isso ocorreu naquelas onde o Calvinismo teve uma presença relevante. Uma hipótese funcional é que isso esteve ligado ao empreendedorismo dos leigos, promovido pelo questionamento protestante de uma vida religiosa enquadrada disciplinarmente pelo clero católico. Ora, esse empreendedorismo dizia sobretudo respeito a grupos que não se conformavam com os arranjos eclesiais saídos da ordem europeia baseada no princípio cuius regio eius religio, mesmo em regiões protestantes. O desconforto com as igrejas de Estado e com a sua utopia de uniformização confessional e litúrgica das sociedades manifestou-se onde a dissidência religiosa teve mais margem de manobra (e alguma representatividade social). E é verdade que esse tipo de dissidência aparece basicamente ligada a grupos e experiências eclesiais inspiradas pelo Calvinismo e em áreas geográficas onde não se conseguiram reconstituir uniformidades eclesiais sancionadas pelo Estado (ao contrário do que aconteceu nos países luteranos que, apesar de reformados, não conheceram nenhuma evolução pioneira para o «capitalismo»).
A questão-chave parece-me ser a cissiparidade prática do universo protestante – para utilizar a feliz expressão do Rev. Eduardo Moreira. Esse pode ter sido o elemento que, no tempo longo, originou a constituição de sociedades civis fortes. Trata-se de um ponto muito negligenciado neste debate, mas que eu julgo fundamental para estabelecer ligações históricas entre o protestantismo e o «capitalismo» (ou a livre iniciativa e a livre concorrência). De facto, a experiência protestante inspirada pelo Calvinismo conduziu a uma fragmentação crescente das sociabilidades religiosas e criou (sem que essa fosse a intenção dos reformadores do século XVI) uma pluralidade efectiva de igrejas e grupos com doutrinas e modelos institucionais concorrentes. Essa realidade originou conflitos, mas acabou por forçar as sociedades mais fragmentadas à aceitação de uma fórmula política e civil de tolerância e convívio como condição da sua própria pacificação (veja-se todo o século XVII inglês até à glorious revolution de 1688 e ao seu Acto de Tolerância).
Pela mesma razão, aquando da sua independência, os Estados Unidos da América não podiam estabelecer outro modelo que não o da liberdade religiosa (com limites para os não protestantes) porque nenhum grupo era suficientemente forte para se fazer hegemónico com patrocínio político. Formara-se uma pluralidade social a partir da diversidade de pertença religiosa e de um grau considerável de autonomia organizativa de diferentes grupos e igrejas em boa medida geridos pelos próprios membros (sem tutela estatal).
Recentemente, vários estudiosos do fenómeno religioso, adaptando para o efeito os métodos da teoria da escolha racional, têm chamado atenção para as consequências da concorrência em ambiente religioso [Lawrence A. Young (ed.) - Rational Choice Theory and Religion: Summary and Assessment. Londres e Nova Iorque: Routledge, 1997.]. A «desregulação» do universo religioso, como a que foi involuntariamente provocada pela cissiparidade prática do protestantismo no mundo anglo-americano desde o século XVI, conduz(iu), pelo forte dinamismo e motivação dos grupos em concorrência, a uma explosão de criatividade geradora de pluralismo. E que isto não foi indiferente para a evolução da teologia moral que esses grupos reflectiram e para a evolução cultural dessas sociedades parece-me altamente provável. Acontece que os calvinistas tiveram um papel fundamental nesta evolução.
De facto, onde não dominavam os arranjos eclesiástico-políticos hegemónicos, os calvinistas tendiam fortemente a constituir sociabilidades alternativas, para si fundamentais para a criação de comunidades mais perfeitas e para a expressão visível da santidade que tanto valorizavam. Esta foi a raiz do fenómeno das «seitas» de inspiração calvinista entre os puritanos ingleses que não se reviam no arranjo anglicano e que resistiram, até obterem a tolerância no fim do século XVII, à integração na confissão oficial. Essa resistência originou os presbiterianos independentes (na própria Escócia), os congregacionais, os baptistas, os quacres e inspirou o procedimento dos metodistas quando rejeitados pelo anglicanismo. Outro tanto se poderia dizer do ambiente religioso nos Países Baixos já no século XVII.
De certa forma, nesses ambientes onde estava desprovida do controlo político da sociedade civil, a tradição calvinista formou o élan de uma evolução em espiral tendente à crescente fragmentação desse campo «não conformista», dada a procura incessante, divergente e concorrente da comunidade perfeita e da realização social da santidade – entre os próprios calvinistas ou seus descendentes teológicos. Ou seja, o Calvinismo funcionou como o combustível social da cissiparidade protestante (realidade que se multiplicou no ambiente social mais propício da América do Norte).
Ora, tanto a massificação das práticas económicas «capitalistas» quanto a larga aceitação social de arranjos jurídicos favoráveis à livre iniciativa e à livre concorrência (que caracterizam as economias de mercado) pressupõem, historicamente, sociedades organizadas de modo plural e dotadas de grupos com capacidade de se organizarem com autonomia. E essas condições históricas pareciam bastante favorecidas, pelas razões expostas, nas regiões influenciadas (mas não politicamente dominadas) pelo Calvinismo.
Neste contexto, tem importância a crítica que propôs a inversão do postulado de Weber. Foi o caso de R. H. Tawney (Religion and the Rise of Capitalism, 1926), que argumentou, persuasivamente, que o desenvolvimento das práticas capitalistas nas sociedades protestantes é que conduziu ao aparecimento de concepções teológicas que as suportavam (como se tornou visível na teologia moral e nas pregações no espaço anglo-americano no século XVIII). Deste modo, a ligação do Calvinismo ao «capitalismo» seria indirecta, uma quase unintended consequence por meio de um pluralismo que fora, ele próprio, uma unintended consequence.
Nesta outra leitura possível das relações históricas do Calvinismo com a modernidade económica ressalta a importância que têm as questões da pluralidade e da capacidade e/ou liberdade de iniciativa e autogoverno de grupos «privados» na sociedade. Algo que, por vias mais ou menos travessas, a tradição calvinista e a economia de mercado aparentemente partilham.
De comunicação em colóquio comemorativo dos 500 anos do nascimento de João Calvino (Universidade Lusófona, 2009). Também publicado em Revista Lusófona de Ciências da Religião, Série Monográfica, vol. VIII, 2012, pp. 89-92.