Em abril deste ano, quando completou 99
anos, o pastor adventista Ernesto Ferreira, publicou o seu quinto livro. Estava
já cego e ditou-o a um irmão na fé. Pelo carácter sistemático e abundância de
notas e referências a outros autores, ninguém diria tratar-se de uma obra
escrita nestas condições. Mas seria preciso não conhecer Ernesto Ferreira para
pensar que, apesar de todas as limitações de que já sofria, ele não faria um
livro à altura dos anteriores. Nos seus livros e nos muitos artigos que
publicou na Revista Adventista (e
também na revista Sinais dos Tempos),
o pastor Ferreira mostrou sempre as mesmas características de um trabalho
metódico, erudito e firme nos seus princípios – e assim se manteve até ao fim,
mesmo quando já lhe faltava a visão. Convém, no entanto, lembrar que essa
atividade intelectual residia num homem de ação consagrado ao Evangelho –
durante décadas, foi pastor, várias vezes presidente da União Portuguesa dos
Adventistas do Sétimo Dia, docente e diretor de estabelecimentos de ensino
adventistas e responsável (de 1958 a 1968) pelo campo missionário adventista em
Angola.
Em 2008, o pastor Ferreira publicou Arautos de Boas Novas, uma volumosa
história do centenário da Igreja Adventista do Sétimo Dia em Portugal. Os seus
livros anteriores, nomeadamente O Senhor
Vem (1971) e Edificados sobre a Rocha
(1987), são sólidas obras de teologia dogmática, exemplarmente assentes na
Bíblia e nos comentários dos grandes autores cristãos de todos os tempos, entre
os quais o autor situa, em lugar de destaque, os reformadores do século XVI.
Digamo-lo sem rodeios: sabemos que os Adventistas, durante muito tempo, eram
vistos pelos protestantes «históricos» como um grupo estranho, uma «seita» com
peculiaridades mais ou menos inaceitáveis. Ora, os livros citados de Ernesto
Ferreira mostram, pelo contrário, que essas peculiaridades (guardar o sábado ou
seguir determinadas prescrições alimentares) não são suficientes para colocar
os Adventistas de fora da grande família das denominações diretamente herdeiras
da Reforma. Aquilo que é valorizado na sua escrita é mais representativo das
«cinco solas» do que daquelas
especificidades – mesmo quando se trata de citar a grande figura fundadora do
Adventismo, Ellen G. White. Porque, como diz o pastor Ferreira, «na verdade,
desde o princípio até ao fim, tanto para Lutero, Armínio e Wesley, como para
nós, Cristo, e só Cristo, é a nossa Justiça» (A Verdade Cristã, p. 88). No novo livro, como nos anteriores, a
senhora White é mais citada para mostrar a sua concordância com a tradição
reformada do que para vincar o que é específico da denominação adventista.O livro A Verdade Cristã está organizado em três partes, nas quais se analisa a fé, respetivamente, à luz da razão, da revelação e da tradição. A primeira trata das dúvidas que à sombra da razão se têm lançado sobre essas crenças fundamentais dos cristãos (nomeadamente, a morte, o sepultamento e a ressurreição de Jesus), que são rebatidas pelo autor no âmbito da própria discussão racional. A segunda parte, a mais extensa, é uma exposição das crenças cristãs à luz da Bíblia, desde os temas tradicionais da dogmática (a divindade de Jesus, o papel de Cristo no plano divino da Salvação, a natureza do Espírito Santo e o significado do Batismo e da Santa Ceia) até outros mais específicos como as questões da santificação, da oração, das controvérsias sobre o livre-arbítrio ou a fé e as obras, os ministérios na Igreja, mas também as questões do sábado (vs. guardar o domingo), da Segunda Vinda de Jesus e da imortalidade condicional, que são temas mais habituais na literatura adventista. Na terceira e última parte, também longa, é-nos apresentada uma série de relevantes problemas teológicos levantados pela história cristã e pelas divergentes interpretações de que foram alvo entre cristãos e em relação com as quais se foi forjando uma identidade protestante, de que o pastor Ferreira é nesta obra um defensor consistente e estimulante; assim, esta última parte do livro é, em grande medida, um demorado comentário das principais práticas e diferenças do catolicismo em relação ao protestantismo, abordando – num tom um pouco mais polémico – problemas como os livros deuterocanónicos, o culto das imagens, o número dos sacramentos reconhecidos, a conceção teológica da Santa Ceia, o Purgatório (que, entretanto, o Papa aboliu «por decreto») ou a ideia da sucessão apostólica linear e pessoal na Igreja. Traçada assim a estrutura da obra, pode dizer-se, resumidamente, que a primeira e terceira partes são exercícios de controvérsia na boa tradição literária cristã, enquanto a segunda parte é uma reapresentação, mais resumida, dos temas da dogmática de uma perspetiva protestante já expostos nos livros O Senhor Vem e Edificados sobre a Rocha.
Dois traços da linha argumentativa usada pelo pastor Ferreira são o constante recurso às Sagradas Escrituras para sustentar as suas afirmações – frequentemente elucidando a etimologia hebraica e grega das palavras e expressões mais importantes – e as ligações históricas que muitas vezes propõe para demonstrar como as conceções da Reforma estão bem ancoradas na mais antiga e mais sã tradição teológica, em particular a da Patrística, como quando cita esta frase de Jerónimo no século IV, que julgaríamos pronunciada por Lutero ou Calvino quase doze séculos depois: «Tudo o que é ensinado sem a autoridade e sem o testemunho da Escritura, sob pretexto de tradição apostólica, é ferido pela espada de Cristo» (A Verdade Cristã, p. 172). Em A Verdade Cristã, os leitores protestantes de qualquer denominação têm, pois, um autêntico tratado de excelente exposição dogmática e uma inteligente contraposição polémica em relação às críticas mais comuns de que é alvo o cristianismo protestante. Mesmo nos temas provavelmente mais controversos entre protestantes, como o da imortalidade condicional, o leitor tem muito a aprender com a forma séria e informada como o pastor Ferreira o conduz por este importante problema teológico, recorrendo à exegese bíblica, à argumentação lógica (ou racional) e aos contributos conceptuais mais importantes da tradição histórica cristã.