Para a minha amiga Sónia dos Reis,
farmlady, empresária e líder autárquica do PSD em Grândola.
É bom começar por lembrar que, logo a seguir às eleições de 2011, o PS adotou uma posição de distanciamento em relação ao Memorando da Troika. Os Socialistas passaram a agir como se não tivessem nada a ver com o Memorando. A aplicação deste pelo governo de Passos Coelho foi sempre considerada à luz de duas ideias: o governo estava a ir «para além da Troika» e as condições impostas ao País pelos credores deveriam ser renegociadas em Bruxelas com «murros na mesa». Só não se percebia por que razão Sócrates não o fizera quando negociou o Memorando com os credores. Esta atitude justificava-se quer pela psicose de negação da realidade que se instalara no PS desde as eleições de 2009, quer por uma habilidade consciente de que assim se evitaria a responsabilização do PS pelas medidas de austeridade que estavam a ser implementadas. É importante explicar a psicose que se instalara no PS.
A crise
financeira internacional de 2008 veio estragar a estratégia neokeynesiana de
Sócrates (obras públicas faraónicas e despesas sociais generosas financiadas
por endividamento externo crescente), embrulhada em lustroso papel de
socialismo «moderno», «tecnológico», cosmopolita e pós-ideológico. Esta
natureza pós-ideológica era patente na desenvoltura com que o poder socialista
na versão de Sócrates convivia com certa banca privada, sem aparente nojo do
mercado e dos negócios, e substituíra aparentemente o estatismo e os antigos
combates ideológicos do velho socialismo pelas modernas e urbanas «causas
fraturantes» (uma estratégia considerada unanimemente inteligentíssima pelos
comentadores para esvaziar o Bloco de Esquerda). Daí que Sócrates se tivesse
içado a líder do PS como moderado e mesmo centrista face à sinistrose rezingona
de Manuel Alegre (primeiro seu adversário na disputa da liderança, depois candidato presidencial à revelia do líder).
Tudo
isto se esboroou quando o recurso ao endividamento externo se tornou
insustentável. Mas, entretanto, Sócrates construíra uma poderosa teia de poder
pessoal que mudou o PS tal como o conhecíamos. Apesar dessa fama de líder
socialista “pós-moderno”, Sócrates comportou-se como um simples cacique,
fazendo aliados entre elementos da velha guarda (de preferência próximos do
tempo do guterrismo) e sobretudo plantando no partido uma nova geração de fiéis
que, como ele, não tinham currículo e apenas queriam protagonismo e lugares à
sombra de um padrinho político (que Sócrates seria para eles como Guterres fora
para si próprio). Quando Sócrates radicalizou o discurso, após perder a maioria
absoluta em 2009, e à medida que o seu desespero crescia na exata proporção dos
juros que os aforradores internacionais pediam pelas novas emissões de dívida
soberana portuguesa, estes fiéis apolíticos, que teriam sido centristas se
Sócrates continuasse centrista, radicalizaram-se obedientemente com o chefe. E
passaram a condicionar completamente os jogos de poder dentro do PS, onde no
fim do socratismo não se ouvia qualquer voz dissonante.
O grupo
parlamentar saído das eleições de 2011 tinha toda a «nova geração» bem
representada, o que impediria António José Seguro de fazer qualquer corte com a
herança socratista. Não foi possível, por isso, o PS sequer esboçar um
exercício de autoexame que qualquer pessoa ou agremiação no seu perfeito juízo
teria de fazer: o que se passara no partido desde o guterrismo para alguém como
Sócrates chegar onde chegou? Pela mesma razão, foi impossível o PS questionar
os resultados económicos do consulado de Sócrates. A bancarrota do Estado era
uma invenção, o Memorando mal negociado por Sócrates (entre outras razões
porque parte substancial da dívida pública ainda estava ocultada pela
engenharia contabilística do seu governo) era da responsabilidade dos partidos que
assumiram então o poder e nada na estratégia neokeynesiana do anterior líder
estava errado (apesar do País nada ter crescido com tanto estímulo e demand
management).
Neste
cenário, qualquer aproximação ou convergência com Passos Coelho e o PSD punha em
causa o pacto negacionista em que o partido escolhera aprisionar-se para –
acreditavam – poder sobreviver ao infortúnio de 2011. Admitir as falhas
clamorosas de Sócrates seria um processo suicida: onde pararia o apuramento de
responsabilidades? Quem não alinhara com o líder e não o defendera até ao fim?
E que hipótese de sobrevivência política teria quem admitisse
responsabilidades? A melhor estratégia era negar que houvesse razões para
assumir responsabilidades. O problema, a origem do mal, teria de passar a ser
outro, que permitisse a autovitimização: a ortodoxia financeira e orçamental
defendida pela chanceler alemã e a que o governo de Passos Coelho era
indecentemente submisso, aparentemente por livre escolha – servindo a velha
tese da conspiração neoliberal para explicar tão improvável conversão ideológica
do PSD e do CDS. E tudo o que se dizia sobre a chegada ao Memorando era um
hediondo conjunto de mentiras. Se isto fosse repetido contínua e
insistentemente, uma grande parte do País desconfiaria que teria mesmo de ser
assim e não como o senso comum apontava serem as coisas. Deste modo, negociar
com o PSD e com Passos Coelho era uma impossibilidade. A radicalização do
discurso criaria um fosso intransponível porque afastaria a maioria PSD/CDS e a
levaria a ter, por seu lado, um discurso reativo ao negacionismo reinante no
PS. A indignação das vozes da maioria seria transformada em manifestação de
indisponibilidade para a negociação e o «envolvimento» do PS. Assim se virava
tudo convenientemente de pernas para o ar.
Uma das
vozes que mais repetiu este delírio preocupante foi António Costa, catapultado
pelos apoiantes de Sócrates e pelos bem-pensantes nos meios de comunicação
social a exímio autarca de Lisboa e a grande promessa do PS, da governação e do
País. Em Lisboa, Costa aterrara numa autarquia desgovernada por um incapaz e
onde o PSD desistira da luta: conseguiu assim uma vitória retumbante, que os
incautos acharam ser reveladora, não da circunstância política local, mas da
idiossincrasia do homem. Costa sabia da sua fortíssima conivência com o
socratismo e teve as mesmas razões que os outros para aderir ao negacionismo. Na
patetice à solta a que se resume boa parte do comentário político, Costa era
dado indiferentemente como candidato forte à presidência da República ou à
chefia do Governo; caberia ao próprio optar por qualquer um dos grandes
destinos. Para estes, o sucessor de Sócrates na liderança do PS, António José
Seguro, fazia o papel de tontinho a quem ainda não haviam explicado que tudo o
que ele queria pertencia por direito a Costa. Contrariamente a Seguro, Costa
tinha «currículo»: este, na verdade, resumia-se ao facto de já ter sido
ministro – pouco importando o facto mais relevante de não ter currículo quando foi
ministro pela primeira vez.
À
medida que desfilavam as dificuldades reais, imaginárias e fabricadas do
governo de Passos Coelho, agigantou-se o mito de um Costa que arrasaria em qualquer
eleição quando apeasse Seguro. Muitos socialistas acreditaram tanto nisso que
não puderam suportar a tentação de Seguro de aceitar o repto do presidente da
República para negociar com o Governo várias medidas a que convinha apoio
alargado. Não custou nada, por isso, demonizar, enxovalhar e conspirar contra
Seguro. Como ousava ele colocar-se no caminho de Costa e das promessas que com
ele se materializariam? Costa defenestrou Seguro sem pruridos e com uma
arrogância que só os cínicos não quiseram ver. A degradação dos costumes
políticos começou dentro do PS e Costa assumiria a tarefa de a exportar a todo
o sistema político português, tornando-se o coveiro do «arco da governação» do
nosso regime constitucional.
É
verdade que houvera um ensaio desta degradação no breve período em que Ferro
Rodrigues foi líder dos Socialistas e em que fez uma oposição ao governo de
Durão Barroso pautada por uma radicalização já alimentada de negacionismo (este
em relação ao «pântano» em que o próprio Guterres assumiu ter deixado o País),
de combate privilegiado aos outros partidos moderados (PSD e CDS) e de atitude
trauliteira com linguagem duvidosa (o famoso “argumentário” do «governo da
tanga»). Costa, porém, ao alinhar numa coligação negativa com o PCP e o Bloco
de Esquerda para afastar do poder Passos Coelho, após as eleições de 4 de
outubro último, parece ter lançado o PS na via sem retorno daquela degradação.
De uma assentada, Costa rompeu as regras civilizadas – estabelecidas há
quarenta anos – de viabilizar os primeiros programa e orçamento do governo
apoiado pelo partido com mais deputados e de dar a esse partido a presidência
da Assembleia da República. É verdade que, até agora, o PS tinha sido o
principal beneficiário dessas regras, de que o PSD e o CDS tinham sido os mais
frequentes executantes (a única vez que o PS o foi passou-se há 30 anos, depois
da sua maior derrota eleitoral). Mas, sobretudo por isso, deveria perceber o
quão contraproducente poderá esta quebra ser.
Identifica-se
aqui o primeiro perigo iminente resultante da degradação em curso dos nossos
costumes políticos, por ação acelerada de António Costa: o rebaixamento qualitativo
da componente parlamentar do nosso regime político. Até agora, a
«partidocracia» do nosso parlamentarismo autodisciplinava-se ao respeitar a
regra de que cabia aos eleitores designar a força política que deveria suportar
o novo governo: isto fazia-se com um princípio semelhante ao first past the
post, ou seja, o chefe do partido com mais deputados eleitos tornava-se
primeiro-ministro. Para que isso fosse possível aceitavam-se as regras de
viabilização e trégua política já referidas. Os partidos (os do «arco da
governação», bem entendido) recusavam, assim, a prática das combinações pós-eleitorais
no parlamento para «cozinhar» governos sem a intervenção dos eleitores. Foi
isso que permitiu que as eleições legislativas em Portugal se assemelhassem a
uma corrida de (em geral, sobretudo dois) candidatos ao cargo de
primeiro-ministro, apesar de o sistema parlamentar português não estar dotado
de um bipartidarismo que assegure permanentemente maiorias alternativas e
estáveis. Embora funcionasse com falhas, a regra first past the post
tinha a virtude de aceitar uma decisão clara do eleitorado, não sujeita a
interpretações, considerações e apetites dos diretórios partidários, que podem
presumivelmente mudar ao longo da legislatura.
Foi
esse facto que não divorciou ainda mais os Portugueses do sistema parlamentar e
que os levou a confiar mais do que se diz nos partidos do regime – facto
patente na estabilidade do nosso sistema partidário desde 1976. Os eleitores
têm tido, apesar de tudo, a perceção de que a sua escolha conta e que é
definidora da solução governativa que se segue à eleição do Parlamento – é essa
a raiz, em parte saudável, da crença assumida (e não concorde ao formalismo
constitucional) de que «elegem o governo». O precedente agora criado por ação
de António Costa é o oposto de tudo isto e empurra-nos para a lógica dos
governos resultantes das combinações parlamentares pós-eleitorais, dominadas
pelos círculos muito restritos dos diretórios partidários e que, a prazo,
criarão nos eleitores a ideia de que, ao votarem nas eleições legislativas,
estão a dar um incontrolável cheque em branco aos diferentes líderes
partidários. Esta mudança perigosa teve como efeito colateral nada despiciendo a
implosão do «arco da governação».
Na
verdade, todas estas regras de moderação (e civilidade) do nosso sistema
parlamentar desenvolveram-se no quadro da formação e vigência do «arco da
governação», pois pressupunham partidos apostados em preservar a sobrevivência
do sistema e a possibilidade do seu próprio acesso ao poder em condições
mínimas de governabilidade. Isto excluía a demagogia grosseira e o mais puro
maquiavelismo no trato entre esses partidos do «arco». Preservava também a
componente parlamentar do regime da necessidade de intervenções
«disciplinadoras» do Presidente da República, como as que foram inevitáveis em
1978-79. Daquelas regras autoexcluíram-se durante quarenta anos o PCP e a
extrema-esquerda, adversários confessos de toda esta cultura política. É assim
que se pode perceber como a comparação do «arco da governação» ao Muro de
Berlim, feita por António Costa, é expressão eloquente da degradação já
declarada (e com epicentro no PS) dos nossos costumes políticos.
A
implosão do «arco» pela mão de António Costa fez-se para permitir algo, para
todos os efeitos, conjuntural: a negociação do seu acesso ao poder. Mas esse
acesso acabou de fazer-se com elementos que já têm menos aparência conjuntural:
além do sacrifício do «arco da governação», foi a cedência aos interesses
estratégicos mais importantes do PCP (a reversão das concessões das empresas de
transportes públicos e a privatização da TAP, onde se joga a influência
sindical e eleitoral dos comunistas nas grandes áreas urbanas). É provável que
cedências semelhantes e ainda pouco notadas estejam a caminho no setor da
educação, onde a CGTP tem também grande influência e necessidade de mostrar
eficácia política a uma grande clientela de funcionários públicos. As cedências
ao Bloco de Esquerda são (para já) conjunturais e menos significativas do que
as feitas ao bem implantado e resiliente PCP.
Mas este
discurso da «queda do Muro» é outra face do negacionismo imperante no PS: desta
vez, a negação da própria história do partido. O «Muro» – se assim pode ser
chamado – foi erguido por Mário Soares ao recusar, em 1976, a armadilha da
equívoca «maioria de esquerda» a que Cunhal quis atrair o PS para o dividir e
destruir, criando um, dois, muitos Manuel Serra. Soares e os seus sucessores
aliaram-se preferencialmente ao PSD e ao CDS, mesmo depois de estes dois terem
demonstrado saber aliar-se entre si. O PCP só foi (e tardiamente) um parceiro
de coligação autárquica em Lisboa, facto que teve relativamente pouca duração e
não se reproduziu pelo País. A infeliz analogia com o Muro de Berlim vitimiza
historicamente o PCP e introduz uma esquizofrenia na consciência histórica dos
Socialistas, que parecem agora imputar a terceiros (o PSD? O CDS?) a autoria de
uma exclusão de que foram eles próprios os criadores e atores e que ainda hoje
é funcional e bem real onde o PS é o principal concorrente autárquico do PCP
(no Alentejo sobretudo).
A
implosão do «arco da governação» permite perceber o segundo perigo iminente da
degradação em curso dos nossos costumes políticos: a criação de um clima de
antagonismo que inviabilizará «acordos de regime» como os de 1982 e 1989
(revisões constitucionais) e de 1985 e 1999 (adesão à CEE e à moeda única). No
momento atual, a opção pelas companhias à sua «esquerda» leva o PS a estar
ainda menos predisposto e com menor margem de manobra política do que tem
estado nos últimos anos para reconhecer a necessidade de reformar a Segurança
Social – que é a maior bomba-relógio da nossa sociedade em vista das evidências
demográficas e das transferências anuais do OGE, sem as quais já seria
insolvente. Alguém já chamou a este problema a «guerra do Ultramar» deste
regime e a comparação poderá pecar só por insuficiência. Não se trata de
viabilizar programas de governo ou orçamentos, nem de tomar pequenas e
circunstanciais «medidas difíceis». Trata-se de uma alteração de paradigma sem
a qual o regime e a sociedade como a conhecemos não sobreviverão. Ora, o «arco
da governação» e a sua capacidade de gerar «acordos de regime» era o
instrumento necessário para fazer aquela alteração – ou para, pelo menos,
começar a pensá-la.
[Ver também: O rol da desonra (acrescentado em 04.05.2018).]
[Ver também: O rol da desonra (acrescentado em 04.05.2018).]