terça-feira, dezembro 01, 2020

Eduardo Lourenço, intérprete da circunstância portuguesa da filosofia

O percurso pessoal

Eduardo Lourenço de Faria nasceu em 1923 em São Pedro do Rio Seco, concelho de Almeida (distrito da Guarda). O pai era oficial do exército e a mãe foi a grande presença da sua infância, influindo na educação católica que recebeu. Frequentou o Colégio Militar, em Lisboa, entre 1935 e 1940, ingressando no ano seguinte no curso de Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Tornou-se então colaborador da revista Vértice, associada aos intelectuais neo-realistas próximos do Partido Comunista. Em 1946, defendeu com sucesso a sua tese de licenciatura, O sentido da dialéctica no idealismo absoluto, tornando-se assistente do professor Joaquim de Carvalho um ano depois. Publicou em 1949 o primeiro volume de Heterodoxia, sendo então convidado para leccionar na Universidade de Bordéus (França), vindo também a leccionar em Hamburgo (Alemanha), na Universidade da Baía (Brasil) e, novamente em França, em Grenoble. Casou com Annie Salomon em 1954. Em 1967 publicou o segundo volume de Heterodoxia e, no ano seguinte, Sentido e forma da poesia neo-realista. Em 1973 foi convidado por Mário Soares para ser um dos fundadores do Partido Socialista no exílio, o que declinou. Nesse ano publicou Fernando Pessoa revisitado, propondo uma interpretação dos heterónimos pessoanos. A partir de 1974 passou a residir em Vence, na Provença, leccionando na Universidade de Nice. Em 1976, publicou O fascismo nunca existiu e, dois anos mais tarde, O labirinto da saudade – psicanálise mítica do destino português, que marcou o início da sua notoriedade como figura cimeira do universo intelectual português. Em 1979 foi convidado para integrar o governo de esquerda presidido por Maria de Lourdes Pintasilgo, o que declinou. Em 1986, publicou Fernando, rei da nossa Baviera, uma interpretação do universo literário pessoano. Em 1994 publicou A Europa desencantada e em 1998 O esplendor do caos, sobre a chamada «geração de 70» do século XIX.

Eduardo Lourenço conheceu e viveu, até pela sua circunstância familiar, a cultura religiosa católica que enformou secularmente a sociedade portuguesa. Apesar do seu percurso posterior, não rompeu com o catolicismo – casou catolicamente em 1954 –, mostrando-se sempre interessado em preservá-lo como objecto de reflexão e como ponte para pensar Portugal na sua individualidade e na sua relação com a Europa. Logo no primeiro volume da sua obra Heterodoxia (1949), Eduardo Lourenço considerou necessário adoptar nessa relação com a tradição católica uma atitude heterodoxa, isto é, embora não enjeitando a sua identidade, disponível para explorar os seus limites e para adoptar a perspectiva crítica da atitude filosófica. Uma relação similar foi por si construída com o socialismo, de que se aproximou muito cedo. Convivendo desde os anos quarenta do século XX com o círculo dos intelectuais neo-realistas próximos do marxismo e do Partido Comunista, reunidos desde 1941 em torno da revista coimbrã Novo cancioneiro e depois da Vértice, Lourenço não se identificará com as expressões mais rígidas do socialismo marxista. Manterá, no entanto, a sua pertença a esse universo político e ideológico, embora com a mesma atitude de o pensar a partir da crítica filosófica e até de uma abordagem “heterodoxa”. Por isso definirá logo no fim dos anos quarenta a sua atitude intelectual tanto perante o catolicismo como perante o socialismo: «nem o contrário de ortodoxia, nem de niilismo, mas o movimento constante de os pensar a ambos» (Heterodoxia, I, p. 8). Este posicionamento permitiu que Eduardo Lourenço fosse um dos principais intelectuais a acolher na cultura portuguesa o espaço do socialismo democrático, que considera a expressão mais completa das aspirações cívicas e políticas do homem europeu, mas de um modo que não deixava de radicar-se e dialogar com os valores da tradição cristã e humanista do Velho Continente.

O percurso filosófico

Em termos filosóficos, Lourenço exprimiu as suas inquietações de um modo que não cabia num discurso formal e puramente conceptual, pelo que desenvolveu nas suas obras um estilo ensaístico, «fundado na suspeita do conceito», em que pretendeu também experimentar com mais liberdade a sua atitude “heterodoxa” perante a própria linguagem filosófica. Kierkegaard foi um apoio para esse tipo de abordagem, mas também um interlocutor “heterodoxo” para o diálogo com a ortodoxia católica como era vivida na realidade cultural e institucional portuguesa. Já Nietzsche foi um contra-peso para tecer a relação com a cultura secular do seu tempo e que igualmente se coadunava a este discurso livre embora de base filosófica; tratava-se também de um filósofo especialmente bem situado para servir de referência à temática da «crise da cultura», cujo peso se tornou crescente na sua reflexão. Perante o panorama da filosofia em Portugal, e apesar do interesse crescente pela análise da cultura portuguesa, Eduardo Lourenço teve sempre uma relação distante com a corrente denominada “filosofia portuguesa”, por não poder enquadrar-se na tradição aristotélica que a melhor parte daquela pretendia continuar e por não querer previsivelmente prender-se ao pressuposto enraizado ou nativista que a mesma transportava. Perante o saudosismo erigido a objecto filosófico, que parte da “filosofia portuguesa” quis cultivar, Lourenço mostrou até que ponto era tributário de críticos como António Sérgio que naquele sentimento viam a expressão de uma «consciência delirada da fraqueza nacional». Deste modo, Eduardo Lourenço nunca quis deixar de situar o seu pensamento na continuidade dos críticos europeízantes da cultura portuguesa, da «Geração de 70» (Antero de Quental e Oliveira Martins em particular) até Sérgio, apesar de matizar a sua adesão às tendências racionalistas ou idealistas expressas por esses autores. Também devido a este seu posicionamento, Lourenço nunca pôde ser integrado no grupo dos filósofos ou intelectuais marxistas.

O seu percurso foi considerado eclético, diletante ou “nómada”, sendo sempre evidente o esforço de partir do cosmopolitismo da tradição filosófica para reflectir sobre a realidade histórica e cultural portuguesa. Daí a dificuldade de classificar o livro Labirinto da saudade, no qual refinou e aprofundou o exercício de identificação e análise dos grandes mitos da cultura portuguesa e para o qual toda a sua obra parecia convergir: foi impossível situá-lo numa corrente ou grupo particular, embora dificilmente a sua pertinência tenha sido contestada por qualquer dessas parcialidades. A essa liberdade perante grupos e correntes não foi alheio o facto de residir fora do País, apesar das frequentes visitas a Portugal. Nas suas últimas obras, a questão europeia nas suas relações com Portugal e com o mundo global tem sido aprofundada, como continuidade das suas preocupações de sempre com a Europa enquanto «continente espiritual». “Espectador comprometido” da unidade da Europa, que acompanhou desde o início em França e com a qual Portugal se cruzou desde as décadas de 70 e 80 do século XX, tem emprestado a esta temática a mesma reflexão crítica pouco dada aos entusiasmos de escolas e grupos de diferentes orientações: «Só se podem sentir desencantados aqueles que sabendo a Europa a que pertencem frágil na cena do mundo, por incapacidade de se constituir com um mínimo de coerência política, constatam que quarenta anos de sonho europeu não fizeram da Europa um mito para a consciência do cidadão comum da Comunidade Europeia», escreveu Eduardo Lourenço em 1993.

[Faleceu em Lisboa, a 1 de dezembro de 2020.]

[Junho 2008]