domingo, maio 25, 2025

O 28 de Setembro de 1974: da "transição aberta" à "transição fechada"

[Apresentado no colóquio «As revoluções dentro da Revolução», 24 de maio de 2025, Câmara Municipal de Torres Vedras.] 

No 28 de Setembro de 1974 (28S) creio estar a chave sobre aquilo em que a transição portuguesa para democracia se tornou até ao advento da Constituição de 1976. O 28S, na verdade, começou dias antes com emissões de mandados de captura contra várias individualidades e fecho de sedes de partidos políticos em vias de constituir-se e acabou a 30 com a demissão de Spínola. Poucos dias depois, havia cerca de trezentos presos políticos. O que se passara?

Uma chave (válida) para interpretar o 28S é uma tese com meio século, de um dos protagonistas daqueles anos (Sanches Osório): a do “equívoco do 25 de Abril”; i.e., o Movimento das Forças Armadas (MFA) teve desde o início no seu interior duas visões políticas diferentes da transição que devia seguir-se ao golpe militar. Iludir essa diferença permitiu contar com os oficiais das duas visões e pôr o golpe em marcha, mas o “equívoco” não desapareceu com o triunfo do golpe.

O 28S foi o momento em que as duas visões tiveram o confronto final. Só uma podia imprimir à transição a direção que devia tomar – e o confronto foi imediato ao 25 de Abril. Foi isso o célebre braço de ferro entre Spínola e a chamada Comissão Coordenadora do MFA. Mas atenção: Spínola era ele e os seus homens do MFA (vg. “spinolistas”) e a Coordenadora não era o MFA (todo). Aferir o peso relativo dos dois lados não é fácil, mas referir-me-ei a isso.

Antes de caracterizar politicamente as visões em confronto, há um aspeto importante: os spinolistas tinham um chefe, para mais alçado a presidente da República (PR). Na sua visão, e na sua adesão à disciplina da cultura militar, a transição far-se-ia com uma cadeia de comando ativa, i.e., a funcionar. O outro lado do MFA não tinha nada disso (Costa Gomes demitir-se-ia desse papel) e esse facto foi um problema, dado que o poder efetivo estava com os militares.

Quanto a isto, esclareço que não adiro às teses da espontaneidade dos acontecimentos. Havia partidos ativos, grandes e pequenos, que reduziam muito essa alegada espontaneidade. A “rua”, a tal “rua” em que o poder podia cair (tese de Marcelo Caetano na passagem de poderes) fez escola, mas é ilusória. A “rua” era organizada ou comandada. Mas o poder de decidir os desfechos políticos, mesmo com as eleições, esteve sempre – sempre – nas mãos dos militares.

A forma mais clara de distinguir/caracterizar as duas visões políticas da transição dentro do MFA é explicar que uma delas aderia à ideia que apareceu veiculada pelo MDP/CDE de que o MFA se deveria assumir como “movimento de libertação” da Metrópole (mimetizando a visão histórico-política dos “movimentos de libertação” africanos como representantes vanguardistas dos povos que diziam representar). Logo, o MFA deveria ser algo não previsto no seu Programa.

Nessa visão, o MFA necessitava de aliados políticos, que logo no fim de abril de 1974 o MDP/CDE identificou como sendo ele próprio, o PCP, o PS e os «católicos antifascistas» (ou seja, apenas os dotados de cursus honorum oposicionista validado pelo próprio MDP); com estas forças, os militares do MFA constituiriam, segundo o MDP, «uma plataforma comum de todos os patriotas civis ou fardados». Constatar-se-ia que esta visão dominava na Coordenadora do MFA.

Os spinolistas tinham-se mantido ou aderido ao MFA dados os contactos prévios com Spínola e a adesão deste ao golpe projetado (ao contrário de Costa Gomes, que não se mostrou disponível); a sua presença era evidente nas reuniões preparatórias do golpe, mas a sua não representação na Coordenadora teve algo a ver com o envolvimento de muitos deles no golpe falhado de 16 de março, que os tirou do centro das operações (ainda estavam presos a 25 de abril).

A elaboração muito tardia do Programa do MFA, ainda corrigido no dia do golpe, já após o seu triunfo, mostra que não houvera um compromisso consolidado ou um meio-termo negociado entre as duas visões. Ela teve de ser feita pela mão do próprio Spínola, com quem a Coordenadora efetivamente a negociou. O Programa do MFA assim negociado, e no que consagrou explicitamente, é importante para ler os cinco meses seguintes.

Há três aspetos fulcrais no Programa, que permitem explicar a visão dos spinolistas, que sempre o leram a partir do que lá era explícito. Primeiro: o MFA era um instrumento para fazer o golpe, mas não é nomeado no Programa como dotado de qualquer papel ou realidade institucional após o sucesso do golpe. Entrariam em cena novos órgãos de soberania, incluindo uma Junta Militar (a JSN) que representaria as Forças Armadas (FA) na transição.

Uma cadeia de comando no âmbito militar estava subentendida (pelo menos, assim o pensaram os spinolistas). Para militares, num golpe feito por militares, era inverosímil que não estivesse. No entanto, houve um fator de inverosimilhança que não podemos menosprezar na análise: para os homens da Coordenadora essa cadeia de comando não era clara. Ao ser feito cabeça da JSN e PR, Spínola entendeu ter a chefia suprema das FA na transição.

Segundo aspeto: o Governo Provisório, distinto da JSN, teria funções semelhantes a um governo de gestão incumbido de preparar eleições. As grandes decisões quanto ao futuro do País teriam de ser tomadas por órgãos sufragados nas urnas, nomeadamente a prevista assembleia nacional constituinte. Isto é importante para perceber a origem e o racional do “Plano Palma Carlos”, que foi uma resposta às pressões da Coordenadora.

As grandes opções políticas para o futuro, implicando um processo constituinte, eram como que o processo de “autodeterminação” do Portugal Metropolitano. Não eram só os territórios ultramarinos que teriam um processo desse tipo. E o Programa do MFA claramente previa que esse processo decisório quanto ao futuro político da Metrópole implicava a consulta pelas urnas e decisões tomadas só depois das urnas. Ou seja, um verdadeiro processo de autodeterminação.

Terceiro aspeto: estava prevista a constituição de «“associações políticas”, possíveis embriões de futuros partidos políticos» (ponto B5, alínea a), sem referenciação a grupos ou ideologias específicas e, portanto, mais abrangente, espontâneo e aberto do que as limitações pressupostas na proposta já referida do MDP/CDE. E, atenção: nada restringia à Metrópole este princípio de abertura. Daí o boom de “associações políticas” logo desde o mês seguinte.

Esse boom aconteceu na Metrópole e no Ultramar e criou uma diversidade de correntes de opinião política muito maior do que a que conhecemos das eleições de 1975. A este facto sobrepôs-se outro: a cooptação pelos militares de grupos/partidos políticos para o Governo Provisório. Esta cooptação era problemática no contexto da constituição em curso de “associações políticas” da iniciativa dos cidadãos. Esta cooptação implicava uma discriminação.

A cooptação do PS, do PCP e do MDP (que já estavam constituídos) e a promoção/invenção do PPD como representante oficioso da extinta “ala liberal” foi um expediente para a constituição de um governo provisório com representação de correntes de opinião, mas condicionou ou distorceu a constituição do espectro político-partidário. Estar ou não estar no governo provisório não era indiferente para partidos em vias de implantação.

Estar no governo também estreitava a relação com os militares, o que teve dois efeitos. Contribuiu para politizar os militares numa medida que não era suposta (pelos menos para alguns) e beneficiou ou reforçou os que mais defendiam ou melhor se davam com esse estreitar de relações: os defensores da estratégia do MDP/CDE e os militares a ela recetivos (como, por exemplo, Melo Antunes e Almada Contreiras, que até já orbitavam a CDE antes de 74).

A coligação partidária pressuposta na composição do I Governo já era uma rendição de facto à estratégia do MDP/CDE. A presença do PPD destoava um pouco, mas não muito, pois o PPD queria afirmar-se por ali. Palma Carlos destoaria mais. A queda do I Governo em 17 de julho (depois de dois meses em funções) foi a consequência da pressão da estratégia do MDP/CDE colocada dentro do Governo por grande parte dos ministros políticos.

Palma Carlos percebeu que os membros do Governo alinhados com aquela estratégia se articulavam bem com a Coordenadora do MFA. E ambos queriam condicionar o Governo nos planos das opções económicas, das relações laborais e da negociação com os “movimentos de libertação”. O grau de articulação destes agentes civis e militares no exercício daquela pressão precisa de ser mais investigada. Mas a afinidade ideológica existia.

E a afinidade ideológica tinha consequências. O PS estava ainda numa lógica muito frentista e de disputa com o PCP no campeonato do radicalismo (veja-se o tema das greves) e o PPD não tinha um programa claro. A agenda do MDP insinuava-se com facilidade. No plano das relações laborais, a nomeação de comissários governamentais nas empresas, com Avelino Gonçalves (PCP) como ministro do Trabalho, alavancou a estratégia do MDP no plano económico.

Sejamos claros. A estratégia do MDP/CDE era a do PCP. A CDE era a face eleitoral legal do PCP antes de 74 e o MDP/CDE, depois de 74, manteve-se para agir como um testa-de-ferro estratégico. E o PCP queria no mundo empresarial o modelo da cogestão Governo/sindicatos. O PCP operacionalizaria isso com o Ministério do Trabalho e a Intersindical na mão. Neste contexto, as greves podiam não lhe servir. Bastava-lhe controlar a cúpula da cogestão.

Aliás, o PCP teve – muitas vezes, via MDP e Intersindical – uma estratégia de assalto a organizações-chave. Os sindicatos nacionais e os municípios foram alvos preferenciais de comités de “democratas” que “apenas” os queriam sanear. Os seus aliados dentro do Governo e da Coordenadora sancionaram estas ocupações. Palma Carlos percebeu que esta ocupação do terreno institucional era uma estratégia de condicionamento do Governo nas suas funções de gestão.

O Governo, mesmo assim, interveio bastante no plano económico. Houve congelamento de preços, condicionamento do comércio externo, a banca foi amarrada com pulso firme às intenções do Governo e a Bolsa permaneceu encerrada (até 1977). Mas a Coordenadora e o MDP-PCP sempre deram sinais de querer mais. O que faltava, claro, era uma política de ofensiva contra a gestão e o capital privados nas empresas de grande e média dimensão.

Foi deste cerco que Palma Carlos quis sair com o seu “Plano” de alteração da Lei 3/74. A Coordenadora e os seus aliados políticos preferiram forçar as suas opções, mesmo que isso implicasse sabotar a ação e a autoridade do Governo. O mesmo em relação à JSN. Em julho era claro que havia duas juntas militares em concorrência: JSN e Coordenadora. Isto era ingerível e fomentava um caos crescente, nas FA e no País. Palma Carlos (e Spínola) quiseram pôr fim a isto.

O único caminho, na sua visão, era antecipar a ida às urnas. Só uma consulta popular podia criar uma legitimidade concorrente da pseudolegitimidade vanguardista que se arrogavam a Coordenadora e os aliados da estratégia do MDP/CDE. Esta estratégia foi preferida pela maior parte dos ministros políticos do I Governo que, assim, fizeram cair Palma Carlos. Este queria, entre outras coisas, eleições municipais para acabar com a ocupação das câmaras pelo MDP.

No plano das negociações com os “movimentos de libertação”, foi de elementos da Coordenadora (ou de protagonistas com ela alinhados, como Otelo, a 6 e 7 de junho, em Lusaca) que partiram iniciativas extemporâneas para forçar cessar-fogos incondicionais e a entrega do poder aos “movimentos de libertação”. A 11 de junho, Spínola deixa claro que “autodeterminação” não pode ser «a imposição a esses povos de opções em que não participaram», como hoje seria pacífico.

Embora custe a muita gente ainda hoje admiti-lo, a ideia da autodeterminação como entrega de um território multiétnico a movimentos armados que não tinham essa representatividade ampla nem concedida com mecanismos de consulta era um expediente estranho (mas, de facto advogado pela URSS na ONU desde 1960) que só podia dever-se a um alinhamento ideológico ou àquilo a que A. J. Saraiva viria a chamar, polemicamente, um «instinto das tripas».

Esta foi a vertente mais dramática do braço de ferro Spínola/Coordenadora. Vão jogar-se aqui os dois meses seguintes. A constituição do II Governo, com um militar da Coordenadora à cabeça (Vasco Gonçalves) foi um revés para Spínola (quase uma antecipação do 28S). O Governo passa a estar todo alinhado com a Coordenadora. E os spinolistas vão tentar preservar o que resta da sua visão da transição. Perdido o Governo, só podiam agir junto do poder fático: as FA.

O Documento M. Engrácia Antunes/Hugo dos Santos, a circular nos quartéis no fim de agosto, foi uma última chamada à ordem: o facto de Costa Gomes (o eterno desertor das definições prementes) o subscrever de início deve significar que o apoio entre militares seria significativo. Mas a Coordenadora mobilizou os seus contactos na imprensa e nas rádios para haver um black-out ao documento, e conseguiu pôr o CEMFA Costa Gomes do seu lado, que o proibiu.

Costa Gomes assume explicitamente o seu alinhamento com a Coordenadora e vai colaborar com ela ativamente até ao fim de setembro para liquidar o papel de Spínola como vértice da cadeia de comando das FA. Em qualquer manual, isto seria considerado um golpe de estado. Claro que, para a Coordenadora, era o PR que preparava um golpe de estado por insistir na cadeia de comando. Mas não era só esta que estava em causa. Era a disciplina nas FA.

A indisciplina foi assumida pela Coordenadora (e por Costa Gomes), agindo de modo concertado com partidos políticos contra ordens do PR. É o que se verá pouco depois com as armas distribuídas a militantes do MDP e do PCP para formarem barricadas nos acessos a Lisboa e colaborarem com o COPCON no assalto às sedes dos partidos que organizavam uma manifestação de apoio a Spínola – a célebre manifestação da autoproclamada “maioria silenciosa”.

A manifestação era organizada pelos partidos em formação que rejeitavam a já referida estratégia do MDP/CDE e que, também por isso, não haviam sido cooptados para os governos provisórios. Sobre aqueles partidos, a historiografia tem repetido os qualificativos adotados na época pelo MDP e o PCP para os demonizar – e, na verdade, para justificar a sua proibição. Uma proibição que não quis assumir-se e nunca foi formalizada por ordem escrita ou por decreto.

Mas é com partidos de facto proibidos – e impedidos de organizarem uma das muitas manifestações já até então decorridas – e com os mandados de captura emitidos com a alegação de o detido ou procurado «pertencer a uma associação de malfeitores» que a Coordenadora e o governo capitaneado por Vasco Gonçalves vão conseguir neutralizar os civis mobilizados no apoio a Spínola. Este ainda tentou, face a esta ofensiva, reagir do lado militar.

A tentativa do PR de decretar um estado de sítio tinha não só os partidos do II Governo (PCP, MDP, PS e PPD já sem Sá Carneiro) em firme oposição, mas também a Coordenadora decidida a bombardear o palácio de Belém. É neste contexto que o Conselho de Estado, pelo qual Spínola queria fazer aprovar aquela decisão, tira também o tapete ao PR. Spínola percebe que foi humilhado e que ser PR foi reduzido a nada. As FA, formalmente, deixaram de existir.

Nas palavras de um historiador insuspeito, o que se seguiu foi uma «ditadura militar policêntrica». Já estava lá em potência, mas agora consumada. E é esse facto que tornou a transição, então ainda com muito em aberto (nomeadamente os dossiês Angola e Eleições), num processo vigiado ideologicamente, apertado nas opções toleradas e arrastando – durante mais de um ano – violações sistemáticas de direitos fundamentais. Uma história ainda mal contada. ●

sábado, maio 03, 2025

A triangulação do círculo: energia, capital e democracia como vetores da geoestratégia global


[Publicado na revista Relações Internacionais n.º 85 (março 2025), pp. 105-109 - AQUI]

Helen Thompson – Disorder: Hard Times in the 21st Century (1.ª ed. 2022), Oxford: Oxford University Press, 2023, 395 p. [ISBN 978-0-19-886501-8 (pbk.)]

Este livro, na sua 1.ª edição, foi publicado um mês antes da invasão da Ucrânia, em 2022; e dado que a autora identificava, na sua análise, a fronteira sudeste da União Europeia (UE) e o mar Negro como uma das zonas fulcrais de tensão geoestratégica, a obra mereceu uma 2.ª edição, com posfácio, em 2023, que é a aqui recenseada. Helen Thompson, professora de Economia Política no Clare College (Cambridge), é especialista nas repercussões geoestratégicas das questões energéticas e foi autora de Oil and the Western Economic Crisis (Palgrave Macmillan, 2017), além de ser colunista do New Statesman e membro do conselho consultivo do think-tank Labour Together. Em Disorder: Hard Times in the 21st Century, Thompson propõe a triangulação da sua temática de eleição com a da evolução do mercado financeiro global e a das tensões políticas nos regimes democráticos ocidentais no primeiro quartel do nosso século – embora faça recuos cronológicos que chegam a incluir conjunturas decisivas de todo o século XX.

A tese do livro é que as mudanças estruturais em torno da energia (em particular, do acesso a fontes de energia) e da finança (em particular, do acesso a uma moeda-padrão internacional) desencadeiam sempre consequências geoestratégicas tumultuosas e explicam a possibilidade ou viabilidade dos arranjos institucionais internacionais. E estes factos não são indiferentes à vida política interna dos Estados-nação, nomeadamente naqueles onde os mecanismos de poder democrático sofrem pressões destes fatores e geram respostas que interagem com eles.

Thompson lembra que a Europa, e os seus Estados-nação principais, tiveram no passado uma hegemonia euroasiática e global quando a sua tecnologia industrial emergente dependia do carvão, sendo este uma fonte de energia que os mesmos tinham nos seus territórios – e poderíamos acrescentar que esse fator pesou na marginalidade, dentro da Europa, dos países (como Portugal) que não partilhavam aquele “feliz acaso geográfico” (como lhe chamou K. Pomeranz em The Great Divergence, Princeton U. P., 2001); da mesma forma, o declínio da hegemonia europeia e a emergência dos Estados Unidos da América (EUA) e da Rússia no século XX estiveram intimamente ligados à substituição do carvão pelo petróleo em setores-chave da economia (como os transportes ou a indústria petroquímica), de que a Europa não dispunha, ao contrário dos dois gigantes em ascensão. E o aumento do consumo de petróleo, depois da respetiva transição energética, condicionou as opções geoestratégicas e a projeção de poder exterior dos Estados – o que esteve patente nos mandatos britânico e francês no Médio Oriente após 1918 (e no esforço de assegurar corredores marítimos necessários ao transporte do petróleo ali explorado), tal como, após 1945, na pressão que os EUA tiveram para assegurar os corredores marítimos que permitiam transportar o mesmo petróleo para um consumo a que a sua produção interna já não bastava e para o fazer chegar também aos seus aliados do lado de cá da Cortina de Ferro. Ora, nesta dependência de combustíveis fósseis crescentemente consumidos está também hoje a China (e a Índia), o que condiciona a sua projeção externa de poder (no mar da China e no Índico para acesso ao golfo Pérsico) e respetivos alinhamentos geoestratégicos (máxime com a Rússia, sua natural fornecedora por vizinhança geográfica). Por outro lado, estes mercados consumidores emergentes dão aos produtores (Arábia Saudita ou Irão, entre outros) alternativas de alinhamento, que explicam as maiores pressões sobre os países ocidentais naquela região do Globo.

Neste contexto, a autora dá atenção à geoestratégia dos gasodutos e oleodutos e às incompatibilidades que esta gera entre membros da UE, e que são uma séria ameaça à sua coesão ou capacidade de ação comum. Thompson mostra a historicidade destes problemas e que, por exemplo, a opção alemã pela dependência de fornecimentos russos é antiga (e de forte lógica geográfica e de custos) e que isso tem articulação difícil, não só com os interesses dos EUA, mas também com os de outros países europeus (sobretudo os que rejeitam voltar a uma “esfera de influência” de Moscovo). A isto acresce, como Thompson reforça, a fragilidade europeia perante a nova transição energética (não imposta por exaustão de recursos ou por uma transição tecnológica vantajosa, mas pela “agenda climática”), uma vez que a distribuição geográfica das matérias-primas necessárias às tecnologias energéticas “verdes” volta a deixar o Velho Continente inteiramente dependente – além do facto de ser evidente que o consumo global de energias fósseis continua a crescer claramente, e a dita transição não começou sequer. Nesta conjuntura, o fecho do programa nuclear alemão motiva perplexidade e torna pouco claro como poderá gerar-se um alinhamento estratégico na UE no campo das escolhas energéticas.

Uma das teses do livro é que estes problemas ocorrem numa conjuntura em que o poderio norte-americano está (re)consolidado em torno de uma (quase) autonomia energética dos EUA – no que o petróleo de xisto tem peso significativo – e na herança da função do dólar como moeda-padrão internacional hegemónica. Esta função do dólar não se originou apenas na “ordem” de Bretton Woods nem no facto de os EUA serem, na primeira metade do século XX, o grande gerador de capitais de que uma Europa arruinada pelos dois conflitos mundiais por si criados se tornou dependente; originou-se, sim, nos caminhos tomados pelo mercado de capitais no segundo pós-guerra, fugindo ao controlo dos Estados (incluindo os EUA) e ligado aos mecanismos de criação de moeda escritural pela banca (nomeadamente europeia), denominada em (ou ancorada nos) dólares exportados diretamente pelos EUA ou pelos seus títulos do Tesouro também espalhados pelo Mundo (adotados como valor-refúgio) cujo giro suportou um cada vez mais complexo repo market de revenda e/ou empréstimo destes valores como forma de transação ou empréstimo interbancário de capitais, a que os Estados (mais e menos desenvolvidos) frequentemente também recorreram para se financiarem. Esta “alquimia” monetária e financeira, como caracterizada por Niall Ferguson e Moritz Schularick («Chimerica and the Global Asset Market Boom», International Finance, 10:3, 2007), esteve na origem da crise de 2007-2008, de que o subprime norte-americano foi um detalhe, e não podia ser “controlada” por Estados que a incentivavam ou por ela se financiavam. Thompson acompanha também, circunstanciadamente, a história do sistema monetário europeu, e a sua geografia variável de adesões e fricções, para mostrar como, dentro dele, se mantêm disfunções potenciais e tensões vulneráveis a fatores externos e/ou globais.

A entrada clara e definitiva da China no comércio mundial, no início do presente século, implicou que se engrenasse neste mercado de capitais globalizado maioritariamente denominado em dólares. Esse mercado, como Thompson explica (mas alguns dos seus críticos não compreendem – cf. Matthew C. Klein, «How To Get Recent History All Wrong», Foreign Policy, 7-5-2022), sempre foi localmente influenciado por decisões políticas que nele interferiram e interferem. Foi assim na UE, onde o potencial de endividamento público e privado por meio deste mercado de Eurodólares foi apoiado por políticos (desde Kohl) e pela banca (incluindo a alemã), vencendo a disciplina institucional do pós-guerra pressuposta no padrão-ouro do dólar (abandonado em 1971, mas sob pressão antes) e no mandato anti-inflacionista do Bundesbank (ignorado em Bona/Berlim depois da reunificação). Aliás, Thompson reporta bem a guerra de políticos e banqueiros alemães com o Bundesbank e o Tribunal Constitucional (sobretudo em torno da negociação dos tratados de Maastricht e Lisboa). E foi assim na China, a qual reforçou e expandiu esta tendência, acumulando reservas denominadas em dólares – graças ao seu superavit comercial e à atração de investimento estrangeiro –, que suportou internamente uma expansão dos balanços e do crédito bancários, mas também as intervenções monetárias maciças do banco central após a crise de 2007-2008 (para “reparar” aqueles balanços). O investimento brutal em estruturas de capital fixo (e a capacidade produtiva) que daqui resultou permitiu que as exportações chinesas baixassem globalmente os preços dos bens, moderando as tendências inflacionistas globais. Mas esse movimento está em refluxo (ou exausto), o que é evidente no declínio do crescimento chinês e na manipulação do câmbio do renminbi com o dólar, gerido conjunturalmente por Pequim, para evitar uma fuga de capitais e preços menos competitivos, que pode já estar a acontecer e a incentivar Xi Jinping a querer sair da “armadilha do dólar” e a virar-se para o consumo interno, isolando mais a China da sua exposição global (como advoga Russell Napier, «America, China, and the Death of the International Monetary Non-System», American Affairs, 8:4, 2024).

Thompson argumenta que, no mundo condicionado pelas problemáticas acima enunciadas, o Estado-nação mantém-se como a unidade política fundamental (nenhum Estado-nação foi destruído pela experiência comunista e a Guerra Fria terminou com uma nova “primavera das nações”, que incluiu a própria autodeterminação alemã patente na reunificação); e, recorrendo a Políbio, Maquiavel e a alguns exemplos históricos, lembra que isso se articula com a gestão de um equilíbrio (interno às diferentes sociedades) entre tendências demagógicas e oligárquicas que determinam o maior ou menor consenso interno ou a saúde institucional dos regimes políticos. E todo o livro pretende mostrar como os problemas energéticos e financeiros pressionam a procura desse equilíbrio. A autora adverte, por isso, que os tempos desafiantes do presente século exigem uma flexibilidade de decisões e ajustamentos à realidade de difícil gestão fora do quadro do Estado-nação – sobretudo num bloco institucional multinacional englobando diferentes interesses e perceções geoestratégicas como a UE.

Luís Aguiar Santos Doutor em História Económica e Social pelo ISEG/Lisbon School of Economics and Management (UL) e investigador do GHES/ISEG Research (UL).