[Apresentado no colóquio «As revoluções dentro da Revolução», 24 de maio de 2025, Câmara Municipal de Torres Vedras.]
No 28 de Setembro de 1974 (28S) creio estar a chave sobre aquilo em que a transição portuguesa para democracia se tornou até ao advento da Constituição de 1976. O 28S, na verdade, começou dias antes com emissões de mandados de captura contra várias individualidades e fecho de sedes de partidos políticos em vias de constituir-se e acabou a 30 com a demissão de Spínola. Poucos dias depois, havia cerca de trezentos presos políticos. O que se passara?
Uma chave (válida) para interpretar o 28S é uma tese com meio século, de um dos protagonistas daqueles anos (Sanches Osório): a do “equívoco do 25 de Abril”; i.e., o Movimento das Forças Armadas (MFA) teve desde o início no seu interior duas visões políticas diferentes da transição que devia seguir-se ao golpe militar. Iludir essa diferença permitiu contar com os oficiais das duas visões e pôr o golpe em marcha, mas o “equívoco” não desapareceu com o triunfo do golpe.
O 28S foi o momento em que as duas visões tiveram o confronto final. Só uma podia imprimir à transição a direção que devia tomar – e o confronto foi imediato ao 25 de Abril. Foi isso o célebre braço de ferro entre Spínola e a chamada Comissão Coordenadora do MFA. Mas atenção: Spínola era ele e os seus homens do MFA (vg. “spinolistas”) e a Coordenadora não era o MFA (todo). Aferir o peso relativo dos dois lados não é fácil, mas referir-me-ei a isso.
Antes de caracterizar politicamente as visões em confronto, há um aspeto importante: os spinolistas tinham um chefe, para mais alçado a presidente da República (PR). Na sua visão, e na sua adesão à disciplina da cultura militar, a transição far-se-ia com uma cadeia de comando ativa, i.e., a funcionar. O outro lado do MFA não tinha nada disso (Costa Gomes demitir-se-ia desse papel) e esse facto foi um problema, dado que o poder efetivo estava com os militares.
Quanto a isto, esclareço que não adiro às teses da espontaneidade dos acontecimentos. Havia partidos ativos, grandes e pequenos, que reduziam muito essa alegada espontaneidade. A “rua”, a tal “rua” em que o poder podia cair (tese de Marcelo Caetano na passagem de poderes) fez escola, mas é ilusória. A “rua” era organizada ou comandada. Mas o poder de decidir os desfechos políticos, mesmo com as eleições, esteve sempre – sempre – nas mãos dos militares.
A forma mais clara de distinguir/caracterizar as duas visões políticas da transição dentro do MFA é explicar que uma delas aderia à ideia que apareceu veiculada pelo MDP/CDE de que o MFA se deveria assumir como “movimento de libertação” da Metrópole (mimetizando a visão histórico-política dos “movimentos de libertação” africanos como representantes vanguardistas dos povos que diziam representar). Logo, o MFA deveria ser algo não previsto no seu Programa.
Nessa visão, o MFA necessitava de aliados políticos, que logo no fim de abril de 1974 o MDP/CDE identificou como sendo ele próprio, o PCP, o PS e os «católicos antifascistas» (ou seja, apenas os dotados de cursus honorum oposicionista validado pelo próprio MDP); com estas forças, os militares do MFA constituiriam, segundo o MDP, «uma plataforma comum de todos os patriotas civis ou fardados». Constatar-se-ia que esta visão dominava na Coordenadora do MFA.
Os spinolistas tinham-se mantido ou aderido ao MFA dados os contactos prévios com Spínola e a adesão deste ao golpe projetado (ao contrário de Costa Gomes, que não se mostrou disponível); a sua presença era evidente nas reuniões preparatórias do golpe, mas a sua não representação na Coordenadora teve algo a ver com o envolvimento de muitos deles no golpe falhado de 16 de março, que os tirou do centro das operações (ainda estavam presos a 25 de abril).
A elaboração muito tardia do Programa do MFA, ainda corrigido no dia do golpe, já após o seu triunfo, mostra que não houvera um compromisso consolidado ou um meio-termo negociado entre as duas visões. Ela teve de ser feita pela mão do próprio Spínola, com quem a Coordenadora efetivamente a negociou. O Programa do MFA assim negociado, e no que consagrou explicitamente, é importante para ler os cinco meses seguintes.
Há três aspetos fulcrais no Programa, que permitem explicar a visão dos spinolistas, que sempre o leram a partir do que lá era explícito. Primeiro: o MFA era um instrumento para fazer o golpe, mas não é nomeado no Programa como dotado de qualquer papel ou realidade institucional após o sucesso do golpe. Entrariam em cena novos órgãos de soberania, incluindo uma Junta Militar (a JSN) que representaria as Forças Armadas (FA) na transição.
Uma cadeia de comando no âmbito militar estava subentendida (pelo menos, assim o pensaram os spinolistas). Para militares, num golpe feito por militares, era inverosímil que não estivesse. No entanto, houve um fator de inverosimilhança que não podemos menosprezar na análise: para os homens da Coordenadora essa cadeia de comando não era clara. Ao ser feito cabeça da JSN e PR, Spínola entendeu ter a chefia suprema das FA na transição.
Segundo aspeto: o Governo Provisório, distinto da JSN, teria funções semelhantes a um governo de gestão incumbido de preparar eleições. As grandes decisões quanto ao futuro do País teriam de ser tomadas por órgãos sufragados nas urnas, nomeadamente a prevista assembleia nacional constituinte. Isto é importante para perceber a origem e o racional do “Plano Palma Carlos”, que foi uma resposta às pressões da Coordenadora.
As grandes opções políticas para o futuro, implicando um processo constituinte, eram como que o processo de “autodeterminação” do Portugal Metropolitano. Não eram só os territórios ultramarinos que teriam um processo desse tipo. E o Programa do MFA claramente previa que esse processo decisório quanto ao futuro político da Metrópole implicava a consulta pelas urnas e decisões tomadas só depois das urnas. Ou seja, um verdadeiro processo de autodeterminação.
Terceiro aspeto: estava prevista a constituição de «“associações políticas”, possíveis embriões de futuros partidos políticos» (ponto B5, alínea a), sem referenciação a grupos ou ideologias específicas e, portanto, mais abrangente, espontâneo e aberto do que as limitações pressupostas na proposta já referida do MDP/CDE. E, atenção: nada restringia à Metrópole este princípio de abertura. Daí o boom de “associações políticas” logo desde o mês seguinte.
Esse boom aconteceu na Metrópole e no Ultramar e criou uma diversidade de correntes de opinião política muito maior do que a que conhecemos das eleições de 1975. A este facto sobrepôs-se outro: a cooptação pelos militares de grupos/partidos políticos para o Governo Provisório. Esta cooptação era problemática no contexto da constituição em curso de “associações políticas” da iniciativa dos cidadãos. Esta cooptação implicava uma discriminação.
A cooptação do PS, do PCP e do MDP (que já estavam constituídos) e a promoção/invenção do PPD como representante oficioso da extinta “ala liberal” foi um expediente para a constituição de um governo provisório com representação de correntes de opinião, mas condicionou ou distorceu a constituição do espectro político-partidário. Estar ou não estar no governo provisório não era indiferente para partidos em vias de implantação.
Estar no governo também estreitava a relação com os militares, o que teve dois efeitos. Contribuiu para politizar os militares numa medida que não era suposta (pelos menos para alguns) e beneficiou ou reforçou os que mais defendiam ou melhor se davam com esse estreitar de relações: os defensores da estratégia do MDP/CDE e os militares a ela recetivos (como, por exemplo, Melo Antunes e Almada Contreiras, que até já orbitavam a CDE antes de 74).
A coligação partidária pressuposta na composição do I Governo já era uma rendição de facto à estratégia do MDP/CDE. A presença do PPD destoava um pouco, mas não muito, pois o PPD queria afirmar-se por ali. Palma Carlos destoaria mais. A queda do I Governo em 17 de julho (depois de dois meses em funções) foi a consequência da pressão da estratégia do MDP/CDE colocada dentro do Governo por grande parte dos ministros políticos.
Palma Carlos percebeu que os membros do Governo alinhados com aquela estratégia se articulavam bem com a Coordenadora do MFA. E ambos queriam condicionar o Governo nos planos das opções económicas, das relações laborais e da negociação com os “movimentos de libertação”. O grau de articulação destes agentes civis e militares no exercício daquela pressão precisa de ser mais investigada. Mas a afinidade ideológica existia.
E a afinidade ideológica tinha consequências. O PS estava ainda numa lógica muito frentista e de disputa com o PCP no campeonato do radicalismo (veja-se o tema das greves) e o PPD não tinha um programa claro. A agenda do MDP insinuava-se com facilidade. No plano das relações laborais, a nomeação de comissários governamentais nas empresas, com Avelino Gonçalves (PCP) como ministro do Trabalho, alavancou a estratégia do MDP no plano económico.
Sejamos claros. A estratégia do MDP/CDE era a do PCP. A CDE era a face eleitoral legal do PCP antes de 74 e o MDP/CDE, depois de 74, manteve-se para agir como um testa-de-ferro estratégico. E o PCP queria no mundo empresarial o modelo da cogestão Governo/sindicatos. O PCP operacionalizaria isso com o Ministério do Trabalho e a Intersindical na mão. Neste contexto, as greves podiam não lhe servir. Bastava-lhe controlar a cúpula da cogestão.
Aliás, o PCP teve – muitas vezes, via MDP e Intersindical – uma estratégia de assalto a organizações-chave. Os sindicatos nacionais e os municípios foram alvos preferenciais de comités de “democratas” que “apenas” os queriam sanear. Os seus aliados dentro do Governo e da Coordenadora sancionaram estas ocupações. Palma Carlos percebeu que esta ocupação do terreno institucional era uma estratégia de condicionamento do Governo nas suas funções de gestão.
O Governo, mesmo assim, interveio bastante no plano económico. Houve congelamento de preços, condicionamento do comércio externo, a banca foi amarrada com pulso firme às intenções do Governo e a Bolsa permaneceu encerrada (até 1977). Mas a Coordenadora e o MDP-PCP sempre deram sinais de querer mais. O que faltava, claro, era uma política de ofensiva contra a gestão e o capital privados nas empresas de grande e média dimensão.
Foi deste cerco que Palma Carlos quis sair com o seu “Plano” de alteração da Lei 3/74. A Coordenadora e os seus aliados políticos preferiram forçar as suas opções, mesmo que isso implicasse sabotar a ação e a autoridade do Governo. O mesmo em relação à JSN. Em julho era claro que havia duas juntas militares em concorrência: JSN e Coordenadora. Isto era ingerível e fomentava um caos crescente, nas FA e no País. Palma Carlos (e Spínola) quiseram pôr fim a isto.
O único caminho, na sua visão, era antecipar a ida às urnas. Só uma consulta popular podia criar uma legitimidade concorrente da pseudolegitimidade vanguardista que se arrogavam a Coordenadora e os aliados da estratégia do MDP/CDE. Esta estratégia foi preferida pela maior parte dos ministros políticos do I Governo que, assim, fizeram cair Palma Carlos. Este queria, entre outras coisas, eleições municipais para acabar com a ocupação das câmaras pelo MDP.
No plano das negociações com os “movimentos de libertação”, foi de elementos da Coordenadora (ou de protagonistas com ela alinhados, como Otelo, a 6 e 7 de junho, em Lusaca) que partiram iniciativas extemporâneas para forçar cessar-fogos incondicionais e a entrega do poder aos “movimentos de libertação”. A 11 de junho, Spínola deixa claro que “autodeterminação” não pode ser «a imposição a esses povos de opções em que não participaram», como hoje seria pacífico.
Embora custe a muita gente ainda hoje admiti-lo, a ideia da autodeterminação como entrega de um território multiétnico a movimentos armados que não tinham essa representatividade ampla nem concedida com mecanismos de consulta era um expediente estranho (mas, de facto advogado pela URSS na ONU desde 1960) que só podia dever-se a um alinhamento ideológico ou àquilo a que A. J. Saraiva viria a chamar, polemicamente, um «instinto das tripas».
Esta foi a vertente mais dramática do braço de ferro Spínola/Coordenadora. Vão jogar-se aqui os dois meses seguintes. A constituição do II Governo, com um militar da Coordenadora à cabeça (Vasco Gonçalves) foi um revés para Spínola (quase uma antecipação do 28S). O Governo passa a estar todo alinhado com a Coordenadora. E os spinolistas vão tentar preservar o que resta da sua visão da transição. Perdido o Governo, só podiam agir junto do poder fático: as FA.
O Documento M. Engrácia Antunes/Hugo dos Santos, a circular nos quartéis no fim de agosto, foi uma última chamada à ordem: o facto de Costa Gomes (o eterno desertor das definições prementes) o subscrever de início deve significar que o apoio entre militares seria significativo. Mas a Coordenadora mobilizou os seus contactos na imprensa e nas rádios para haver um black-out ao documento, e conseguiu pôr o CEMFA Costa Gomes do seu lado, que o proibiu.
Costa Gomes assume explicitamente o seu alinhamento com a Coordenadora e vai colaborar com ela ativamente até ao fim de setembro para liquidar o papel de Spínola como vértice da cadeia de comando das FA. Em qualquer manual, isto seria considerado um golpe de estado. Claro que, para a Coordenadora, era o PR que preparava um golpe de estado por insistir na cadeia de comando. Mas não era só esta que estava em causa. Era a disciplina nas FA.
A indisciplina foi assumida pela Coordenadora (e por Costa Gomes), agindo de modo concertado com partidos políticos contra ordens do PR. É o que se verá pouco depois com as armas distribuídas a militantes do MDP e do PCP para formarem barricadas nos acessos a Lisboa e colaborarem com o COPCON no assalto às sedes dos partidos que organizavam uma manifestação de apoio a Spínola – a célebre manifestação da autoproclamada “maioria silenciosa”.
A manifestação era organizada pelos partidos em formação que rejeitavam a já referida estratégia do MDP/CDE e que, também por isso, não haviam sido cooptados para os governos provisórios. Sobre aqueles partidos, a historiografia tem repetido os qualificativos adotados na época pelo MDP e o PCP para os demonizar – e, na verdade, para justificar a sua proibição. Uma proibição que não quis assumir-se e nunca foi formalizada por ordem escrita ou por decreto.
Mas é com partidos de facto proibidos – e impedidos de organizarem uma das muitas manifestações já até então decorridas – e com os mandados de captura emitidos com a alegação de o detido ou procurado «pertencer a uma associação de malfeitores» que a Coordenadora e o governo capitaneado por Vasco Gonçalves vão conseguir neutralizar os civis mobilizados no apoio a Spínola. Este ainda tentou, face a esta ofensiva, reagir do lado militar.
A tentativa do PR de decretar um estado de sítio tinha não só os partidos do II Governo (PCP, MDP, PS e PPD já sem Sá Carneiro) em firme oposição, mas também a Coordenadora decidida a bombardear o palácio de Belém. É neste contexto que o Conselho de Estado, pelo qual Spínola queria fazer aprovar aquela decisão, tira também o tapete ao PR. Spínola percebe que foi humilhado e que ser PR foi reduzido a nada. As FA, formalmente, deixaram de existir.
Nas
palavras de um historiador insuspeito, o que se seguiu foi uma «ditadura
militar policêntrica». Já estava lá em potência, mas agora consumada. E é esse
facto que tornou a transição, então ainda com muito em aberto (nomeadamente os
dossiês Angola e Eleições), num processo vigiado ideologicamente,
apertado nas opções toleradas e arrastando – durante mais de um ano – violações
sistemáticas de direitos fundamentais. Uma história ainda mal contada. ●