domingo, maio 25, 2025

O 28 de Setembro de 1974: da "transição aberta" à "transição fechada"

[Apresentado no colóquio «As revoluções dentro da Revolução», 24 de maio de 2025, Câmara Municipal de Torres Vedras.] 

No 28 de Setembro de 1974 (28S) creio estar a chave sobre aquilo em que a transição portuguesa para democracia se tornou até ao advento da Constituição de 1976. O 28S, na verdade, começou dias antes com emissões de mandados de captura contra várias individualidades e fecho de sedes de partidos políticos em vias de constituir-se e acabou a 30 com a demissão de Spínola. Poucos dias depois, havia cerca de trezentos presos políticos. O que se passara?

Uma chave (válida) para interpretar o 28S é uma tese com meio século, de um dos protagonistas daqueles anos (Sanches Osório): a do “equívoco do 25 de Abril”; i.e., o Movimento das Forças Armadas (MFA) teve desde o início no seu interior duas visões políticas diferentes da transição que devia seguir-se ao golpe militar. Iludir essa diferença permitiu contar com os oficiais das duas visões e pôr o golpe em marcha, mas o “equívoco” não desapareceu com o triunfo do golpe.

O 28S foi o momento em que as duas visões tiveram o confronto final. Só uma podia imprimir à transição a direção que devia tomar – e o confronto foi imediato ao 25 de Abril. Foi isso o célebre braço de ferro entre Spínola e a chamada Comissão Coordenadora do MFA. Mas atenção: Spínola era ele e os seus homens do MFA (vg. “spinolistas”) e a Coordenadora não era o MFA (todo). Aferir o peso relativo dos dois lados não é fácil, mas referir-me-ei a isso.

Antes de caracterizar politicamente as visões em confronto, há um aspeto importante: os spinolistas tinham um chefe, para mais alçado a presidente da República (PR). Na sua visão, e na sua adesão à disciplina da cultura militar, a transição far-se-ia com uma cadeia de comando ativa, i.e., a funcionar. O outro lado do MFA não tinha nada disso (Costa Gomes demitir-se-ia desse papel) e esse facto foi um problema, dado que o poder efetivo estava com os militares.

Quanto a isto, esclareço que não adiro às teses da espontaneidade dos acontecimentos. Havia partidos ativos, grandes e pequenos, que reduziam muito essa alegada espontaneidade. A “rua”, a tal “rua” em que o poder podia cair (tese de Marcelo Caetano na passagem de poderes) fez escola, mas é ilusória. A “rua” era organizada ou comandada. Mas o poder de decidir os desfechos políticos, mesmo com as eleições, esteve sempre – sempre – nas mãos dos militares.

A forma mais clara de distinguir/caracterizar as duas visões políticas da transição dentro do MFA é explicar que uma delas aderia à ideia que apareceu veiculada pelo MDP/CDE de que o MFA se deveria assumir como “movimento de libertação” da Metrópole (mimetizando a visão histórico-política dos “movimentos de libertação” africanos como representantes vanguardistas dos povos que diziam representar). Logo, o MFA deveria ser algo não previsto no seu Programa.

Nessa visão, o MFA necessitava de aliados políticos, que logo no fim de abril de 1974 o MDP/CDE identificou como sendo ele próprio, o PCP, o PS e os «católicos antifascistas» (ou seja, apenas os dotados de cursus honorum oposicionista validado pelo próprio MDP); com estas forças, os militares do MFA constituiriam, segundo o MDP, «uma plataforma comum de todos os patriotas civis ou fardados». Constatar-se-ia que esta visão dominava na Coordenadora do MFA.

Os spinolistas tinham-se mantido ou aderido ao MFA dados os contactos prévios com Spínola e a adesão deste ao golpe projetado (ao contrário de Costa Gomes, que não se mostrou disponível); a sua presença era evidente nas reuniões preparatórias do golpe, mas a sua não representação na Coordenadora teve algo a ver com o envolvimento de muitos deles no golpe falhado de 16 de março, que os tirou do centro das operações (ainda estavam presos a 25 de abril).

A elaboração muito tardia do Programa do MFA, ainda corrigido no dia do golpe, já após o seu triunfo, mostra que não houvera um compromisso consolidado ou um meio-termo negociado entre as duas visões. Ela teve de ser feita pela mão do próprio Spínola, com quem a Coordenadora efetivamente a negociou. O Programa do MFA assim negociado, e no que consagrou explicitamente, é importante para ler os cinco meses seguintes.

Há três aspetos fulcrais no Programa, que permitem explicar a visão dos spinolistas, que sempre o leram a partir do que lá era explícito. Primeiro: o MFA era um instrumento para fazer o golpe, mas não é nomeado no Programa como dotado de qualquer papel ou realidade institucional após o sucesso do golpe. Entrariam em cena novos órgãos de soberania, incluindo uma Junta Militar (a JSN) que representaria as Forças Armadas (FA) na transição.

Uma cadeia de comando no âmbito militar estava subentendida (pelo menos, assim o pensaram os spinolistas). Para militares, num golpe feito por militares, era inverosímil que não estivesse. No entanto, houve um fator de inverosimilhança que não podemos menosprezar na análise: para os homens da Coordenadora essa cadeia de comando não era clara. Ao ser feito cabeça da JSN e PR, Spínola entendeu ter a chefia suprema das FA na transição.

Segundo aspeto: o Governo Provisório, distinto da JSN, teria funções semelhantes a um governo de gestão incumbido de preparar eleições. As grandes decisões quanto ao futuro do País teriam de ser tomadas por órgãos sufragados nas urnas, nomeadamente a prevista assembleia nacional constituinte. Isto é importante para perceber a origem e o racional do “Plano Palma Carlos”, que foi uma resposta às pressões da Coordenadora.

As grandes opções políticas para o futuro, implicando um processo constituinte, eram como que o processo de “autodeterminação” do Portugal Metropolitano. Não eram só os territórios ultramarinos que teriam um processo desse tipo. E o Programa do MFA claramente previa que esse processo decisório quanto ao futuro político da Metrópole implicava a consulta pelas urnas e decisões tomadas só depois das urnas. Ou seja, um verdadeiro processo de autodeterminação.

Terceiro aspeto: estava prevista a constituição de «“associações políticas”, possíveis embriões de futuros partidos políticos» (ponto B5, alínea a), sem referenciação a grupos ou ideologias específicas e, portanto, mais abrangente, espontâneo e aberto do que as limitações pressupostas na proposta já referida do MDP/CDE. E, atenção: nada restringia à Metrópole este princípio de abertura. Daí o boom de “associações políticas” logo desde o mês seguinte.

Esse boom aconteceu na Metrópole e no Ultramar e criou uma diversidade de correntes de opinião política muito maior do que a que conhecemos das eleições de 1975. A este facto sobrepôs-se outro: a cooptação pelos militares de grupos/partidos políticos para o Governo Provisório. Esta cooptação era problemática no contexto da constituição em curso de “associações políticas” da iniciativa dos cidadãos. Esta cooptação implicava uma discriminação.

A cooptação do PS, do PCP e do MDP (que já estavam constituídos) e a promoção/invenção do PPD como representante oficioso da extinta “ala liberal” foi um expediente para a constituição de um governo provisório com representação de correntes de opinião, mas condicionou ou distorceu a constituição do espectro político-partidário. Estar ou não estar no governo provisório não era indiferente para partidos em vias de implantação.

Estar no governo também estreitava a relação com os militares, o que teve dois efeitos. Contribuiu para politizar os militares numa medida que não era suposta (pelos menos para alguns) e beneficiou ou reforçou os que mais defendiam ou melhor se davam com esse estreitar de relações: os defensores da estratégia do MDP/CDE e os militares a ela recetivos (como, por exemplo, Melo Antunes e Almada Contreiras, que até já orbitavam a CDE antes de 74).

A coligação partidária pressuposta na composição do I Governo já era uma rendição de facto à estratégia do MDP/CDE. A presença do PPD destoava um pouco, mas não muito, pois o PPD queria afirmar-se por ali. Palma Carlos destoaria mais. A queda do I Governo em 17 de julho (depois de dois meses em funções) foi a consequência da pressão da estratégia do MDP/CDE colocada dentro do Governo por grande parte dos ministros políticos.

Palma Carlos percebeu que os membros do Governo alinhados com aquela estratégia se articulavam bem com a Coordenadora do MFA. E ambos queriam condicionar o Governo nos planos das opções económicas, das relações laborais e da negociação com os “movimentos de libertação”. O grau de articulação destes agentes civis e militares no exercício daquela pressão precisa de ser mais investigada. Mas a afinidade ideológica existia.

E a afinidade ideológica tinha consequências. O PS estava ainda numa lógica muito frentista e de disputa com o PCP no campeonato do radicalismo (veja-se o tema das greves) e o PPD não tinha um programa claro. A agenda do MDP insinuava-se com facilidade. No plano das relações laborais, a nomeação de comissários governamentais nas empresas, com Avelino Gonçalves (PCP) como ministro do Trabalho, alavancou a estratégia do MDP no plano económico.

Sejamos claros. A estratégia do MDP/CDE era a do PCP. A CDE era a face eleitoral legal do PCP antes de 74 e o MDP/CDE, depois de 74, manteve-se para agir como um testa-de-ferro estratégico. E o PCP queria no mundo empresarial o modelo da cogestão Governo/sindicatos. O PCP operacionalizaria isso com o Ministério do Trabalho e a Intersindical na mão. Neste contexto, as greves podiam não lhe servir. Bastava-lhe controlar a cúpula da cogestão.

Aliás, o PCP teve – muitas vezes, via MDP e Intersindical – uma estratégia de assalto a organizações-chave. Os sindicatos nacionais e os municípios foram alvos preferenciais de comités de “democratas” que “apenas” os queriam sanear. Os seus aliados dentro do Governo e da Coordenadora sancionaram estas ocupações. Palma Carlos percebeu que esta ocupação do terreno institucional era uma estratégia de condicionamento do Governo nas suas funções de gestão.

O Governo, mesmo assim, interveio bastante no plano económico. Houve congelamento de preços, condicionamento do comércio externo, a banca foi amarrada com pulso firme às intenções do Governo e a Bolsa permaneceu encerrada (até 1977). Mas a Coordenadora e o MDP-PCP sempre deram sinais de querer mais. O que faltava, claro, era uma política de ofensiva contra a gestão e o capital privados nas empresas de grande e média dimensão.

Foi deste cerco que Palma Carlos quis sair com o seu “Plano” de alteração da Lei 3/74. A Coordenadora e os seus aliados políticos preferiram forçar as suas opções, mesmo que isso implicasse sabotar a ação e a autoridade do Governo. O mesmo em relação à JSN. Em julho era claro que havia duas juntas militares em concorrência: JSN e Coordenadora. Isto era ingerível e fomentava um caos crescente, nas FA e no País. Palma Carlos (e Spínola) quiseram pôr fim a isto.

O único caminho, na sua visão, era antecipar a ida às urnas. Só uma consulta popular podia criar uma legitimidade concorrente da pseudolegitimidade vanguardista que se arrogavam a Coordenadora e os aliados da estratégia do MDP/CDE. Esta estratégia foi preferida pela maior parte dos ministros políticos do I Governo que, assim, fizeram cair Palma Carlos. Este queria, entre outras coisas, eleições municipais para acabar com a ocupação das câmaras pelo MDP.

No plano das negociações com os “movimentos de libertação”, foi de elementos da Coordenadora (ou de protagonistas com ela alinhados, como Otelo, a 6 e 7 de junho, em Lusaca) que partiram iniciativas extemporâneas para forçar cessar-fogos incondicionais e a entrega do poder aos “movimentos de libertação”. A 11 de junho, Spínola deixa claro que “autodeterminação” não pode ser «a imposição a esses povos de opções em que não participaram», como hoje seria pacífico.

Embora custe a muita gente ainda hoje admiti-lo, a ideia da autodeterminação como entrega de um território multiétnico a movimentos armados que não tinham essa representatividade ampla nem concedida com mecanismos de consulta era um expediente estranho (mas, de facto advogado pela URSS na ONU desde 1960) que só podia dever-se a um alinhamento ideológico ou àquilo a que A. J. Saraiva viria a chamar, polemicamente, um «instinto das tripas».

Esta foi a vertente mais dramática do braço de ferro Spínola/Coordenadora. Vão jogar-se aqui os dois meses seguintes. A constituição do II Governo, com um militar da Coordenadora à cabeça (Vasco Gonçalves) foi um revés para Spínola (quase uma antecipação do 28S). O Governo passa a estar todo alinhado com a Coordenadora. E os spinolistas vão tentar preservar o que resta da sua visão da transição. Perdido o Governo, só podiam agir junto do poder fático: as FA.

O Documento M. Engrácia Antunes/Hugo dos Santos, a circular nos quartéis no fim de agosto, foi uma última chamada à ordem: o facto de Costa Gomes (o eterno desertor das definições prementes) o subscrever de início deve significar que o apoio entre militares seria significativo. Mas a Coordenadora mobilizou os seus contactos na imprensa e nas rádios para haver um black-out ao documento, e conseguiu pôr o CEMFA Costa Gomes do seu lado, que o proibiu.

Costa Gomes assume explicitamente o seu alinhamento com a Coordenadora e vai colaborar com ela ativamente até ao fim de setembro para liquidar o papel de Spínola como vértice da cadeia de comando das FA. Em qualquer manual, isto seria considerado um golpe de estado. Claro que, para a Coordenadora, era o PR que preparava um golpe de estado por insistir na cadeia de comando. Mas não era só esta que estava em causa. Era a disciplina nas FA.

A indisciplina foi assumida pela Coordenadora (e por Costa Gomes), agindo de modo concertado com partidos políticos contra ordens do PR. É o que se verá pouco depois com as armas distribuídas a militantes do MDP e do PCP para formarem barricadas nos acessos a Lisboa e colaborarem com o COPCON no assalto às sedes dos partidos que organizavam uma manifestação de apoio a Spínola – a célebre manifestação da autoproclamada “maioria silenciosa”.

A manifestação era organizada pelos partidos em formação que rejeitavam a já referida estratégia do MDP/CDE e que, também por isso, não haviam sido cooptados para os governos provisórios. Sobre aqueles partidos, a historiografia tem repetido os qualificativos adotados na época pelo MDP e o PCP para os demonizar – e, na verdade, para justificar a sua proibição. Uma proibição que não quis assumir-se e nunca foi formalizada por ordem escrita ou por decreto.

Mas é com partidos de facto proibidos – e impedidos de organizarem uma das muitas manifestações já até então decorridas – e com os mandados de captura emitidos com a alegação de o detido ou procurado «pertencer a uma associação de malfeitores» que a Coordenadora e o governo capitaneado por Vasco Gonçalves vão conseguir neutralizar os civis mobilizados no apoio a Spínola. Este ainda tentou, face a esta ofensiva, reagir do lado militar.

A tentativa do PR de decretar um estado de sítio tinha não só os partidos do II Governo (PCP, MDP, PS e PPD já sem Sá Carneiro) em firme oposição, mas também a Coordenadora decidida a bombardear o palácio de Belém. É neste contexto que o Conselho de Estado, pelo qual Spínola queria fazer aprovar aquela decisão, tira também o tapete ao PR. Spínola percebe que foi humilhado e que ser PR foi reduzido a nada. As FA, formalmente, deixaram de existir.

Nas palavras de um historiador insuspeito, o que se seguiu foi uma «ditadura militar policêntrica». Já estava lá em potência, mas agora consumada. E é esse facto que tornou a transição, então ainda com muito em aberto (nomeadamente os dossiês Angola e Eleições), num processo vigiado ideologicamente, apertado nas opções toleradas e arrastando – durante mais de um ano – violações sistemáticas de direitos fundamentais. Uma história ainda mal contada. ●

sábado, maio 03, 2025

A triangulação do círculo: energia, capital e democracia como vetores da geoestratégia global


[Publicado na revista Relações Internacionais n.º 85 (março 2025), pp. 105-109 - AQUI]

Helen Thompson – Disorder: Hard Times in the 21st Century (1.ª ed. 2022), Oxford: Oxford University Press, 2023, 395 p. [ISBN 978-0-19-886501-8 (pbk.)]

Este livro, na sua 1.ª edição, foi publicado um mês antes da invasão da Ucrânia, em 2022; e dado que a autora identificava, na sua análise, a fronteira sudeste da União Europeia (UE) e o mar Negro como uma das zonas fulcrais de tensão geoestratégica, a obra mereceu uma 2.ª edição, com posfácio, em 2023, que é a aqui recenseada. Helen Thompson, professora de Economia Política no Clare College (Cambridge), é especialista nas repercussões geoestratégicas das questões energéticas e foi autora de Oil and the Western Economic Crisis (Palgrave Macmillan, 2017), além de ser colunista do New Statesman e membro do conselho consultivo do think-tank Labour Together. Em Disorder: Hard Times in the 21st Century, Thompson propõe a triangulação da sua temática de eleição com a da evolução do mercado financeiro global e a das tensões políticas nos regimes democráticos ocidentais no primeiro quartel do nosso século – embora faça recuos cronológicos que chegam a incluir conjunturas decisivas de todo o século XX.

A tese do livro é que as mudanças estruturais em torno da energia (em particular, do acesso a fontes de energia) e da finança (em particular, do acesso a uma moeda-padrão internacional) desencadeiam sempre consequências geoestratégicas tumultuosas e explicam a possibilidade ou viabilidade dos arranjos institucionais internacionais. E estes factos não são indiferentes à vida política interna dos Estados-nação, nomeadamente naqueles onde os mecanismos de poder democrático sofrem pressões destes fatores e geram respostas que interagem com eles.

Thompson lembra que a Europa, e os seus Estados-nação principais, tiveram no passado uma hegemonia euroasiática e global quando a sua tecnologia industrial emergente dependia do carvão, sendo este uma fonte de energia que os mesmos tinham nos seus territórios – e poderíamos acrescentar que esse fator pesou na marginalidade, dentro da Europa, dos países (como Portugal) que não partilhavam aquele “feliz acaso geográfico” (como lhe chamou K. Pomeranz em The Great Divergence, Princeton U. P., 2001); da mesma forma, o declínio da hegemonia europeia e a emergência dos Estados Unidos da América (EUA) e da Rússia no século XX estiveram intimamente ligados à substituição do carvão pelo petróleo em setores-chave da economia (como os transportes ou a indústria petroquímica), de que a Europa não dispunha, ao contrário dos dois gigantes em ascensão. E o aumento do consumo de petróleo, depois da respetiva transição energética, condicionou as opções geoestratégicas e a projeção de poder exterior dos Estados – o que esteve patente nos mandatos britânico e francês no Médio Oriente após 1918 (e no esforço de assegurar corredores marítimos necessários ao transporte do petróleo ali explorado), tal como, após 1945, na pressão que os EUA tiveram para assegurar os corredores marítimos que permitiam transportar o mesmo petróleo para um consumo a que a sua produção interna já não bastava e para o fazer chegar também aos seus aliados do lado de cá da Cortina de Ferro. Ora, nesta dependência de combustíveis fósseis crescentemente consumidos está também hoje a China (e a Índia), o que condiciona a sua projeção externa de poder (no mar da China e no Índico para acesso ao golfo Pérsico) e respetivos alinhamentos geoestratégicos (máxime com a Rússia, sua natural fornecedora por vizinhança geográfica). Por outro lado, estes mercados consumidores emergentes dão aos produtores (Arábia Saudita ou Irão, entre outros) alternativas de alinhamento, que explicam as maiores pressões sobre os países ocidentais naquela região do Globo.

Neste contexto, a autora dá atenção à geoestratégia dos gasodutos e oleodutos e às incompatibilidades que esta gera entre membros da UE, e que são uma séria ameaça à sua coesão ou capacidade de ação comum. Thompson mostra a historicidade destes problemas e que, por exemplo, a opção alemã pela dependência de fornecimentos russos é antiga (e de forte lógica geográfica e de custos) e que isso tem articulação difícil, não só com os interesses dos EUA, mas também com os de outros países europeus (sobretudo os que rejeitam voltar a uma “esfera de influência” de Moscovo). A isto acresce, como Thompson reforça, a fragilidade europeia perante a nova transição energética (não imposta por exaustão de recursos ou por uma transição tecnológica vantajosa, mas pela “agenda climática”), uma vez que a distribuição geográfica das matérias-primas necessárias às tecnologias energéticas “verdes” volta a deixar o Velho Continente inteiramente dependente – além do facto de ser evidente que o consumo global de energias fósseis continua a crescer claramente, e a dita transição não começou sequer. Nesta conjuntura, o fecho do programa nuclear alemão motiva perplexidade e torna pouco claro como poderá gerar-se um alinhamento estratégico na UE no campo das escolhas energéticas.

Uma das teses do livro é que estes problemas ocorrem numa conjuntura em que o poderio norte-americano está (re)consolidado em torno de uma (quase) autonomia energética dos EUA – no que o petróleo de xisto tem peso significativo – e na herança da função do dólar como moeda-padrão internacional hegemónica. Esta função do dólar não se originou apenas na “ordem” de Bretton Woods nem no facto de os EUA serem, na primeira metade do século XX, o grande gerador de capitais de que uma Europa arruinada pelos dois conflitos mundiais por si criados se tornou dependente; originou-se, sim, nos caminhos tomados pelo mercado de capitais no segundo pós-guerra, fugindo ao controlo dos Estados (incluindo os EUA) e ligado aos mecanismos de criação de moeda escritural pela banca (nomeadamente europeia), denominada em (ou ancorada nos) dólares exportados diretamente pelos EUA ou pelos seus títulos do Tesouro também espalhados pelo Mundo (adotados como valor-refúgio) cujo giro suportou um cada vez mais complexo repo market de revenda e/ou empréstimo destes valores como forma de transação ou empréstimo interbancário de capitais, a que os Estados (mais e menos desenvolvidos) frequentemente também recorreram para se financiarem. Esta “alquimia” monetária e financeira, como caracterizada por Niall Ferguson e Moritz Schularick («Chimerica and the Global Asset Market Boom», International Finance, 10:3, 2007), esteve na origem da crise de 2007-2008, de que o subprime norte-americano foi um detalhe, e não podia ser “controlada” por Estados que a incentivavam ou por ela se financiavam. Thompson acompanha também, circunstanciadamente, a história do sistema monetário europeu, e a sua geografia variável de adesões e fricções, para mostrar como, dentro dele, se mantêm disfunções potenciais e tensões vulneráveis a fatores externos e/ou globais.

A entrada clara e definitiva da China no comércio mundial, no início do presente século, implicou que se engrenasse neste mercado de capitais globalizado maioritariamente denominado em dólares. Esse mercado, como Thompson explica (mas alguns dos seus críticos não compreendem – cf. Matthew C. Klein, «How To Get Recent History All Wrong», Foreign Policy, 7-5-2022), sempre foi localmente influenciado por decisões políticas que nele interferiram e interferem. Foi assim na UE, onde o potencial de endividamento público e privado por meio deste mercado de Eurodólares foi apoiado por políticos (desde Kohl) e pela banca (incluindo a alemã), vencendo a disciplina institucional do pós-guerra pressuposta no padrão-ouro do dólar (abandonado em 1971, mas sob pressão antes) e no mandato anti-inflacionista do Bundesbank (ignorado em Bona/Berlim depois da reunificação). Aliás, Thompson reporta bem a guerra de políticos e banqueiros alemães com o Bundesbank e o Tribunal Constitucional (sobretudo em torno da negociação dos tratados de Maastricht e Lisboa). E foi assim na China, a qual reforçou e expandiu esta tendência, acumulando reservas denominadas em dólares – graças ao seu superavit comercial e à atração de investimento estrangeiro –, que suportou internamente uma expansão dos balanços e do crédito bancários, mas também as intervenções monetárias maciças do banco central após a crise de 2007-2008 (para “reparar” aqueles balanços). O investimento brutal em estruturas de capital fixo (e a capacidade produtiva) que daqui resultou permitiu que as exportações chinesas baixassem globalmente os preços dos bens, moderando as tendências inflacionistas globais. Mas esse movimento está em refluxo (ou exausto), o que é evidente no declínio do crescimento chinês e na manipulação do câmbio do renminbi com o dólar, gerido conjunturalmente por Pequim, para evitar uma fuga de capitais e preços menos competitivos, que pode já estar a acontecer e a incentivar Xi Jinping a querer sair da “armadilha do dólar” e a virar-se para o consumo interno, isolando mais a China da sua exposição global (como advoga Russell Napier, «America, China, and the Death of the International Monetary Non-System», American Affairs, 8:4, 2024).

Thompson argumenta que, no mundo condicionado pelas problemáticas acima enunciadas, o Estado-nação mantém-se como a unidade política fundamental (nenhum Estado-nação foi destruído pela experiência comunista e a Guerra Fria terminou com uma nova “primavera das nações”, que incluiu a própria autodeterminação alemã patente na reunificação); e, recorrendo a Políbio, Maquiavel e a alguns exemplos históricos, lembra que isso se articula com a gestão de um equilíbrio (interno às diferentes sociedades) entre tendências demagógicas e oligárquicas que determinam o maior ou menor consenso interno ou a saúde institucional dos regimes políticos. E todo o livro pretende mostrar como os problemas energéticos e financeiros pressionam a procura desse equilíbrio. A autora adverte, por isso, que os tempos desafiantes do presente século exigem uma flexibilidade de decisões e ajustamentos à realidade de difícil gestão fora do quadro do Estado-nação – sobretudo num bloco institucional multinacional englobando diferentes interesses e perceções geoestratégicas como a UE.

Luís Aguiar Santos Doutor em História Económica e Social pelo ISEG/Lisbon School of Economics and Management (UL) e investigador do GHES/ISEG Research (UL).

terça-feira, maio 28, 2024

Homenagem (50 anos do PL)

Faz hoje cinquenta anos que um punhado de homens fundou o Partido Liberal:

José Ávila (administrador da SINASE, Sociedade de Investigação Aplicada ao Serviço da Empresa, SARL), António Luís Marques de Figueiredo (tenente-coronel na reserva, administrador das empresas Navex e Tráfego e Estiva, e aparente financiador do partido), José Harry de Almeida Araújo (n. 1924, arquiteto, que estivera duas décadas fora de Portugal, secretário-geral, e autor do artigo «Não somos todos camaradas somos todos portugueses», Expresso, 27-7-1974, e do livro A Vida aos Pedaços: Memórias, Coimbra: ed. autor, 2012), Gastão Caraça da Cunha Ferreira (psicólogo e pedagogo, creio que ligado ao IPOPE), José Cabral (médico), Luís Alberto Vinhas Frade (estudante universitário), Osvaldo Eurico Aguiar (advogado), Aureliano Dias Gonçalves, Moisés Ayash, D. Duarte Pio de Bragança, João Saldanha e Amândio (Pinto) Quintas.

A declaração de princípios foi publicada em junho. Em julho, saiu o primeiro número do semanário do partido, Tempo Novo, de que se publicaram sete.

O partido realizou várias ações públicas em diferentes localidades do País.

A 26 de setembro, a sede do partido foi assaltada e selada pelo COPCON. Não houve qualquer diploma legal ou decisão judicial suportando esta ação.

Nos dias seguintes, os seus dirigentes foram alvo de perseguição, depois de emitidos mandatos de captura em seu nome, sem culpa formada, considerando-os membros de "um grupo de malfeitores". Nunca se provou qualquer ato ilegal cometido por qualquer um deles.

O L&LP lembra e homenageia estes homens, que durante quatro meses levaram a cabo uma empresa exemplar e heroica.

REMEMBER - RESEMBLE - PERSEVERE

sábado, maio 18, 2024

O impacto do 25 de Abril na imprensa económica

 O impacto na imprensa económica das mudanças subsequentes ao 25 de Abril de 1974 foi analisado por mim nesta comunicação (AQUI)



terça-feira, abril 30, 2024

Nos 50 anos do 25 de Abril (discurso autárquico pela IL)

[Discurso, em nome do partido Iniciativa Liberal, na sessão comemorativa dos 50 anos do 25 de Abril de 1974, na Assembleia de Freguesia de Arroios (Lisboa), a 29 de abril de 2024.]

Caros membros da junta e da assembleia de freguesia de Arroios,

Caros fregueses,

A Iniciativa Liberal participa com entusiasmo e convicção nas comemorações dos cinquenta anos do 25 de Abril de 1974.

Saudamos nessa data histórica a promessa que com ela nasceu da restauração de direitos, liberdades e garantias então perdidos ou limitados, bem como a da instauração de um regime político democrático pelo qual a quase totalidade do País ansiava.

No Programa do Movimento das Forças Armadas, anunciado aos Portugueses na madrugada de 25 para 26 de Abril pela Junta de Salvação Nacional, tal como na Lei Constitucional n.º 3/74 de 14 de maio, estavam estabelecidas as condições para os Portugueses poderem, já em liberdade, informarem-se, debaterem e organizarem-se de forma plural para elegerem uma assembleia constituinte que decidiria soberanamente as grandes opções políticas e institucionais para o futuro próximo.

Naquelas condições reviam-se e revêem-se obviamente os liberais portugueses. E as possibilidades que elas abriam merecem hoje, cinquenta anos depois, a nossa adesão e comemoração entusiásticas.

Dado estarmos aqui numa autarquia local, e porque a história do 25 de Abril na sua sequência e nas suas implicações nacionais se deve fazer em instituições de outra escala, não terá talvez sentido determo-nos em considerações sobre o que das promessas anunciadas no Programa do MFA se dissipou e desviou entre o 28 de Setembro de 1974 e o 25 de Novembro de 1975. Desse período, em que as portas abertas em Abril foram capturadas ou fechadas por setores políticos e militares que quiseram decidir sem legitimidade o futuro de todos os Portugueses, haverá para nós pouco a comemorar. E digo pouco porque há, evidentemente, a comemorar a resistência dos que, então, a tal via se opuseram – e sobretudo dos que o fizeram desde a primeira hora.

Nestes cinquenta anos do 25 de Abril comemoramos dois outros 25 de Abril – o de 1975, em que, não sem contrariedades nem limitações ilegítimas, foi possível eleger a assembleia constituinte prometida um ano antes; e o de 1976, em que entrou em vigor a Constituição da República Portuguesa, aprovada no dia 2 do mesmo mês de abril.

A Constituição, redigida e aprovada embora sob a coação dos chamados pactos – ou diktats – MFA/Partidos, consagrou já os direitos, liberdades e garantias, e algumas soluções institucionais, como o Estado de Direito, a separação de poderes e a «democracia pluripartidária do tipo ocidental», reclamadas pelos liberais desde maio de 1974 – liberais triturados depois pelo rolo compressor do 28 de Setembro, como o seriam, provavelmente, pelo dos pactos referidos.

Na Constituição de 1976, que comemoramos como lei fundamental que cumpriu em boa parte as promessas originais do 25 de Abril, era consagrado também um poder local assente em autarquias com órgãos eleitos e deliberativos à escala do município e da freguesia, como se tinham incorporado no nosso direito público desde as reformas administrativas desse século XIX português de cunho tão liberal.

Esta é sobretudo a conquista que queremos hoje, aqui, comemorar. O poder local de municípios e freguesias, incorporado na Constituição como elemento fundamental da vida política e democrática do País.

Esse poder local de que os liberais, desde Alexandre Herculano, foram sempre defensores como parte inalienável da liberdade civil e política. Esse poder local que o liberal Benjamin Constant considerava um dos cinco poderes do Estado e que, com legitimidade própria, integrava a soberania numa ordem constitucional.

Com memória dos acontecimentos, com lealdade aos princípios de uma tradição liberal já antiga e sempre renovada, com gratidão a muitos homens e mulheres de valor e coragem que abriram ou preservaram caminhos, com a alegria imensa de hoje aqui estarmos a comemorar o 25 de Abril mais puro e original, a Iniciativa Liberal em Arroios só pode terminar esta alocução com três VIVAS:

À Liberdade!

A Portugal!

Ao 25 de Abril!

Muito obrigado. 

Pela Iniciativa Liberal,

Luís Aguiar Santos

sábado, abril 27, 2024

O 25 de Abril e a História


António José Saraiva [1917-1993]
(«Comentários a respostas», Diário de Notícias, 23-2-1979) aos críticos do seu artigo «O 25 de Abril e a História», nomeadamente Melo Antunes (Filhos de Saturno: Escritos sobre o Tempo que Passa, Lisboa: Gradiva, 2015, pp. 274-277):

«Havia um projecto de descolonização, ou antes, um ideal de descolonização dependente de negociações necessariamente difíceis e delicadas; e havia, por outro lado, um levantamento de capitães, sem ideia, e com uma única motivação: acabar com a guerra imediatamente e fosse como fosse (por isso falei em “instinto das tripas”). O movimento nomeou um chefe, chamado Spínola, que tinha a consciência de que a guerra tinha de acabar, mas não podia acabar de qualquer maneira, no abandalhamento. Nesse momento, evidentemente, era indispensável o reforço do comando para que a tropa não se desagregasse. Mas o MFA, que se constituiu em representante dos capitães, sabotou a unidade do comando, provocando a desorientação das tropas e tornando impossível qualquer negociação fosse ela qual fosse. O major Vasco Lourenço e o tenente-coronel Melo Antunes […] disseram que o plano spinolista do referendo implicaria o prolongamento da guerra. Mas, nessa lógica, o que se seguia era depor imediatamente as armas unilateralmente, ou seja, a rendição imediata e sem condições. […] Diz […] Melo Antunes que o plano de Spínola (que consistia fundamentalmente num referendo nas diferentes colónias) era inexequível e utópico. Pelo menos era um plano, e o que o MFA nos deu em troca foi a ausência de qualquer plano, e, como conclusão, a “rendição incondicional”. Além de que essa afirmação […] é extremamente contestável, sobretudo no que respeita a Angola: nenhum dos três movimentos ali existentes representava a vontade do povo angolano no seu conjunto nem podia negociar em seu nome, pelo que, em teoria e na prática, se impunha uma consulta generalizada à população. […] Diz ele [Melo Antunes] que “o golpe militar do 25 de Abril transformou-se, em poucas horas, numa autêntica revolução popular com uma dinâmica interna”, etc., e que por isso “o processo histórico da descolonização faz parte da liquidação do fascismo e, paralelamente, da edificação, contraditória embora, de um novo estado democrático em Portugal”.

A mim parece-me que em Portugal não houve “autêntica revolução popular”, nem “liquidação do fascismo”, nem “edificação de um novo estado democrático”. O dito “processo histórico” foi uma série de golpes e intrigas na sombra dos quartéis, tendendo inicialmente à eliminação do chefe (Spínola), e transformando-se depois numa confusa luta de bandos de oficiais que acabou na mascarada dos SUV.

Em certa altura, já não havia exército, mas quadrilhas armadas que se passeavam nos seus Chaimites pelas ruas de Lisboa. O episódio decisivo que abriu completamente as portas da desintegração das Forças Armadas foi a farsa carnavalesca do 28 de Setembro, em que um destes bandos militares se associou a civis escolhidos para o efeito, segundo a sua ideologia política. A História dirá como foi tramado o 28 de Setembro, mas desde já salta à vista que ele ocorreu dias depois de Spínola ter iniciado pessoalmente as negociações para a descolonização de Angola, caso em que a aplicação do seu projecto de referendo se mostrava flagrantemente como a única solução legítima, exequível e normal. Neste caso, pelo menos, a solução do referendo foi rejeitada não por ser utópica, mas por ser indesejável para certo sector político com influência nas casernas.

[…] Melo Antunes diz que “a participação visível” (sublinhado meu) do PCP no processo de descolonização foi diminuta, e acrescenta: “Tenho para mim que o PCP sempre preferiu na descolonização métodos indirectos de pressão, formas subtis de influenciar os centros de decisão, evitando a todo o custo sujar as mãos”. No 28 de Setembro essa “forma subtil” foi demasiado grosseira e evidente.

Quanto ao “povo”, a sua participação no “processo revolucionário” e especialmente no da descolonização foi nula, a não ser que chamemos “povo” a bandos de arruaceiros que gritavam nas ruas de Lisboa palavras de ordem idiotas, mas calculadamente demagógicas, e que tentaram impedir o funcionamento da Assembleia Constituinte, entre outros atropelos. […] Em resumo, aceito a declaração de Melo Antunes de que “foram as indecisões políticas de Lisboa que impediram as Forças Armadas de actuar como seria legítimo”, só que estas “indecisões” foram a consequência de o MFA ou certo sector dele ter desorganizado o comando, primeiro pela guerra contra Spínola, depois pela luta desencontrada entre os seus vários bandos teleguiados do exterior. “Indecisões” é uma palavra neutra que mascara a realidade.

Tudo começou nos quartéis e tudo acabou nos quartéis, quando o 25 de Novembro restaurou a ordem nas Forças Armadas, que se tinham transformado, sobretudo depois do 28 de Setembro, em bandos armados».

sábado, março 16, 2024

Sobre as eleições de 10 de março último

Emblema do Partido Liberal, fundado
em 28-5-1974 e proibido a seguir
ao 28-9-1974 (ver aqui).

A Iniciativa Liberal teve, nas eleições de 10 de março último para a AR, 312,064 votos a nível nacional (5,08%), elegendo 8 deputados: Lisboa [distrito] 86,847 votos (6,58%, 3 deputados); Porto 5,75%, 2 dep.; Braga 6,10%, 1 dep.; Aveiro 5,11%, 1 dep.; Setúbal 5,36%, 1 dep. – em Lisboa concelho, 24,387 votos (7,45%) [Fonte: MAI]. O partido perdeu 1 deputado em Lisboa e ganhou outro em Aveiro, ficando a representação mais equilibrada e bem distribuída; aguentou a pressão do voto útil (AD) e a subida do Chega (que o afeta menos); nos restantes distritos do litoral e Madeira ficou acima dos 3%. É importante que se mantenha a estratégia de prudência perante a lógica da "política de blocos".

O Chega elegeu 50 deputados, com mais de 1,1 milhão de votos e, se este resultado se mantiver em próximas eleições (depois de eventual aproximação desse partido até agora protestatário à área do poder e que tem em Diogo Pacheco de Amorim uma ligação simbólica ao efémero Partido do Progresso de 1974), acabou a famosa “maioria sociológica de esquerda” e, já agora, o sistema partidário moldado pelo diktat da Coordenadora do MFA no processo de transição em 1974-76; estas eleições podem, aliás, ter produzido uma AR muito próxima daquela que poderia ter existido logo nas primeiras eleições após o 25 de Abril sem a proibição dos partidos organizadores da célebre manifestação da “maioria silenciosa” a 28-9-1974 e sem o rolo compressor dos chamados pactos MFA/Partidos.

Até muito recentemente, os liberais e a direita nacional-conservadora estiveram quase clandestinos no eleitorado do PSD e do CDS – depois de impedidos de ter os seus partidos “naturais” após o 28 de Setembro, nunca sendo nomeados pelas lideranças pragmáticas daqueles partidos que, na verdade, foram criações do MFA em 1974, tendo ficado amansados ideologicamente desde então; a criação do Chega e da IL, e o happening eleitoral de ambos, foi uma súbita emancipação daquele eleitorado não nomeado e, na verdade, uma rebelião tardia contra os pactos referidos e a cooptação de 74.

E é evidente outra coisa: que temos, agora, a AR mais plural dos últimos 50 anos e aquela que, nesse período, exprime de modo mais evidente a vitalidade do regime democrático e do sistema partidário.