quinta-feira, março 16, 2006

Sobre a fé cristã e os dois "vencidismos"

"Vencidos da Vida" e "Vencidos do Catolicismo". A primeira expressão designa o célebre grupo do Bragança que, no fim do século XIX, se reunia para discutir a suposta decadência do País e o modo como este (também supostamente) os ignorava. A segunda expressão, inspirada na primeira, foi cunhada num célebre poema de Ruy Belo e designa aqueles que acreditaram, dentro do catolicismo romano, numa "outra Igreja", sentindo-se também vencidos, mas pela Igreja real.

"Vencidos" uns, "vencidos" outros, quase cem anos depois. Eis um paralelo que nunca me ocorrera fazer, mas que foi defendido, entre muita outra coisa estimulante, num seminário recente (e regular) que junta gente interessada em história religiosa contemporânea. O motivo foi o estudo da personalidade de Ruy Belo e o proponente foi Jorge Revez. O que é interessante é que, como o Jorge notou, estes "vencidos" são tudo menos vencidos. Não se trata afinal, julgo eu, de "vitórias morais", mas de autênticas vitórias.

Os "Vencidos da Vida", independentemente de não se sentirem içados ao protagonismo de que se julgavam merecedores, moldaram a visão que as cabeças pensantes das gerações seguintes vieram a ter do País. Para o bem e para o mal. E não se imagina que maior vitória possam ter as glórias intelectuais no mundo. Já os "Vencidos do Catolicismo", expressão que João Bénard da Costa, em livro de crónicas homónimo, assumiu em nome do "grupo", tornaram-se, entre a opinião dominante (católica romana e não só) num género de bitola para aferir a autenticidade (e uma difusa "adequação ao mundo") da fé no espaço religioso maioritário que é entre nós o catolicismo romano.

Neste paralelo entre os dois "vencidismos" há duas linhas de aparente continuidade ou repetição. Uma: um embate com o catolicismo dogmático e a sua expressão institucional na Igreja hierárquica e respectivas mediações sacramentais. A outra: uma inquietação provocada pela interiorização da visão do socialismo relativamente àquilo que é percepcionado como "desigualdade" e "injustiça" na sociedade.

Na primeira linha de continuidade pode propor-se que o embate com a Igreja institucional se deve a uma "deslocação do religioso" ou, mais propriamente, das expectativas dos sujeitos que deixam de obter satisfação no quadro religioso vigente e "regulado" pela instituição. Em ambos os "vencidismos", os apelos mundanos introduziram claramente tensões que tiveram dificuldade de continuar acomodadas num quadro teológico-moral sentido como rígido e estreito (estes apelos mundanos são variáveis, "públicos" e/ou "privados"). Outra tensão, que julgo ser igualmente repetida, é entre o quadro teológico dogmático e o apelo de determinadas correntes filosóficas "modernas" a que os sujeitos aderem – no primeiro "vencidismo" o hegelianismo, o positivismo e os socialismos pré-marxistas; no segundo "vencidismo" os existencialismos e o marxismo. Estes dois elementos justapõem-se ou entram em choque e, em conjunto com a primeira tensão (mais existencial ou vital), motivaram experiências pessoais tanto mais dramáticas quanto eram vividas com maior radicalidade. Daí as rupturas, muitas vezes vistas de fora como evoluções para a "descrença" ou o ateísmo.

Saber o que resta da mundividência abandonada na obra e no testemunho posteriores destes sujeitos é uma questão que tem sido colocada por António Matos Ferreira para o primeiro "vencidismo" (sobretudo em Eça de Queirós e Oliveira Martins) e é agora colocada por Jorge Revez para o segundo "vencidismo" (em Ruy Belo). Que o "religioso" permanece depois das tensões transformadoras não há dúvida. É que o religioso permanece sempre. Que a transformação referida implica uma "deslocação do religioso", patente na importância que determinadas ideias ou palavras adquirem no discurso dos sujeitos, também parece claro; mesmo quando (ou sobretudo quando), como em Ruy Belo, se dá uma consciente substituição de palavras (que querem tornar clara no dizer uma evolução no sentir).

Mas, nessa "deslocação do religioso", o que resta então da mundividência abandonada? E qual o sentido da "deslocação"? Aqui, num acto de reflexão extremamente falível, parece-me que os significados das transformações individuais variam conforme o tipo de ligação que o sujeito tinha com a sua situação religiosa anterior. Quanto mais estivesse próximo, em consciência, do núcleo da fé cristã (mesmo envolvida na cultura eclesiástica e devocional católica romana), o Querigma, mais probabilidades tem de não romper essa fé por mais que recomponha, questione ou abandone a sua expressão institucional ou social. Pelo contrário, quanto mais dependente a sua adesão religiosa anterior estivesse dessa envolvência institucional e da sua sociabilidade mais provável se torna o que aparece publicamente como o "romper com a fé" ou a "perda de fé".

Ora, o que acontece entre nós no universo católico romano é que o peso da envolvência no sentido que os sujeitos dão à sua situação religiosa é muito grande (tal como acontece com todas as religiões institucionais hegemónicas em qualquer sociedade). E se a ruptura com essa envolvência for radical, a ténue ligação ao núcleo querigmático quebra-se com alguma facilidade. É isto que explica que os "desiludidos" com a orgânica eclesial abandonem a "fé". Na época contemporânea, a maior concorrência de fés e morais "seculares" aprofundou esta tensão e o fenómeno do "abandono", espalhando-os socialmente. Mas o que se pode perguntar nestes casos é se a "deslocação" essencial (de um ponto de vista cristão) não estava já feita, do núcleo para a envolvência. Uma "deslocação" muitas vezes herdada, recebida já no próprio ambiente envolvente.

A questão já referida do socialismo entra aqui. Ele manifestou-se, como simpatia ou inevitabilidade, nos dois "vencidismos". Mas porquê o socialismo? Mais uma vez num exercício reflexivo assumidamente falível, parece-me que a geração de 70 do século XIX e a geração de 60 do século XX viram no socialismo uma forma de preservarem, sob a transformação religiosa que sofreram, a saudade de uma sociabilidade orgânica e solidária que o catolicismo romano transportou durante séculos na nossa sociedade. Isto não é nenhuma novidade: alguns dos sujeitos de ambos os "vencidismos" levaram a sua auto-reflexão a uma conclusão semelhante. Da mesma forma, a expressão no socialismo desse solidarismo orgânico, mais ou menos institucional, já foi relacionado (por exemplo, por Matos Ferreira) com o peso histórico do devocionismo franciscanista no universo religioso português tradicional. Aí emerge uma mundividência refundada, na qual a superioridade moral da pobreza, a desconfiança da vida intelectual e o nojo pelo conflito moral e pelo negócio são a expressão massificada dessa transformação religiosa.

Esta "deslocação" pode tornar-se mais clara se virmos a sua articulação com o aspecto institucional. O que ocorreu nalguns elementos do primeiro "vencidismo" (do meu ponto de vista, claramente em Oliveira Martins) foi que transferiram da Igreja institucional e sacramental para o Estado burocrático e providente a função mágica de operacionalizar a organicidade solidária pretendida. O que uma estrutura clerical organizada fazia com a administração de sacramentos e o magistério pela disciplina moral que mantinha a unidade visível dos crentes, o Estado também poderia fazer, mutatis mutandis, com uma estrutura administrativa de burocratas providentes e docentes. O que Oliveira Martins calou foi a questão da salvação pessoal, que na construção teológica católica romana ainda encontrava expressão. Mas – e aqui há uma provocação – que espaço tinha realmente essa questão num ambiente em que a envolvência já tutelava a consciência? Terá Martins calado uma questão que já não "falava muito alto"?

A atenção a esta "deslocação" de expectativas da Igreja estabelecida para o Estado permite-nos talvez aferir o peso que tinha já a envolvência institucional (e respectiva sociabilidade) nas expectativas (religiosas) dos sujeitos dos dois "vencidismos". A atitude perante o socialismo e a forma mais ou menos institucional de que se revestiu pode, para tanto, ser reveladora. Nos casos das formas menos institucionais (ou "estatistas") dessa atitude não deveriam ser descurados os elementos de continuidade na sua "deslocação", uma vez que, no quadro tradicional, a eficácia da envolvência era compatível com instintos "anticlericais" que se podem metamorfosear em instintos "anti-burocráticos".


Chegados aqui, a questão fundamental é perguntar o que resta do núcleo da fé cristã nestas "deslocações do religioso" nos dois "vencidismos". Pelo menos em relação a alguns dos sujeitos antecipo que me poderiam responder que sobreviveu algo relacionado com a envolvência e a sociabilidade que, conforme os pontos de vista, seria ainda vaga ou essencialmente cristão. Quanto a isto, eu contraporia que só é ou permanece cristão quem diz essa palavra e nela se diz. As semelhanças e as variações não bastam para uma fé que se fez em torno da proclamação do Querigma. O que a "deslocação do religioso" põe a nu é se o sujeito era cristão por decisão interior ou por envolvência e sociabilidade. Porque os cristãos divergirão na tradução social e até eclesiológica que fazem da sua fé (por tradição, por evolução ou por ruptura), mas a adesão e a proclamação consciente do núcleo da fé é o que os distingue. Quem não chega a fazê-la ou deixou de fazê-la está fora.

[É relevante reflectir sobre o significado desta auto-explicação de uma representante do segundo vencidismo: «De uma relação individual e intimista entre o crente e Deus, evoluiu-se para uma procura de “Deus nos outros”, numa perspectiva em que a comunidade foi tomando a primazia e em que, no limite, ocupou o lugar do próprio Deus» (Joana Lopes, Entre as Brumas da Memória: os Católicos Portugueses e a Ditadura, Porto: Âmbar, 2007, p. 85). A ideia de evolução aqui expressa pode ser aceite se pensarmos em devoções pessoais de tipo tradicional que foram preteridas, mas sem se esquecer que o paradigma da Acção Católica e da “reconquista cristã da sociedade” (para não falar do catolicismo tradicional em geral) também era “comunitarista”; à comunidade eclesiástica “conquistadora”, estes católicos contestatários foram preferindo a sociedade a “conquistar” – ou uma nebulosa fusão de ambas. A ideia de a comunidade ou os “outros” tomarem o lugar de Deus pode ser uma boa descrição do sentido que tomaram as “rupturas com a fé” dos segundos vencidistas.]

As "deslocações do religioso" protagonizadas pelos dois "vencidismos" têm esta enorme e inesperada virtude: confrontarem-nos, não só com o seu sentido religioso próprio e variado, mas também com o sentido religioso daquilo a que se opuseram (e que abandonaram). No primeiro caso, a Igreja estabelecida tradicional (já então enquadrada no regime constitucional); no segundo caso, o catolicismo reorganizado no espírito da "reconquista cristã da sociedade". Mas, mais importante ainda, podem inspirar a reflexão em torno desta questão: que fé é essa que dizemos ter?

[P.S. Obrigado ao Jorge Revez, cuja comunicação brilhante inspirou esta reflexão.]