quarta-feira, março 29, 2006
Uma nota (longa) sobre a poliarquia e a isonomia
De Orlando Vitorino ao Estagirita
Orlando Vitorino, em Refutação da Filosofia Triunfante (Lisboa: Teoremas, 1976, pp. 200-204), afirma que a poliarquia é a «reunião do que é realizável nas “formas puras” da monarquia, da aristocracia e da democracia» e, nas pp. 165-173, aborda as três formas virtuosas de governo e a sua degradação nas três formas corrompidas. Na verdade, no capítulo XIV da Política, em que abordou «as virtudes do justo meio», Aristóteles refere os males dos dois tipos mais comuns de governo, oligarquia e democracia, e a necessidade de os moderar com a consideração de uma via média que será tanto mais viável quanto mais numerosa seja a classe média entre pobres (que pendem para a democracia) e ricos (que pendem para a oligarquia); o Estagirita diz então, nos últimos parágrafos desse capítulo, que «a situação justa é reunir às instituições da oligarquia as instituições da democracia, propondo um salário a uns e impondo um contributo aos outros» – a este arranjo propriamente parece Aristóteles chamar politeia, regime misto que, tal como a monarquia e a aristocracia, considerava bom, ao contrário da tirania, da oligarquia e da democracia (cf. Scott Gordon, Controlling the State: Constitutionalism from Ancient Athens to Today, Cambridge, Mass., e Londres: Harvard University Press, 1999, p. 81).
Platão, Heródoto e Cícero
Também Platão considera as várias formas de governo (nomeadamente a fórmula tripartida monarquia-aristocracia-democracia que, segundo Scott Gordon, Op. Cit., pp. 80-85, remontava entre os Gregos aos pré-socráticos, foi também referida por Heródoto e era já comum no tempo de Platão e Aristóteles): na República, essas formas de governo são discutidas na defesa aí feita da aristocracia e também nas Leis que, embora “mais pluralistas e favoráveis à democracia” (Gordon, Op. Cit., p. 82), não chegam a defender explicitamente como melhor um regime misto – do grego mitke (“mistura”). O grego Políbio (c. 203-120 a.C.), no seu estudo sobre as instituições da república romana, parece ser o primeiro autor a identificar a noção de regime misto (mitke) com a conjugação das formas monárquica, aristocrática e democrática, que assimilou, respectivamente, aos cônsules, ao Senado e às assembleias populares de Roma (refere como antecessora da experiência romana a reforma de Licurgo entre os Lacedemónios).
De facto, em Roma, a assembleia popular (depois comícios) e o conselho aristocrático (depois Senado), assim como algumas magistraturas eleitas, já vinham do tempo da monarquia; todas estas instituições formavam o mos maiorum (costumes dos antigos ou constituição) de Roma mesmo depois do estabelecimento da república em 501 a.C. (que instituiu os cônsules e outros magistrados), tendo os plebeus conseguido dos patrícios, em 494 a.C., a eleição dos seus próprios representantes, os tribunos, e a publicação de um código legal (as Doze Tábuas) em 449 a.C. (a Lei I da Tábua XI dá-lhes direito de eleger os magistrados, de se pronunciarem sobre os assuntos mais importantes e de nomearem a acusação em casos de direito público).
Quanto ao antecedente em Licurgo, a sua reforma instituiu um regime de férreo igualitarismo que não se coaduna com o respeito aristotélico da propriedade e das diferentes classes de cidadãos (ver Plutarco, Licurgo, especialmente §§8-10). Já Sólon pode talvez ser visto como um reformador mais próximo da origem histórica da politeia. Sobre a diferença económica das suas reformas em Atenas (c. 594 a.C.) relativamente às de Licurgo em Esparta, ver Plutarco, Sólon, §16; neste sentido, em termos políticos, quis manter a influência dos ricos e abrir a participação aos pobres, dividindo a população em quatro tribos conforme a área de residência e a propriedade, proporcionando os direitos de participação nas magistraturas à riqueza, mas dando igual acesso às leis e aos tribunais (§18) e instituiu dois conselhos para moderarem e limitarem a assembleia popular: o Areópago, com funções judiciais e constituído por todos os ex-arcontes anuais, e o conselho dos 100 sorteados das 4 tribos, que propunha as leis à votação popular (§19).
O isolamento teórico de várias formas de governo – e em especial da sua apresentação tripartida, monarquia-aristocracia-democracia –, a contraposição de “formas puras” virtuosas e formas degradadas e a consideração de fórmulas mistas como na politeia aristotélica foram, assim, os elementos que Platão, Aristóteles e outros autores antigos legaram e dos quais emergiu posteriormente uma “arrumação” teórica mais sistematizada como a apresentada por Vitorino no princípio desta nota. De forma explícita, essa "arrumação" é já claramente formulada e defendida assim por Cícero, República I.45.69-46.70, onde usa a expressão permixta constitutio.
O debate constitucional inglês (século XVII)
Tal apresentação é já claramente assumida nos principais textos do grande debate político do século XVII inglês, desde o próprio Carlos I (His Majesties Answer to the Nineteen Propositions of Both Houses of Parliament, 1642) até Richard Hooker (6.º e 8.º livros de Of the Laws of Ecclesiasticall Politie, 1648), passando por A Treatise of Monarchy (1643) de Philip Hunton: ver David Wooton (ed.), Divine Right and Democracy: An Anthology of Political Writing in Stuart England, Harmondsworth: Penguin 1986. Mais tarde, até Algernon Sydney, na secção 16 («The Best Governments of the World Have been Composed of Monarchy, Aristocracy, and Democracy») do seu Discourses Concerning Government (1698), veio a dizer o mesmo – cf. Wooton, Op. Cit., pp. 417-445 (secção, pp. 426-430).
Curiosamente, sobre a legitimidade de mudar de governante em caso de desrespeito deste pelo pacto constitucional, um dos exemplos que Sydney dá (p. 429) é português: «Not long after, the Portuguese, conceiving a dislike of their king Ferdinand and his daughter, married to John king of Castille, rejected her and her uncle by her father’s side, and gave the crown to John, a knight of Calatrava and bastard to an uncle of Ferdinand their king»; claro que o caso português de 1640-1641 também se adapta a esta explicação e até talvez melhor. Mas Sydney fala da monarquia de uma forma que valoriza demasiado o seu carácter popular e desvaloriza a sua natureza hereditária, o que contrasta com a defesa da instituição, mais correcta, que fazem Hume e Burke.
De Burke a Hayek
Em Burke, p.e. nas Reflexões sobre a revolução em França (1790), esta apresentação tripartida dos regimes, das suas respectivas degradações e da conveniência da sua conjugação (como apresento aqui) é já perfeitamente clara e articulada com a questão da isonomia (ou rule of law) como condição da sua não-degradação; na Política, na parte onde é defendida a politeia, está implícita a defesa da isonomia por quanto Aristóteles considera que os males da democracia e da oligarquia derivam de se legislar em benefício de uma parte da sociedade – para ele, embora a estabilidade do regime seja também um objectivo, a defesa de um regime misto e a atenção recomendada aos interesses da classe ou estado médio de cidadãos devem-se essencialmente à necessidade de garantir leis iguais ou benéficas para todas as partes. Sobre a isonomia como raiz conceptual do rule of law, a melhor apresentação continua a ser a de Friedrich A. Hayek, The Constitution of Liberty, cap. 11 (“The Origins of the Rule of Law”), sb. §§2 e 3: segundo Hayek, o termo isonomia foi importado para Inglaterra a partir de Itália no fim do século XVI e com o significado de «equality of laws to all manner of persons» (John Florio, World of Wordes, Londres 1598 e tradução por Philemon Holland de Tito Lívio, Romane Historie, Londres 1600).
O termo derivará das reformas de Sólon, que tiveram a preocupação de fazer nobres e plebeus viverem sob as mesmas leis e é anterior a demokratia que, pelo contrário, exprimiu a exigência de participação igual no governo da polis; Heródoto considerou ainda a primeira como “o mais belo de todos os nomes de uma ordem política” e tanto Tucídides como Platão dão mostras de distinguir muito bem (senão de contrapor, como está também implícito no Estagirita) isonomia e demokratia. Segundo Hayek, durante o século XVII inglês, a influência dos escritores e oradores latinos (Tito Lívio e sobretudo Cícero) sobrepôs-se à fonte grega original e a isonomia foi relacionada também com a experiência da Roma republicana, nomeadamente com as Doze Tábuas (inspiradas nas leis de Sólon e distintas do que viria a ser o direito imperial que tomou forma no Código Justiniano – vejam-se as Leis I e II da Tábua IX, que são uma consagração clara da isonomia); foi através dos autores renascentistas italianos que estes latinos entraram no debate político inglês do século XVII.
Conciliarismo e Du Plessis-Mornay
Scott Gordon, Op. Cit., pp. 125-128, considera a obra Vindiciae contra tyrannos (1579), atribuída ao líder huguenote Philippe du Plessis-Mornay, uma charneira na história da teoria política ocidental por quanto «in stressing the role of the Estates and lesser magistrates in judging, constraining, and if need be organizing rebellion against the monarch (...) there is a third possibility [entre o governo absoluto de Bodin e Hobbes e a rebelião]: a regime in which political power may be controlled by being shared among the monarch, representative institutions, and lesser magistrates», p. 127; esta teorização não conseguiu florescer entre os próprios huguenotes, mas foi conhecida em Inglaterra, onde foi traduzida em 1589 e reeditada, sintomaticamente, em 1640 e 1689.
No cap. 4, no qual esta referência a Mornay aparece, o autor chama ainda atenção para o facto da reflexão sobre o “governo misto” ter começado no interior da Igreja latina, com o chamado movimento conciliarista, que recuperou os argumentos dos clássicos (o concílio de Constança, em 1414-1418, que encerrou o Grande Cisma, foi uma vitória dos canonistas e teólogos que defenderam, como o cardeal Pierre d’Ailly, que o colégio de cardeais e essas reuniões magnas eram os contra-pesos aristocrático e democrático do poder monárquico do papa); só depois o debate foi “secularizado”, mas, na Igreja Católica na época moderna, segundo Gordon, o modelo bodiniano acabou por se impor até à actualidade (reforçado em 1870). Outra nota: é de registar em Mornay a teoria do “duplo contratualismo”, segundo a qual a comunidade tem um contrato primeiro com Deus e um contrato segundo com o príncipe, i.e., o poder constituído.
Mornay, que assinou a Vindiciae como Stephanus Junius Brutus, o Celta, era um leitor profundo de Cícero, que variadíssimas vezes cita. Uma das importantes questões que estabelece é sobre a propriedade dos súbditos, que considera permanecer privada e sua apesar de toda a delegação de poder no contrato com o príncipe; outra é a grande importância dada ao papel dos pares do reino e dos magistrados nas suas relações de transmissão, limitação e complementaridade do poder do príncipe. Influenciou Hugo Grócio, seu leitor, e foi um proponente sistemático da tolerância religiosa (ver a edição de George Garnett, Cambridge University Press, 1994).
A posição de Locke quanto à poliarquia na base da posição de Burke
Que a «monarquia mista» de Burke era doutrina Whig que remontava claramente a Locke, no espírito do que defende Frederick A. Dreyer (Burke’s Politics: A Study In Whig Orthodoxy, Waterloo, Ontario: Wilfrid Laurier University Press, 1979, passim) parece inegável. Lois G. Schwoerer («Locke, Lockean Ideas, and the Glorious Revolution», Journal of the History of Ideas, vol. 51 n.º 4, Out.-Dez. 1990, pp. 531-548, especificamente na p. 540) cita uma carta de Locke de 8 de Fevereiro de 1689 ao seu amigo Clark, na qual é claro que rejeita a ideia de um começo de novo da arquitetura política inglesa, recomendando «restoring our ancient government […] the best possibly that ever was if taken and put together all of a piece in its original constitution», usando assim uma linguagem “histórica” estranha aos seus escritos teóricos, mas não tanto aos primeiros whigs, como Shaftesbury; Locke apoiou a Declaration of Reasons de Guilherme de Orange (apesar de reservas que pudesse ter sobre alguns pontos, nomeadamente a tolerância para os católicos), bem como a sucessão conjunta do príncipe com a sua mulher Mary, o que reforçava a continuidade dinástica.
Locke foi provavelmente de opinião que, com a fuga de Jaime II, não chegara a ocorrer uma quebra ou dissolução do governo e do pacto deste com a sociedade, patente no facto de se ter imediatamente reunido em Londres um conjunto de pares para prevenir essa eventualidade (Schwoerer, p. 541, apud Robert Beddard, A Kingdom Without a King: The Journal of the Provisional Government in the Revolution of 1688, Londres 1688). Locke reconhece no Segundo Tratado [cap. XIX, §223], sem o lamentar, que, apesar da instabilidade do século XVII, o povo «still brought us back again to our old Legislative of King, Lords and Commons», ideia que reforça em texto de 1695 a um membro do Parlamento (Old England’s Legal Constitution) no qual faz um exercício histórico, apoiando-se no discurso de Isabel I sobre os monopólios (1601), que considera modelar, que conclui pelo exercício constitucional da prerrogativa real limitada pelas duas câmaras do Parlamento (o que leva Schwoerer a deduzir, p. 542, que «the government Locke favored in 1689 […] was a mixed monarchy of king, lords and commons – no new scheme» e que, portanto, a sua posição diferia claramente de radicais e republicanos, por muito que com estes pudesse coincidir em aspetos de política eclesiástica).
Locke cita ainda, no Segundo Tratado, como autoridades abonatórias das suas ideias, sempre com Hooker, o rei Jaime I no seu discurso de 1603 ao Parlamento (cap. XVIII, §200) e Henry de Bracton (f. 1268) e Sir John Fortescue (f. 1476), grandes defensores da lei natural na jurisprudência inglesa (cap. XIX, §239).
O debate constitucional português (século XIX)
Se a ligação à tradição clássica, directamente ou através dos seus intérpretes latinos, foi fundamental para clarificar os termos do debate político e constitucional inglês do século XVII, é perfeitamente legítimo que o “debate” constitucional português do princípio do século XIX se ligue à posteridade de intérpretes que teve a dita tradição clássica, em particular aqueles de que aqui se faz derivar a genealogia dos princípios da Carta; é evidente que nesse acto está pressuposta a validade universal da tradição clássica e dos seus intérpretes e aperfeiçoadores modernos, de que deriva directamente a tradição jurídico-política liberal.
Mais do que “enxertia” de elementos alegadamente “estranhos” ao corpo da tradição constitucional histórica portuguesa, a presença quer dos elementos do debate da tradição clássica quer dos princípios depois consagrados na Carta, foi uma assumida base de reflexão e regeneração do corpo constitucional português, de modo a ultrapassar-se a crise a que este chegara no princípio do século XIX. Não deixa de ser curioso que os cartistas portugueses tenham deixado expressa a ideia de que, na sua origem e primeiros séculos, o nosso corpo constitucional – embora de forma obviamente inconsciente e imperfeita – tivesse presentes suficientes elementos poliárquicos para criar vigor e espírito de liberdade no jovem reino; e que uma concentração posterior do poder tenha sido a causa remota da crise a que se chegara no seu tempo (ver, além de Herculano, por exemplo, o discurso às Cortes da Infanta Regente em 1826 (aqui) e a introdução de João Oliveira de Carvalho à sua tradução de Locke em 1833).