[Publicado na revista e.Ciência, n.º 120, 4 Janeiro 2007, pp. 23-24.]
Richard Dawkins disse há alguns anos que, se fosse biólogo antes de 1859 (publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin), teria sido crente num Deus criador do Universo e da Natureza; mas as descobertas de Darwin, antes portanto do célebre anúncio de Nietzsche, impedi-lo-iam aparentemente de manter aquela crença. Nas palavras de Dawkins está pressuposta uma crença em Deus ancorada na chamada teologia natural e não naqueles elementos em que a generalidade dos cristãos, mais corriqueiramente, baseia a sua fé: as palavras e o exemplo de Jesus Cristo. O argumento naturalista da crença em Deus – a ideia de que a observação da Natureza nos conduz à concepção de um Deus seu criador – pode fazer-se remontar ao argumento cosmológico de São Tomás de Aquino, que pretendia chegar à prova de Deus através da experiência sensorial e das leis formais da lógica. Entusiastas como William Paley, seguindo esta pista, pretenderam mostrar Deus no corpus empírico das ciências naturais, alegando a necessidade científica de um arquitecto ou “relojoeiro” da Natureza. Que esse ser supremo necessariamente fosse o Deus cristão já era mais discutível e a validade do esforço, do ponto de vista teológico estritamente dogmático, altamente questionável.
Ora, foi com a via da teologia natural que colidiu o paradigma emergente nas obras de Darwin (o moderno evolucionismo biológico). De acordo com a leitura histórica da evolução das concepções científicas proposta por Thomas S. Kuhn, o embate do darwinismo com a teologia natural parece, assim, mais uma guerra de paradigmas científicos do que um afrontamento entre a religião e a ciência – e menos ainda entre a teologia e as ciências naturais. Aliás, teólogos recentes como Karl Barth ou Gordon Clark aceitaram apenas a validade da teologia revelada, recusando liminarmente a via do argumento cosmológico e da teologia natural para chegar ao conhecimento ou à prova de Deus. O que isto quer dizer é que, contrariamente ao que pensam alguns militantes do evolucionismo, muitos cristãos não se sentem ameaçados na sua fé nem pelo naufrágio da teologia natural nem pelas fragilidades das suas recentes sucessoras “criacionistas”.
Outra questão é quando darwinistas como Dawkins defendem que o evolucionismo prova a impossibilidade da Criação divina, algo que, francamente, parece tão demonstrado quanto, entre astrofísicos, a exclusão de Deus pelo Big Bang. Até porque estas afirmações bombásticas dos anti-criacionistas parecem muitas vezes pressupor um conceito naturalista ou biblicamente literal de Criação que a teologia séria, mesmo a mais “ortodoxa”, não considera nesses termos. De qualquer forma, as dificuldades que existam para a Revelação em lidar com esta problemática das origens cósmicas da vida como a conhecemos encontram no evolucionismo um curioso paralelo. É que seria importante perceber-se de que modo o paradigma evolucionista (com o seu conceito central de selecção natural) se estende para lá do grande ecossistema do nosso planeta; ele propõe uma visão da evolução das formas de vida na Terra, mas pode tentar explicar, mesmo que por analogia, a formação do nosso sistema solar, da nossa e das outras galáxias? Ou seja, o evolucionismo é uma teoria apropriada para explicar a vida na Terra, mas está espacialmente limitado, não tendo uma articulação evidente nem com as teorias físicas sobre a formação do Universo e do nosso sistema solar nem com o próprio estudo geológico do planeta e das paisagens onde apareceram todas as formas de vida abarcadas pela biologia. Não parece, pois, despropositado questionar a alegação que alguns autores fazem de estar o evolucionismo em condições de negar a possibilidade da transcendência.
Para um filósofo cristão como Alvin Plantinga, o problema não parece ser o evolucionismo em si mesmo, mas a deslocação que se faz dele para um naturalismo total, que exclui qualquer possibilidade de transcendência só por esta não ser necessária ao esquema explicativo evolucionista. Se a história natural do grande ecossistema do nosso planeta pode ser explicada através da imagem do “relojoeiro cego” com que Dawkins quis representar a ausência de um “arquitecto” da evolução, também é razoável que se pergunte, como faz Plantinga, se o homem – produto dessa evolução – se pode sentir capacitado para a entender de forma tão contundente e definitiva como parece ser o caso de Dawkins e de Daniel C. Dennet. Dir-se-ia que estes autores insuflam o evolucionismo das pretensões absolutizantes da razão que caracterizam o racionalismo; e a mistura de evolucionismo e racionalismo (ou positivismo?) parece operar este “salto” da constatação da probabilidade da evolução para a defesa de uma teoria total e exclusiva. Para mais, este evolucionismo racionalista, se assim o podemos denominar, coloca a questão de saber se não estamos na presença de um desenvolvimento bastante livre do contido método empírico, de observação e dedução, de Charles Darwin (que era, certamente, racional, mas dificilmente racionalista).
A ideia de que, para haver ciência, os dados empíricos só fazem sentido no contexto de uma grande teoria explicativa (um paradigma) foi lembrada por Kuhn, que também recordou o carácter histórico desses paradigmas e a forma como aqueles dados transitam muitas vezes de um paradigma para outro, suportando visões completamente diferentes da realidade antes e depois de uma “revolução científica”. Darwin, por exemplo, releu vários casos que, à luz da teologia natural, eram lidos com significados distintos dos decorrentes da sua selecção natural. Foi o criador de um paradigma extremamente convincente para as ciências naturais, mas que tem as características dos outros paradigmas científicos – nomeadamente, o da historicidade. Esta historicidade do conhecimento científico chocou e ainda repugna a muitos homens e mulheres sobretudo oriundos das áreas das ciências físicas e naturais, que têm uma visão continuísta e a-histórica dos dados e das teorias com que lidam. Ora, os dilemas introduzidos pela consideração da historicidade – sobretudo em torno da problemática da verdade (pode o que é histórico chegar à verdade?) – já foram colocados em forma de desafio às religiões reveladas, sobretudo ao cristianismo no Ocidente. Com esse desafio já os teólogos dos últimos cem anos (pelo menos) vêm lidando, tal como as áreas das ciências sociais e humanas que mais se libertaram do paradigma positivista. O mesmo não se pode dizer das ciências físicas e naturais.
Contrariamente à crença objectivista prevalecente nas ciências físicas e naturais (e na percepção cultural que delas tem o grande público), a eficácia do seu saber decorrente da capacidade de previsão resume-se em boa medida ao “trabalho de laboratório” e não àquilo a que poderíamos chamar o “mundo real”: conseguindo dominar os factores manipulados nas suas actividades experimentais e, nesse âmbito, fazer previsões com algum sucesso, o biólogo ou o físico têm muito menos sucesso na explicação da Natureza ou do Universo. Neste âmbito das grandes explicações, as ciências físicas e naturais têm resultados modestos, provisórios e sujeitos a polémicas intra-profissionais – como os historiadores ou os economistas. Estão limitados, como nas outras áreas científicas, aos paradigmas. Ora, a percepção cultural do carácter subjectivo ou menos exacto das ciências sociais e humanas deriva da sua incapacidade de realizar actividades experimentais, ficando, assim, sujeitas à necessidade de seleccionarem dados empíricos de entre um universo quase infindável de informação potencial, e de proporem hipóteses explicativas com uma capacidade limitada de previsão – precisamente o que acontece com a macrobiologia ou a astrofísica que, como a sociologia, lidam muito mais com modelos, “teorias” e hipóteses. A eficácia das actividades experimentais e as limitações de todos os estudos não experimentais deveria talvez alertar-nos para a validade de uma distinção antiga entre ciência e tecnologia. É que o sucesso (ou a eficácia) do laboratório tem mais a ver com a segunda do que com a primeira. Já os paradigmas são o que dá corpo à primeira.
Alguns paradigmas científicos tiveram o condão de ser a tal ponto apelativos em termos simbólicos que conheceram uma metamorfose perigosa: a de tornarem-se autênticos sistemas de crença, competindo com as religiões propriamente ditas na definição de um sentido para a vida e na reorganização de sociabilidades. O evolucionismo, e o darwinismo em particular, tem uma história de metamorfoses deste tipo, que o fizeram aparecer, através nem sempre de bons divulgadores, com roupagens de produto cultural para consumo de massas: Thomas Henry Huxley e Herbert Spencer foram dignos antecessores de Dawkins e Dennet na promoção cultural do evolucionismo como uma “visão do mundo” verdadeira, progressiva e libertadora. Mas, neste âmbito, mesmo que servindo-se de argumentos científicos, a presença pública do evolucionismo torna-se uma realidade de contornos religiosos, bem distintos do recato, da devoção à investigação, da exigência metodológica e da consciência da finitude do saber que caracterizam o trabalho científico. Estes factos terão a virtude de nos esclarecer sobre a natureza mais religiosa que científica das lutas em que os militantes evolucionistas se têm envolvido com outros militantes na disputa de influência e de recursos – por exemplo a propósito do controlo ideológico dos currículos nas escolas públicas.
Natal de 2006
REFERÊNCIAS: CLARK, Gordon H. – Religion, Reason, and Revelation, Hobbs (New Mexico): The Trinity Foundation, 1995; DARWIN, Charles – The Portable Darwin (ed. Duncan M. Porter e Peter W. Graham), Harmondsworth: Penguin, 1993; DAWKINS, Richard – The Blind Watchmaker, Nova Iorque: W. W. Norton, 1986; DENNET, Daniel C. – Darwin’s Dangerous Idea, Nova Iorque: Touchstone, 1996; KUHN, Thomas S. – The Structure of Scientific Revolutions, Chicago: The University of Chicago Press, 1996; PLANTINGA, Alvin – «When Faith and Reason Clash: Evolution and the Bible», Christian Scholar’s Review, vol. 21 n.º 1 (Setembro 1991), pp. 8-33; RUSE, Michael – «Is Evolution a Secular Religion?», Science, vol. 299, n.º 5612 (7 Março 2003), pp. 1523-1524.