terça-feira, abril 03, 2007

A diferenciação religiosa em Portugal (1813-1999)

[Parte da conclusão de «Correntes cristãs e não cristãs no universo religioso português», Carlos Moreira Azevedo (coord.), HISTÓRIA RELIGIOSA DE PORTUGAL, vol. III, Lisboa: Círculo de Leitores, 2002.]

A quantificação dos dados

A adopção de uma noção abrangente do religioso permitiu incluir nesse universo uma grande variedade de realidades que, embora com linguagens e discursos diferentes entre si, foram conduzindo ao crescimento de mundividências distintas da veiculada pela vivência religiosa hegemónica católica romana. O crescimento dessa diferenciação, por seu lado, foi-se tornando visível histórica e socialmente numa série de redes, grupos e Igrejas que foram surgindo e criando lentamente uma pluralidade religiosa em Portugal ao longo dos séculos XIX e XX. A amplitude deste processo pode tornar-se mais clara se se tentar quantificá-lo. Para esse efeito, os dados dos Censos oficiais – já analisados da perspectiva da diferenciação religiosa por VILAÇA, «Notas de pesquisa» – apresentam problemas, nomeadamente a ausência de valores desagregados por grupos e o facto de dependerem de uma massa de respostas cujas motivações e efeitos estatísticos são ambivalentes. Um método alternativo é a quantificação, para diferentes anos, de grupos locais organizados; neste caso, os dados informam sobre o número de núcleos de vivência religiosa diferenciada e não exactamente sobre o número de fiéis de cada uma delas, mas ganha-se muito em pormenorização da informação. Havendo o risco desses dados não representarem a totalidade dos fenómenos de diferenciação religiosa (sobretudo no caso dos indivíduos isolados e das redes), é no entanto possível, a partir deles, fazer uma estimativa do número de fiéis activos. Os dados obtidos por este método, pretendendo-se meramente aproximativos, permitem também definir os contornos das alternativas religiosas na sociedade e os focos mais relevantes da sua “sedimentação” em estruturas de sociabilidade. Assim, o que se tenta aqui fazer com este método é uma amostragem do processo de diferenciação religiosa, com recurso ao conjunto de dados relativos às minorias religiosas em Portugal e coligidos para três momentos dos dois últimos séculos (1813, 1906 e 1999), espaçados em períodos de noventa e três anos; nesta amostragem, torna-se patente uma progressiva evolução para a fragmentação do campo religioso (ver Quadro). Em 1813, o ano em que é autorizado o estabelecimento da primeira comunidade religiosa não cristã no País desde o século XV (a sinagoga Shaar Hashamaim), a sociedade portuguesa tem uma organização religiosa profundamente uniforme, tolerando uma meia dúzia de grupos diferenciados (protestantes e judeus) só permitidos a estrangeiros e comportando cerca de duas dezenas de outros grupos, extremamente elitistas e de estatuto legal mal definido (as lojas maçónicas). Noventa e três anos depois, em 1906, mercê de algumas décadas de vigência de um regime de liberdades civis, alguns dos primeiros grupos diferenciados referidos (os protestantes) puderam já desenvolver actividades de proselitismo entre portugueses e formar várias dezenas de congregações toleradas; simultaneamente, as lojas maçónicas puderam também aproveitar as novas condições político-jurídicas para se multiplicarem e transformarem no maior grupo diferenciado da Igreja estabelecida – e, dada a permanência do seu recrutamento elitista (e a assunção de um projecto activista e mobilizador), serem um importantíssimo concorrente dessa Igreja. A presença de alguns grupos espíritas é já então um sinal da procura de novos bens religiosos, que prepara o aparecimento (sobretudo a partir da década de 1920), de novas realidades religiosas, como as correntes ocultistas, com um recrutamento também orientado para as elites. Passados outros noventa e três anos, em 1999, o campo religioso apresenta uma grande multiplicação de grupos, que o fragmenta, e em que alguns deles (sobretudo na área protestante) conquistaram já uma representação social considerável – enquanto a maçonaria, dada a permanência da sua natureza elitista, não sofreu esta “massificação” enquanto grupo diferenciado. A comparação destes três anos aqui considerados permite perceber uma grande diferença entre, por um lado, os anos de 1813 e 1906 e, por outro, o ano de 1999: nos dois primeiros anos, a diferenciação é um fenómeno predominantemente das elites ou de outros meios sociais reduzidos a elas ligados (são os casos da maçonaria e dos protestantes), enquanto em 1999 ela é um fenómeno que alastrou já a uma parte muito considerável da sociedade, mesmo em termos geográficos. Pode, assim, dizer-se que o período entre 1813 e 1906 foi aquele em que a diferenciação religiosa se consolidou entre as elites; por seu lado, o período entre 1906 e 1999 foi aquele em que essa diferenciação alastrou das elites a sectores mais vastos da sociedade, sobretudo do litoral e da parte sul do País. Os dados aqui apresentados conduzem à questão da permanência numérica da hegemonia católica romana e do que ela significa, realmente, na sociedade portuguesa no final do século XX; apesar dos Censos atribuírem ainda à Igreja Católica Romana uma maioria expressiva de fiéis (VILAÇA, art. cit., p. 41) – dos 93,1 % de 1940 ou 97,9 % de 1960 para os 81,1% de 1981 e 77,9% de 1991 –, a análise do Quadro e o declínio da mobilização para o culto dos chamados “católicos praticantes” levanta dúvidas sobre a consistência religiosa dessa hegemonia. Para grande parte das pessoas que continuam (estatisticamente) a identificar-se com o catolicismo, este pouco mais parece ser que uma referência cultural cada vez mais longínqua – e esse distanciamento aumenta de geração para geração numa população crescentemente divorciada da prática cultual e de uma educação ou socialização religiosa que a familiarize, mesmo que superficialmente, com o discurso simbólico dessa religião. Tendo em conta este factor de distanciamento e o número hoje muito reduzido dos “católicos praticantes”, os dados do Quadro podem exprimir uma realidade mais fragmentada e plural do que em geral se concebe (ou os Censos deixam adivinhar); de facto, muitas das paróquias católicas não têm hoje certamente mais fiéis “praticantes” do que os grupos locais de outras expressões religiosas. E, sendo certo que uma grande maioria da população já não tem uma pertença formal a nenhuma expressão religiosa organizada (continuando a grande parte, por razões culturais, a dizer-se católica), o que esta situação implica, a longo prazo e no actual cenário de “desregulação” do campo religioso, é que as várias expressões estão hoje numa situação bastante mais paritária que no passado em termos de capacidade de influenciar o mercado dos bens religiosos.

A qualificação dos dados

Apesar de tanto a consolidação da diferenciação entre as elites como o alastramento dessa diferenciação à restante sociedade terem sido impelidas, na maior parte, do exterior (facto visível não só nas várias denominações protestantes, como no caso dos grupos religiosos de forte componente étnico-cultural, ou até em grupos como os Espíritas), deve ter-se em conta que o período de robustecimento da diferenciação religiosa (1906-1999) coincidiu com o de maior dinamismo da Igreja Católica Romana (sujeita, no período anterior, ao regalismo anticongreganista e a um generalizado anticlericalismo); de facto, o avanço da diferenciação não está historicamente ligado a uma crise de recursos e capacidade de mobilização da Igreja hegemónica mas, pelo contrário, ocorreu nas décadas em que essa Igreja ganhou maior autonomia em relação ao Estado e até maior liberdade de actuação, ao mesmo tempo que se iam instalando no País um número crescente de novos grupos seus concorrentes (sobretudo após 1945). Este facto sugere que no período entre 1906 e 1999 se deu um crescimento da procura e oferta de bens religiosos e uma expansão do mercado religioso que alimentou o dinamismo simultâneo da Igreja hegemónica e dos grupos diferenciados. Por muito contraditório que isto possa parecer, até por cerca de metade desse período ser ocupado pela vigência de um regime autoritário, não há dúvida que o Estado Novo permitiu a continuação da diferenciação religiosa que vinha ocorrendo do antecedente (excepto no caso dos grupos que investiam no activismo político ou tinham pontos de fricção com o Estado) e deu à Igreja Católica Romana a possibilidade de se reorganizar; e após 1974 os grupos religiosos diferenciados puderam conquistar uma situação jurídica mais definida e igualitária que lhes permitiu explorar mais livremente as suas potencialidades de crescimento. Isto confirma, no caso português, a ideia de que a “desregulação” do mercado religioso, na proporção em que for feita, expande o “mercado” e leva a ganhos simultâneos dos vários grupos religiosos mais eficientes, os quais passam a ter maior capacidade de preencher as partes do campo religioso receptivas à sua mensagem (FINKE, «The consequences»). Mas, ao mesmo tempo, essa “desregulação” dificulta a permanência da posição hegemónica adquirida por um grupo como a Igreja Católica Romana num tempo histórico muito longo de monopólio ou favorecimento político – embora a adesão mais limitada por ela preservada se possa considerar mais consciente e genuína. Assim, enquanto o grupo hegemónico perde uma grande parte dos seus fiéis, outros grupos concorrentes conseguem mais facilmente atrair maior número de adeptos, mas uma grande parte do campo religioso fica numa situação distante tanto da antiga referência religiosa hegemónica como das novas referências surgidas (sendo natural que, solicitado a identificar-se em termos religiosos, recorra mais depressa à memória da antiga referência religiosa hegemónica do que às outras que também conhece mal). Estes factores podem explicar a compatibilidade da permanência estatística da hegemonia católica romana nos Censos com a leitura sugerida pelos dados relativos à “sedimentação” em núcleos de sociabilidade das diferentes propostas e identidades religiosas; porém, a importância numérica de uma vivência ou de um grupo religioso não é necessariamente proporcional à sua visibilidade e influência social. Desde logo, nem todos os grupos revelam o mesmo interesse ou capacidade em “massificar-se”: no caso da maçonaria ou das correntes ocultistas organizadas isso resulta de uma opção deliberada mas noutros grupos (vocacionados para essa “massificação”), como algumas Igrejas protestantes, resulta de uma incapacidade sua de atrair fiéis. Porém, o peso social de um grupo decorre também da estratégia por si adoptada relativamente ao meio social, pelo que os grupos activistas tendem a adquirir maior visibilidade e influência nas decisões colectivas (casos da maçonaria ou de correntes assumidamente “políticas”) do que os grupos que adoptam uma atitude de low profile ou preferem crescer através de um proselitismo “cara a cara” (as Testemunhas de Jeová, por exemplo). A maçonaria é o caso típico de um grupo que compensa a sua fraca representatividade com a visibilidade e influência social do seu recrutamento elitista, estrategicamente situado em termos sociais; mas a “sobre-representação” entre as elites acontece igualmente com grupos bem maiores, como a Igreja Católica – no seu caso, dada a presença secular entre os sectores letrados e dirigentes da sociedade ou já também dada a adopção de estratégias de recrutamento entre as elites (por exemplo, através da Opus Dei). Daí que, mesmo com a consolidação da diferenciação religiosa em Portugal ao longo do século XX, o catolicismo e o laicismo tenham persistido como as referências mais visíveis e influentes no campo religioso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:FINKE, Roger - «The consequences of religious competition: supply-side explanations for religious change» in Lawrence A. Young (ed.), Rational choice theory and religion: summary and assessment, pp. 46-65. Londres e Nova Iorque: Routledge, 1997. VILAÇA, Helena - «Notas de pesquisa para o estudo dos grupos religiosos minoritários em Portugal» in Sociologia: revista da Faculdade de Letras do Porto, 1.ª série vol. VII (1997), pp. 31-51.
QUADRO: NÚMERO DE GRUPOS RELIGIOSOS LOCAIS EM PORTUGAL


LEGENDA: (1) Estes números dizem respeito a Maio de 1998 e foram amavelmente coligidos pelo Dr. Wilson Brígido; alguns dos grupos locais aqui contabilizados têm muito poucos membros. (2) Inclui os “pós-budistas” de Perfeita Liberdade. (3) Apesar de não existirem grupos locais, o Censo de 1900 dá conta da existência de 6 cristãos ortodoxos em Lisboa. (4) Número aproximativo incluindo grupos rosacrucianos e outros referidos no ponto 2.5., excepto os maçónicos. (5) Números de 1906 baseados na existência de periódicos espíritas em Lisboa, Porto e Ponta Delgada. (6) Não inclui lojas maçónicas especificamente estrangeiras. (7) Apesar de não existirem grupos locais, o Censo de 1900 dá conta da existência de 34 muçulmanos em Lisboa. (8) Não inclui capelanias estrangeiras, que eram 4 em 1813. (9) Em 1999, inclui pentecostais como Congregação Cristã em Portugal e Igreja Evangélica Maranata e neopentecostais como Igreja Cristã Maná e I.U.R.D. (10) Em 1906, duas igrejas “independentes” em Lisboa, sendo as restantes congregacionalistas; em 1999, Igreja do Nazareno, Congregacionalistas, Acção Bíblica, Exército de Salvação, Igreja Evangélica Luterana, Igreja Cristã Presbiteriana e T.E.A.M. (11) Em 1999, inclui uma congregação dissidente de Lisboa. (12) Existe uma União Nacional de Yoga de Portugal que, por recusar qualquer conotação religiosa, não disponibilizou dados sobre o número de centros por si representados. (13) Os números dizem respeito aos anos de 1826, 1904-05 e 1995.
FONTES: Investigação do autor (incluindo respostas a um Inquérito); ALMEIDA, Prontuário Evangélico, pp. 189-231; Anuário Católico, p. 41; BRITO, «O Espiritismo em Portugal», p. 134; CAPELO, Profetismo e esoterismo, p. 43; COELHO, Manual Político, pp. 397-398; LAGES, «Minority religious», p. 17; MARQUES, Portugal da monarquia, pp. 435, 479 e 517 (n. 184); MATOS, «A maçonaria em Portugal», pp. 34-5; SANTOS, «O novo boletim»; Tribuna Universal ano 5 n.º 209 (3.2.1999), p. 4; SILVEIRA, Território e Poder, p. 45.