Martinho Lutero não estava a cometer nenhum acto revolucionário quando pregou na porta da igreja de Wittenberg as folhas com as suas 95 Teses contra as Indulgências. Era um hábito nas cidades universitárias desde a Idade Média publicitar teses sobre um assunto teológico de modo a suscitar o debate e a discussão. A porta da igreja era o sítio mais óbvio. De todo o modo, poucos se interessavam habitualmente por esses papéis, sendo apenas os alunos e professores de teologia quem os lia e discutia perante a indiferença ou desinteresse da grande maioria. A Europa já conhecera muitas ideias discordantes em matéria religiosa e até ideais reformadores mais radicais do que os de Lutero e que apenas apaixonaram pequenas minorias ou tiveram impacto em áreas geográficas muito localizadas. No entanto, desta vez, quase logo a seguir àquele dia 31 de Outubro de 1517, toda a Alemanha pareceu pegar fogo; e, com esse fogo, a temperatura da paixão religiosa subiu em toda a Europa.
O que ateou essas labaredas não foi a posição sensata e clara de Lutero sobre a prática de vender indulgências. O fogo veio daquilo que Lutero foi obrigado a descobrir, deduzir e concluir por força dos acontecimentos – e, novamente, a dizê-lo publicamente. O problema não era Lutero escrever verdades, era que, naquele momento, essas verdades não eram convenientes. Lutero foi convidado a transigir com o que convinha à hierarquia da Igreja Católica; depois foi forçado. Perante isso, e depois de se recusar a calar o que a sua consciência de cristão lhe mandava dizer, teve de voltar a sua reflexão e o seu exame das matérias religiosas para o estado da Igreja Cristã na sua época e, indo mais longe, para a sua natureza e organização à luz da Escritura. Tudo isto foi um processo rápido porque tudo à sua volta também aconteceu rapidamente.
Muitos europeus no século XVI estavam no limiar das descobertas de Lutero. Mil anos de cristianismo católico tinham criado muitos desvios, mas também muita procura – e esta superabundava em 1517, já madura e refinada para ser ateada por um questionador certeiro. Lutero concluiu que, na sua época, a Igreja se encontrava num cativeiro, como Israel na Babilónia [Cf. Martinho Lutero, Do Cativeiro Babilónico da Igreja (São Paulo: Martin Claret, 2006), obra de 1520 em torno dos sacramentos e que é uma exposição bastante completa da posição teológica de Lutero.]. A Igreja do Evangelho não podia ser aquela. Não, como hoje muitas vezes se diz, porque Lutero tivesse ficado chocado com o luxo e a corrupção da Cúria Romana. Certamente que ficou, mas isso não era o essencial. A questão das indulgências obrigou-o a procurar radicalmente a fonte da Salvação, pois a instituição que a queria ministrar mostrava-se indigna e ineficaz para isso. Isto foi um corte brutal para um cristão, para mais clérigo, do início do século XVI. A Igreja institucional era uma «Mãe» dos crentes (a «Santa Madre Igreja»), tida como uma verdadeira realidade visível do Reino de Deus. Lutero teve de fazer um esforço heróico para se recentrar no que era essencial e descentrou-se dessa mundividência que há séculos acompanhava o grosso dos cristãos. A sua fidelidade, a sua pertença, a sua fé eram de Deus, do próprio Deus apenas – Só a Deus Glória.
Mas o cristianismo, religião de mediações, de um Deus que se anunciou por vários profetas, pela história longa de um povo eleito e, por fim, por um Filho que se fez homem, e por um Espírito Santo que o faz presente, como podia prescindir daqueles que eram ordenados sacerdotes para interceder pelos crentes e a estes fazer chegar a graça? Como a Escritura indicava e os primeiros cristãos haviam compreendido em contraponto ao sacerdócio levítico, o único sacerdote perfeito e eficaz só podia ser o Filho de Deus que partilha a nossa natureza humana e está sentado à direita do Pai – Somente Cristo.
Lutero prosseguiu a sua procura: como podia o crente ligar-se a esse sacerdote que de si próprio disse ser o caminho único para chegar ao Pai? Podia acercar-se de Cristo pelos seus próprios merecimentos, por rituais, por intercessões apenas humanas, por instituições históricas e tradições? Não, pois a sua natureza decaída e pecadora não lho permite. A Salvação é uma dádiva de Deus, tão soberana quanto gratuita – Só a Graça. E se esta vem do Alto, sem relação nem reciprocidade com actos nossos que a pretendam propiciar, todo o ritualismo e acção “mágica” da religião exterior tem de ser substituída pela única escolha e determinação válida do crente verdadeiro – Só a Fé.
Tudo isto poderia, no entanto, significar que os crentes ficariam entregues a si mesmos e a uma relação espontânea com Deus. Se a Igreja institucional e a sua casta sacerdotal não tinham autoridade em questões de fé, nenhuma autoridade existiria no Cristianismo e na vida do cristão? Nos tempos conturbados em que lhe foi dado viver, Lutero não foi conduzido apenas a descobrir que uma instituição histórica que se reclamava como prefiguração do Reino levava os crentes ao cativeiro. O reformador foi levado a ver que uma fé absolutamente espiritualizada, reclamando-se directamente inspirada pelo Espírito Santo, podia ser fonte de grandes desvarios e graves erros. O caminho das descobertas anteriores já claramente indicava o da derradeira – Só a Escritura. A Bíblia, tal como definida no cânone, necessitada do estudo aturado e ponderado do crente, é o depósito da fé, a mediação visível e a autoridade para o cristão.
Neste caminho que fez, por um percurso tortuoso, sofrido, mas radioso, Lutero foi levado – acreditamos que pelo Espírito Santo – a definir o fulcro da Reforma do século XVI e a apontar a estrada que desde então trilham milhões de cristãos nas igrejas reformadas. Esse caminho é demasiado grande e verdadeiro para poder ser atribuído a um simples homem, mortal e pecador. Como escreveu Guilherme Dias da Cunha, um autor protestante português no século XIX, «Para nós nem Paulo, nem Apolo, nem Cefas, nem Lutero são cousa alguma: Cristo é que é tudo, em todos e para todos» (jornal A Reforma, 10.11.1883).
Postscriptum – A rosa de Lutero [Carta de Lutero a Lázaro Spengler, 8 de Julho de 1530, explicando o sentido do seu monograma.] «Graça e paz do Senhor. Este selo é um resumo da minha teologia. O coração com uma cruz preta no meio significa a fé no Salvador (Romanos 10:10), bem implantada no meu sentir e no meu ser, sem ferir a minha natureza humana, mas dando-lhe vida (Romanos 1:17). Este coração está no meio de uma rosa branca para significar que aquela fé, de que vive o coração, dá alegria, conforto e paz (João 14:27); é o branco dos anjos e dos espíritos, para lembrar que as dádivas da fé são diferentes das do mundo (Mateus 28:3 e João 20:12). A rosa está sobre um campo azul, que representa as dádivas vindouras do céu e está, por sua vez, rodeado por anel de ouro, que simboliza a eternidade dessas promessas celestiais. Este é o meu compêndio de teologia. Que o Senhor esteja contigo. Ámen.»