Richard Wrangham, CATCHING FIRE: HOW COOKING MADE US HUMAN (1.ª ed. 2009), Londres: Profile Books, 2010, 309
páginas.
Wrangham apresenta uma interessante teoria da hominização assente num estudo da prática (mais ancestral do que se julga) de cozinhar os alimentos.
No capítulo 1, para chegar à formulação da hipótese que defende, o autor discorre sobre a
ingestão exclusiva de alimentos crus, que requerem alimentação frequente ao
longo do dia (e sensação constante de fome), perda de peso para quem está
habituado a comida cozinhada e até perda do “apetite” sexual; isso deve-se à
dificuldade do aparelho digestivo de processar os alimentos, o que exige o seu
consumo em grandes quantidades e um uso constante daquele aparelho, com grande
dispêndio de energia (é o caso das plantas, fibrosas, e da carne muscular,
mesmo que intensamente mascada por dentes portentosos – daí que uma das coisas
que os habilinos parecem ter feito intensamente com os instrumentos de pedra
que a arqueologia lhes associa era martelar a carne, quebrando as fibras e
facilitando a digestão, assim como a disponibilidade de energia para o
crescimento do cérebro, tradeoff com
o sistema digestivo, que Wrangham explicará melhor no capítulo 5).
No fim do capítulo 3 («The energy theory of
cooking», p. 55ss), diz: «Cooked food is better than raw food because life is
mostly concerned with energy. So from an evolutionary perspective, if cooking
causes a loss of vitamins or creates a few long-term toxic compounds, the
effect is relatively unimportant compared to the impact of more calories. A
female chimpanzee with a better diet gives birth more often and her offspring
have better survival rates. In subsistence cultures, better-fed mothers have
more and healthier children. In addition to more offspring, they have greater
competitive ability, better survival, and longer lives. When our ancestors
first obtained extra calories by cooking their food, they and their descendants
passed on more genes than others of their species who ate raw. The result was a new evolutionary opportunity.» (p.
81).
No fim do capítulo 4 («When cooking began» p. 83ss), depois de ter
defendido que o nosso aparelho digestivo atual, dentição e tamanho da boca são
resultados de uma adaptação aos alimentos cozinhados iniciada pelos habilinos
que sucederam aos australopitecos (e que, por sua vez, resultavam do início de
consumo de carne por estes), diz: «If Homo
erectus used fire, however, they could sleep in the same way as people do
nowadays in the savanna. In the bush, people lie close to the fire and for most or all of the
night someone is awake. […] The control of fire could explain why Homo erectus lost their climbing
ability. The normal assumption is that when long legs were favored, perhaps as
a result of the increasing importance of long-distance travel as humans
searched for meat, it was harder for humans to climb efficiently, and Homo erectus therefore abandoned the
trees. But since that argument does not explain how Homo erectus could sleep safely, I prefer an alternative
hypothesis: having controlled fire, a group of habilines learned that they
could sleep safely on the ground.» (pp. 101-102). O controle do fogo e a prática de cozinhar alimentos
seguiram-se com grande proximidade temporal.
No capítulo 5 (“Brain foods”, p. 105ss), o autor
aborda a teoria do “social brain” («Evolutionary psychologist Robin Dunbar
found that primates with bigger brains or more neocortex live in larger groups,
have a greater number of close social relationships, and use coalitions more
effectively than those with smaller brains. […] The result is a soap opera of
changing affections, alliances, and hostilities, and a constant pressure to
outsmart others», pp. 107-108) e a proposta de 1995 de Leslie Aiello e Peter
Wheeler segundo a qual os animais com grandes cérebros e bocas pequenas
desenvolveram dietas de alta qualidade nutritiva (por causa do tradeoff já referido supra); assim, «The constant energy
demand of brain cells continues even when times are though, such as when food
is scarce or an infection is raging. The first requirement for evolving a big
brain is the ability to fuel it, and to do it so reliably» (p. 110).
Mas Wrangham discorda de Aiello e Wheeler porque
estes atribuem a comida cozinhada ao aparecimento do Homo heidebergensis, antecessor do Sapiens, que o autor faz recuar aos habilinos antecessores do Erectus, esclarecendo: «Dietary shifts
toward roots, meat eating, and meat processing [p.e., martelada com
instrumentos] thus can explain the growth in brains from a chimpazee-like
ancestor at six million years ago to the habilines around two million years ago
[daí as espécies diferentes de australopitecos, cada vez mais encorpados]. From then on, the increases in brain size were more
continuous. The habiline cranial capacity of 612 cubic centimeters rose over 40
percent to reach an average of 870 cubic centimeters in the earliest Homo erectus. The significance of this
rise is complicated by a parallel growth in body weight, from the lowly 32 to
37 kilograms of habilines to a substantial 56 to 66 kilograms in Homo erectus. Unfortunately, body
weights are hard to estimate accurately from bones, and the number of specimens
is small, so how much larger relative to body weight the brains of the first Homo erectus were than those of
habilines, or wether they were relatively larger at all, is uncertain. However,
Homo erectus brains continued to
increase in size after 1.8 million years ago, averaging almost 950 cubic
centimeters by 1 million years ago. […] The fourth notable increase in cranial
capacity occurred with the emergence of Homo
heidelbergensis after eight hundred thousand years ago. The increase was
again substantial, leading to a brain occupying around 1,200 cubic centimeters»
(pp. 120-121).
A
evolução do Homo heidelbergensis até
ao Sapiens sapiens (com 1400
centímetros cúbicos, um salto já “pequeno”) explicar-se-á por melhorias nos métodos
de cozinhar a comida, como aqueles que se observam ainda em determinados povos
“primitivos”, p.e., cozer em água onde se mergulham pedras aquecidas ou usá-las
como tostadeiras com a carne no meio ou ainda enterrando-as (pedras ou lenha em
brasa) com a carne e vários condimentos num género de panela subterrânea (p.
123ss).
No capítulo 6 (“How Cooking Frees Men”, p. 129ss), é tratado um aspeto
decorrente dos anteriores – o modo como os novos hábitos alimentares libertaram
o tempo do Homem da preocupação e necessidade constante de comer, digerir e
defecar, de modo bem apanhado na epígrafe: «Voracious animals… both feed
continually and as incessantly eliminate, leading a life truly inimical to
philosophy and music, as Plato has said, whereas nobler and more perfect
animals neither eat nor eliminate continually.» (Galeno, Sobre a Utilidade das Diferentes Partes do Corpo); neste capítulo,
o autor refuta a ideia da divisão sexual do trabalho baseada na caça dos machos
complementada pela recoleção das fémeas, dado que, segundo diz, baseando-se na
observação de primatas atuais, «A division of labor into hunting and gathering
would not have afforded consumption of sufficient calories, as long as the food
was consumed raw» (p. 145).
No capítulo seguinte (“The Married Cook”, p.
147ss), Wrangham expõe a teoria de que a divisão sexual do trabalho (e o
casamento) está baseada na comida cozinhada, o que se constata nos povos
primitivos atuais ser um facto antropológico universal; a divisão não se baseia
no facto de o homem ser caçador, mas protector do alimento da fémea dentro da
comunidade: «A male used his social power both to ensure that a female did not
lose her food, and to guarantee his own meal by assigning the work of cooking
to the female» (p. 155); em troca, a mulher cozinha para ele. Wrangham diz ser
esta a base do casamento enquanto instituição, pelo que na generalidade das
sociedades primitivas a fidelidade conjugal não era nem é condição do casamento
ou socialmente imposta.
Não menos importante é a ideia do fogo conjugal e da
comida aí cozinhada como propriedade privada da família e inviolável por outros
membros da comunidade, o que parece ser também uma regra antropológica
universal e que tornou sociedades ainda muito densamente “comunitárias” numa
rede de cápsulas ou domínios privados – famílias
(nestas, a protecção dada pelo homem à mulher era estendida aos filhos de
ambos, e os “direitos” à comida e à protecção detidos pela mulher em troca da
cozinha também eram os direitos dos seus filhos).
No capítulo final (“The
Cook’s Journey”, p. 179ss), que relembra a famosa frase de Jean Anthelme
Brillat-Savarin [1755-1826] «diz-me o que comes, dir-te-ei quem és» (The Phisiology of Taste: Or Meditations on
Transcendental Gastronomy, 1825), leva Wrangham a abordar as mudanças
fisiológicas provocadas pela comida cozinhada que, entre outras coisas, nos
terá permitido correr e deslocar-nos mais graças a uma alimentação rica em
proteínas eficazmente assimiladas por via do aquecimento antes da ingestão – e
que nos levou provavelmente depois a
perder pêlo no corpo para evitar o sobreaquecimento que afeta os primatas
atuais quando correm (só depois o fogo foi usado para aquecimento contra o
ambiente frio, pois a sua utilidade primeira, além da cozinha, era a defesa
contra predadores).
Outro aspeto é que o comportamento social da espécie deve
ter-se alterado pela necessidade de controlar instintos violentos quando se
estava à volta do fogo a comer (mais uma vez compara com os comportamentos
contrários dos primatas atuais); o mesmo é dizer que os indivíduos mais capazes
desse autocontrolo eram melhor sucedidos em sociedade e que esse comportamento
“novo” foi selecionado, tal como aconteceu com os primeiros cães, que tiveram
de controlar a sua violência inata quando começaram a especializar-se em comer
restos junto a comunidades humanas, sendo assim “selecionados” com a vantagem
de uma alimentação melhor sobre os mais violentos.
No epílogo (p. 195ss), o
autor chama atenção para a necessidade de se perceber melhor a biofísica
nutricional porque os nutricionistas têm estado, por uma questão intracultural
do seu ramo do saber, excessiva e erroneamente focados em aspetos químicos dos
alimentos e menos no processo digestivo e na forma como este altera e absorve
os alimentos – por exemplo, estudando a digestão das proteínas (quimicamente
consideradas), mas não da carne na sua realidade física mais complexa: «They
forget that our digestive enzymes interact not with free proteins but with a
slimy three-dimensional bolus, which after a meal of meat is a messy collection
of chewed chunks of muscle, each piece of which is wrapped in multilayered
tubes of connective tissue. […] Nutritionists
cannot calculate the value of foods directly because foods are too complicated
in their composition and structure, and digestive systems treat different foods
in different ways» (pp. 196-197).
As regras estabelecidas pelos nutricionistas
ainda se baseiam nas criadas por Wilbur Olin Atwater (1844-1907), que
identificou como fontes de energia nos alimentos a proteína, a gordura e os
hidratos de carbono (os 3 macronutrientes), criando um método para medir a
quantidade de calor libertada por cada um dos três em diferentes alimentos, uma
vez queimados – assim, por exemplo, as proteínas, em geral (em alimentos
diversos), libertam um pouco mais de 4 quilocalorias por grama. Atwater
dissolveu a gordura em éter, conseguindo quantificar os lípidos; para as
proteínas, quantificou o nitrogénio (em geral, cerca de 16% do peso de uma
proteína); e para os hidratos de carbono, que não são quantificáveis, teve de
estimá-los por exclusão de partes a partir da quantificação da matéria orgânica
total de determinado alimento, queimando-o até ficar só a cinza mineral, que é
a parte inorgânica.
Restava saber o que é digerido: a análise de fezes de
pessoas que ingeriam dietas previamene quantificadas foi o caminho e levou-o a
constatar que a relação entre os três macronutrientes não sofria alterações
significativas, podendo propor os fatores
gerais de Atwater, ainda hoje canónicos: em média, proteínas e hidratos de
carbono geram cada 4 kcal/grama, enquanto os lípidos geram 9 kcal/grama; embora
as variações entre alimentos diferentes (ou a proporção de nitrogénio nas
proteínas) tenham sido reconhecidas e ponderadas a partir de 1955, a verdade é
que as medições mais precisas e específicas não alteram assim tanto os fatores gerais. Os problemas são outros:
Atwater não reconheceu que a digestão é um processo custoso, aumentando o nosso
metabolismo até 25% (nada que se compare aos 136% dos peixes ou 687% das
cobras), dependendo do tipo e qualidade
dos alimentos, e que consome mais ou menos matéria orgânica ingerida (calorias)
no seu próprio processo; assim, «Protein costs more to digest than
carbohydrates, while fat has the lowest digestive cost of all macronutrients.»
(p. 202). Se eu comer muitas calorias na forma de hidratos de carbono vou pesar
tanto como alguém que coma muito menos calorias mas as ingira por meio de
gordura; o número de vezes que se come, o tamanho dos bocados engolidos e a
temperatura a que são ingeridos facilitam ou dificultam a digestão, afetando a
quantidade de calorias que são absorvidas no fim.
O segundo problema com o
sistema de Atwater diz respeito à indiferença que tem sobre a preparação dos
alimentos (cozinhados ou crus, líquidos ou sólidos, mais ou menos fibrosos), o
que já se viu afetar a digestão (facilita-a ou dificulta-a) e a quantidade de
calorias absorvidas no fim. A forma tão variável como hoje os mesmos alimentos
são tratados e preparados antes de vendidos torna os fatores gerais um guia insuficiente para compreendermos os efeitos
da alimentação no peso e na saúde dos nossos semelhantes.