segunda-feira, julho 30, 2007

Diagnóstico de um tumor

[Publicado no Diário de Notícias 8.11.1988, supl. DN Jovem, p. 35]
“Deve ter-se cuidado com a mudança para um novo género musical, que pode pôr tudo em risco. É que nunca se abalam os géneros musicais sem abalar as mais altas leis da cidade.” – Platão, A República.
Independentemente do género em causa, toda a estética musical está relacionada com a ética política mas o aparecimento da música de intervenção – ou da música “orientada” – vem romper todo o equilíbrio inerente à arte porque submete a estética à ética. (O inverso também é uma ruptura que adultera a arte; veja-se os chamados “anartistas” cujas obras se limitam a ser elaboração sem sentido e das quais não se extrai qualquer sensação a não ser a frustração de quem quer ver um novo estilo nas maisons dos nossos emigrantes regressados.) Mas a música orientada não é só o somatório dos hinos revolucionários e da canção de intervenção, de José Afonso a Baez e Dylan, é antes tudo aquilo que vem na esteira da revolução musical que culminou na expansão de novos estilos a partir de meados da década de 60. Então, tal como acontecera nos períodos de declínio da Roma e da Grécia antigas, a civilização ocidental foi assaltada por contravalores que tornavam novos géneros musicais no seu cavalo de Tróia para a conquista das consciências. Nos começos dos anos 80, por via de um regresso parcial aos valores tradicionais, de uma acção cultural concertada e de vitórias políticas alcançadas dentro dos sistemas de poder nacionais – sobretudo nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha –, completou-se a reacção conservadora a todo este estado de crescente degeneração ocidental. Mas, se os estudantes universitários dos maiores países democráticos e mesmo do Leste assistiam cada vez em maior número às celebrações do culto cristão perante o cepticismo do professorado progressista e punham de novo a família no topo da lista das suas preocupações e prioridades, não é apesar de tudo certo que a prosperidade relativa das forças da tradição ocidental signifique um desfecho da luta com os contravalores de 60.
O que em grande parte aconteceu foi o cansaço do radicalismo de 60 e 70, dos sinais exteriores mais evidentes, mas o germe hedonista-niilista continua vivo e faz caminho entre as novas gerações, mesmo quando não passa de um ideal acarinhado. Pouco importa que os círculos intelectuais se tenham apercebido da falência do freudo-marxismo e aprendido a ver a vida acima do esgoto da líbido e da luta de classes se a música pop continua a incutir nas mentes em maturação o fundamental desse sistema de “valores”. E essa permanência dos contravalores seria sempre forçosa já que a mentalidade do grupo que cria e produz o pop não se alterou apesar das mudanças mais ou menos superficiais na estética e da sucessão geracional. Daí se compreende que, mesmo numa década de pretenso avanço do conservadorismo, os comportamentos libertários medrem nas nossas sociedades e sirvam de modelo ou meta a muita juventude teoricamente capaz de, por eles, renunciar às obrigações cívicas, à família, ao posicionamento cristão na vida e à própria respeitabilidade, tudo atitudes hoje ridicularizadas e até “demonizadas” (levando-nos isto à componente gnóstica da mentalidade da “aristocracia” do pop, formada por toda essa casta de cantores do mundo videomusical: é que de facto, tal como os ideólogos totalitaristas ou os puritanos ingleses do século XVII – que decapitaram reis em nome da nova verdade encontrada ou “revelada” – esses senhores tocadores e cantores crêem-se normalmente na posse da nova e autêntica virtude por oposição à moral e à ética tradicionais ainda estabelecidas e reduzidas nas suas bocas a “manifestações de repressão e hipocrisia” ou a “heranças do obscurantismo”).
A apologia da barbárie, que se nota em toda a estética videográfica desde os princípios da década presente, é hoje o espaço mental em que se desenvolvem os contravalores. Os cenários são os subúrbios das grandes cidades, com muros cheios de graffitis, bandos de negros sofisticados, carcaças de automóveis, velhos mendigos, fumos, bares pouco decentes com um odor de promiscuidade, quartos de paredes despidas e camas por fazer, cantores em acção ou público delirante. O culto da marginalidade. Um mundo de indivíduos vagueando entre a náusea solitária e o instinto que os une à tribo. Nenhuma mediação. Cada coisa entregue a si e tudo sem significado ou fim discernível. A recusa de tudo o que até aqui foi o mundo; a adesão ao contramundo, a sede de “qualquer outra coisa”... A música é o aliciante e depois o alimento, os poparistocratas tornam-se os novos santos («o Jim Morrison foi o maior génio do século XX», disse-me um dia um colega do liceu). Como dizia o outro, «o sonho comanda a vida» e a música bem pode comandar o sonho. Mas o que eles não sabem nem sonham é onde tudo pode vir a parar.
Para Pete Townshend dos The Who, que costumava espatifar em cena as suas guitarras (não se sabe se reencarnando um seu antepassado guerreiro), a coisa acabou menos mal: numa metamorfose que o levou até aos Jovens Conservadores. Outros, como os Lloyd Cole and the Commotions com Mainstream, continuam a criar verdadeiros regalos. Mas tudo não devia ser muito mais que isto: eles fazendo música e nós desfrutando-a – com todas as excentricidades, fobias e outras coisas pouco recomendáveis fazendo simplesmente parte do folclore. A tendência para promover e seguir o acessório, para dar importância a bons músicos que só dizem disparates sobre questões societárias, para reduzir a existência ao miserabilismo ético e ao optimismo pueril e desenfreado – tudo doenças ocidentais diagnosticadas por Alexandre Soljenitsyne –, conduziram até aqui àquilo que Georges Gusdorf chamou o Pentecostes sem o Espírito Santo, ou seja, «a vagabundagem intelectual, um delírio que se resolve em fantasmas ou ainda um conto de fadas que perdeu a inocência».