[Publicado no Blogue do Não entre Outubro e Dezembro de 2006.]
A minha declaração de intenções [23.10.2006]
No debate que agora se inicia sobre a proposta de liberalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG), muita gente de bem está no lado do “sim” e tem genuínas preocupações com a dignidade humana das mulheres que passaram e passam pela experiência da IVG. Julgo que devemos partir de uma atitude de profundo respeito por esses sentimentos, que dificilmente são estranhos aos que estão do lado do “não”. Acima de tudo, é muito importante que o debate que agora se inicia possa decorrer com elevação, sem processos de intenção de parte a parte. Para isso, seria importante que os apoiantes do “sim” à proposta de liberalização da IVG até às dez semanas tivessem em consideração um pequeno grande pormenor na argumentação do lado do “não”: o de que, deste lado, se considera estar envolvida OUTRA PESSOA além da mãe [o feto]. Já seria um grande avanço se pudessemos, de parte a parte, partir para a discussão dando como adquirido que o que move ambos os lados é a defesa da dignidade humana.
IVG e referendo [27.10.2006]
Numa coisa concordo com Pedro Arroja [«Até se tornar irrelevante», Blasfémias] (na verdade, em muitas outras): o referendo não é a melhor maneira de resolver a “questão moral” da IVG (vg. “aborto”). Nunca fui apoiante da democracia plebiscitária e, para mim, a mudar-se alguma coisa na lei (num assunto deste calibre) seria ao parlamento que caberia discutir e decidir. Com uma condição: a questão deveria ser proposta na presente legislatura e, na campanha da eleição geral seguinte, os candidatos a deputados (ou as várias listas em cada círculo) deveriam anunciar a respectiva posição sobre o assunto; deste modo, o parlamento eleito tomaria uma decisão mandatado para o efeito. Estando nós, porém, na circunstância política em que estamos (na qual até revisões constitucionais se fazem sem o processo que indiquei e a relação entre eleitos e eleitores é o que sabemos), o referendo pode, paradoxalmente, tornar-se um elemento corrector da excessiva concentração das decisões nos directórios partidários e no poder executivo.
Uma frase de Karl Barth [01.11.2006]
Se se acreditar que o fim da vida humana não é a morte, mas a ressurreição, viver ganha um valor imperativo que transcende todo o instinto de sobrevivência e de procura da felicidade – as duas coisas que nos fazem andar para a frente no dia-a-dia. A vida torna-se a experiência possível de consciencialização do ser humano individual sobre o fim para o qual foi criado. Que essa experiência tem de ser vivida por cada um, na sua autenticidade única, para poder orientar-se para o transcendente fim da criação, é o que quase a torna para nós um dever, mais do que um direito. Chegar a compreender-se para lá do instinto de sobrevivência e aprender a relatividade da felicidade é o caminho que nenhum acto deliberado, nosso ou de outrem, pode interromper. Nascer para viver para morrer para ressuscitar. É assim que o mistério da ressurreição diz tudo sobre o que podemos nem chegar a imaginar que está hoje em jogo.
Recolocar a questão moral [05.11.2006]
Há quem coloque o fulcro moral da questão da interrupção voluntária da gravidez (IVG) apenas no plano da consciência de cada um; a Lei e o Estado deveriam deixar essa questão à decisão moral dos indivíduos, para o que a liberalização se tornaria necessária. Esta solução seria alegadamente a mais correcta em termos morais porque confrontaria cada um com um exame de consciência do qual emergiria uma escolha mais verdadeira e autêntica. Como defenderei num post seguinte, uma das fraquezas dessa posição é que ela só seria real para as mulheres. A objecção que para já coloco a este modo de ver o problema da IVG é que essa posição não é admissível se estiver em causa a defesa da integridade de outra pessoa além do agente moral (quem toma a decisão). É por isso que, em nome dessa suposta correcção moral, não se defende a descriminalização de condutas atentatórias daquela integridade: ninguém diz “vamos descriminalizar a agressão física porque é mais saudável viver numa sociedade em que as pessoas tomam decisões morais genuínas e não porque a lei e a polícia as obrigam a isso”. O argumento da liberalização, que entrega aos indivíduos a responsabilidade plena dos seus actos, é, para mim, válido para a totalidade dos comportamentos comuns das pessoas que só as afectam a elas próprias; nesses casos, de facto, a lei e o Estado não se devem imiscuir. Pelo contrário, sob a alçada do Direito (e dos tribunais) ficam as regras recíprocas de justa conduta que permitem aos indivíduos conviver sem se agredirem nos seus direitos essenciais – sendo que o seu direito essencial primeiro é o de gozarem de toda a liberdade em relação aos comportamentos que só os afectam a si próprios. Ora, é para mim claro que a IVG afecta, isto é, interrompe por acto deliberado de segundo ou de terceiro, a vida de um ser humano – que tem, assim, a sua integridade violada de forma absoluta. E é por isso que, no meu entendimento, a IVG não está no plano dos actos morais que pertencem à responsabilidade plena do indivíduo, mas, pelo contrário, está sob a alçada do Direito e das garantias de que este deve cercar a integridade de cada ser humano. (É também por isso que a IVG pode ser admitida se uma gravidez colocar em perigo a integridade – a vida – da mãe, ou se essa gravidez tiver resultado de um acto que violou essa integridade.)
Que direitos (e deveres) tem o pai? [01.12.2006]
A concessão (sem condições) à mulher do direito de interromper voluntariamente a gravidez abre ao exercício da paternidade um complexo problema moral e jurídico. O facto de não o ver debatido não diminui a minha convicção sobre a gravidade da situação para a qual parecemos caminhar. Julgo que sempre se considerou que o acto da procriação resulta da decisão livre de um homem e de uma mulher (o problema de uma gravidez ocorrida numa relação não consentida está fora do âmbito desta argumentação). Um casal decide ter filhos ou decide não ter; ninguém lhes impõe essa decisão. Mas essa liberdade tem a correlativa responsabilidade de cuidar de um terceiro, no caso de ocorrer uma gravidez. Essa obrigação é igual para o pai e para a mãe. Ora, este equilíbrio moral e jurídico de direitos e deveres é quebrado quando é dado à mulher um direito soberano de vida ou de morte sobre o feto (até às dez semanas); isto, acrescento eu, como se o filho fosse só seu – ou, como defendem os que suportam a IVG com base no direito da mulher de “dispor do seu corpo”, como se o feto fosse simplesmente parte do seu corpo. E não é também parte do do pai? Não é isso que está pressuposto na lei quando o homem é obrigado a assumir a sua responsabilidade de paternidade? A defesa da IVG como um direito em abstracto tem, pois, um problema complicado: é um direito apenas das mulheres que, pela sua própria natureza, está duplamente vedado aos homens: primeiro porque não são os homens quem engravida, segundo porque são excluídos da decisão de a praticar. Trata-se, assim, de um “direito” ferido da impossibilidade de universalidade, característica que eu acreditava ser uma das bases do Direito das sociedades livres. Mas, a este problema, acresce um outro: o que é a paternidade? Com a atribuição, sem condições, do direito da mulher à IVG, a paternidade torna-se condicional, uma concessão da mulher ao homem. O exercício desse dever pelos homens passa a estar claramente enfraquecido porque, até às dez semanas de gravidez, uma decisão voluntária da mulher pode quebrar ou fazer desaparecer esse dever. Os homens que entendam a sua paternidade sobre o feto também como um direito passam igualmente a estar sujeitos à decisão da mulher para o exercer. Com a sua responsabilidade assim condicionada, os homens não estão a ser separados do que de mais íntimo e essencial os une à paternidade? Deste modo, as crianças passarão a nascer, não porque o pai e a mãe quiseram, mas porque a mãe quis. E o homem será pai também por decisão da mãe. Esta menorização dos homens, que juridicamente já é desastrosa, não poderá deixar de o ser também moralmente (a não ser que optemos por viver à margem da imoralidade das leis).
A minha declaração de intenções [23.10.2006]
No debate que agora se inicia sobre a proposta de liberalização da interrupção voluntária da gravidez (IVG), muita gente de bem está no lado do “sim” e tem genuínas preocupações com a dignidade humana das mulheres que passaram e passam pela experiência da IVG. Julgo que devemos partir de uma atitude de profundo respeito por esses sentimentos, que dificilmente são estranhos aos que estão do lado do “não”. Acima de tudo, é muito importante que o debate que agora se inicia possa decorrer com elevação, sem processos de intenção de parte a parte. Para isso, seria importante que os apoiantes do “sim” à proposta de liberalização da IVG até às dez semanas tivessem em consideração um pequeno grande pormenor na argumentação do lado do “não”: o de que, deste lado, se considera estar envolvida OUTRA PESSOA além da mãe [o feto]. Já seria um grande avanço se pudessemos, de parte a parte, partir para a discussão dando como adquirido que o que move ambos os lados é a defesa da dignidade humana.
IVG e referendo [27.10.2006]
Numa coisa concordo com Pedro Arroja [«Até se tornar irrelevante», Blasfémias] (na verdade, em muitas outras): o referendo não é a melhor maneira de resolver a “questão moral” da IVG (vg. “aborto”). Nunca fui apoiante da democracia plebiscitária e, para mim, a mudar-se alguma coisa na lei (num assunto deste calibre) seria ao parlamento que caberia discutir e decidir. Com uma condição: a questão deveria ser proposta na presente legislatura e, na campanha da eleição geral seguinte, os candidatos a deputados (ou as várias listas em cada círculo) deveriam anunciar a respectiva posição sobre o assunto; deste modo, o parlamento eleito tomaria uma decisão mandatado para o efeito. Estando nós, porém, na circunstância política em que estamos (na qual até revisões constitucionais se fazem sem o processo que indiquei e a relação entre eleitos e eleitores é o que sabemos), o referendo pode, paradoxalmente, tornar-se um elemento corrector da excessiva concentração das decisões nos directórios partidários e no poder executivo.
Uma frase de Karl Barth [01.11.2006]
Se se acreditar que o fim da vida humana não é a morte, mas a ressurreição, viver ganha um valor imperativo que transcende todo o instinto de sobrevivência e de procura da felicidade – as duas coisas que nos fazem andar para a frente no dia-a-dia. A vida torna-se a experiência possível de consciencialização do ser humano individual sobre o fim para o qual foi criado. Que essa experiência tem de ser vivida por cada um, na sua autenticidade única, para poder orientar-se para o transcendente fim da criação, é o que quase a torna para nós um dever, mais do que um direito. Chegar a compreender-se para lá do instinto de sobrevivência e aprender a relatividade da felicidade é o caminho que nenhum acto deliberado, nosso ou de outrem, pode interromper. Nascer para viver para morrer para ressuscitar. É assim que o mistério da ressurreição diz tudo sobre o que podemos nem chegar a imaginar que está hoje em jogo.
Recolocar a questão moral [05.11.2006]
Há quem coloque o fulcro moral da questão da interrupção voluntária da gravidez (IVG) apenas no plano da consciência de cada um; a Lei e o Estado deveriam deixar essa questão à decisão moral dos indivíduos, para o que a liberalização se tornaria necessária. Esta solução seria alegadamente a mais correcta em termos morais porque confrontaria cada um com um exame de consciência do qual emergiria uma escolha mais verdadeira e autêntica. Como defenderei num post seguinte, uma das fraquezas dessa posição é que ela só seria real para as mulheres. A objecção que para já coloco a este modo de ver o problema da IVG é que essa posição não é admissível se estiver em causa a defesa da integridade de outra pessoa além do agente moral (quem toma a decisão). É por isso que, em nome dessa suposta correcção moral, não se defende a descriminalização de condutas atentatórias daquela integridade: ninguém diz “vamos descriminalizar a agressão física porque é mais saudável viver numa sociedade em que as pessoas tomam decisões morais genuínas e não porque a lei e a polícia as obrigam a isso”. O argumento da liberalização, que entrega aos indivíduos a responsabilidade plena dos seus actos, é, para mim, válido para a totalidade dos comportamentos comuns das pessoas que só as afectam a elas próprias; nesses casos, de facto, a lei e o Estado não se devem imiscuir. Pelo contrário, sob a alçada do Direito (e dos tribunais) ficam as regras recíprocas de justa conduta que permitem aos indivíduos conviver sem se agredirem nos seus direitos essenciais – sendo que o seu direito essencial primeiro é o de gozarem de toda a liberdade em relação aos comportamentos que só os afectam a si próprios. Ora, é para mim claro que a IVG afecta, isto é, interrompe por acto deliberado de segundo ou de terceiro, a vida de um ser humano – que tem, assim, a sua integridade violada de forma absoluta. E é por isso que, no meu entendimento, a IVG não está no plano dos actos morais que pertencem à responsabilidade plena do indivíduo, mas, pelo contrário, está sob a alçada do Direito e das garantias de que este deve cercar a integridade de cada ser humano. (É também por isso que a IVG pode ser admitida se uma gravidez colocar em perigo a integridade – a vida – da mãe, ou se essa gravidez tiver resultado de um acto que violou essa integridade.)
Que direitos (e deveres) tem o pai? [01.12.2006]
A concessão (sem condições) à mulher do direito de interromper voluntariamente a gravidez abre ao exercício da paternidade um complexo problema moral e jurídico. O facto de não o ver debatido não diminui a minha convicção sobre a gravidade da situação para a qual parecemos caminhar. Julgo que sempre se considerou que o acto da procriação resulta da decisão livre de um homem e de uma mulher (o problema de uma gravidez ocorrida numa relação não consentida está fora do âmbito desta argumentação). Um casal decide ter filhos ou decide não ter; ninguém lhes impõe essa decisão. Mas essa liberdade tem a correlativa responsabilidade de cuidar de um terceiro, no caso de ocorrer uma gravidez. Essa obrigação é igual para o pai e para a mãe. Ora, este equilíbrio moral e jurídico de direitos e deveres é quebrado quando é dado à mulher um direito soberano de vida ou de morte sobre o feto (até às dez semanas); isto, acrescento eu, como se o filho fosse só seu – ou, como defendem os que suportam a IVG com base no direito da mulher de “dispor do seu corpo”, como se o feto fosse simplesmente parte do seu corpo. E não é também parte do do pai? Não é isso que está pressuposto na lei quando o homem é obrigado a assumir a sua responsabilidade de paternidade? A defesa da IVG como um direito em abstracto tem, pois, um problema complicado: é um direito apenas das mulheres que, pela sua própria natureza, está duplamente vedado aos homens: primeiro porque não são os homens quem engravida, segundo porque são excluídos da decisão de a praticar. Trata-se, assim, de um “direito” ferido da impossibilidade de universalidade, característica que eu acreditava ser uma das bases do Direito das sociedades livres. Mas, a este problema, acresce um outro: o que é a paternidade? Com a atribuição, sem condições, do direito da mulher à IVG, a paternidade torna-se condicional, uma concessão da mulher ao homem. O exercício desse dever pelos homens passa a estar claramente enfraquecido porque, até às dez semanas de gravidez, uma decisão voluntária da mulher pode quebrar ou fazer desaparecer esse dever. Os homens que entendam a sua paternidade sobre o feto também como um direito passam igualmente a estar sujeitos à decisão da mulher para o exercer. Com a sua responsabilidade assim condicionada, os homens não estão a ser separados do que de mais íntimo e essencial os une à paternidade? Deste modo, as crianças passarão a nascer, não porque o pai e a mãe quiseram, mas porque a mãe quis. E o homem será pai também por decisão da mãe. Esta menorização dos homens, que juridicamente já é desastrosa, não poderá deixar de o ser também moralmente (a não ser que optemos por viver à margem da imoralidade das leis).