terça-feira, fevereiro 19, 2008

O Protestantismo em Portugal (IV): Bíblia, cultura e sensibilidades religiosas

Rev. Eduardo Moreira (1886-1980)

A Bíblia, os seus preceitos, a sua leitura e difusão, está associada ao esforço missionário do P. em Portugal desde a sua génese; quer Kalley, quer os três semeadores Pope, Stewart e Cassels começaram por patrocinar pequenos grupos de estudo bíblico que só depois se transformaram em congregações. Em 1884, os autores do primeiro livro litúrgico protestante português diziam ter «posto de parte o que nos pareceu mau e conservado e ampliado o que julgámos bom e bíblico» (Livro de Oração Comum, p. VII): a Bíblia era, na verdade, a cultura comum e o elemento diferenciador do meio para todos os protestantes no Portugal católico de Oitocentos. Opunha-se à prática religiosa devocional e sacramental dominante e, na visão protestante, era uma ligação aos primórdios do Cristianismo, à sua pureza e à sua verdade; evangelizar, fazer cristãos, era assim sinónimo de dar a conhecer a Bíblia. Daí que a história da presença em Portugal da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (S.B.B.E.) seja uma história de cooperação com as várias denominações protestantes na tarefa de «traduzir, imprimir e distribuir a Palavra de Deus»; instalada permanentemente em Portugal desde 1864 com uma agência em Lisboa, a S.B.B.E. usou as congregações protestantes como canais de desenvolvimento da sua missão, apoiando-as simultaneamente numa parte fundamental do trabalho evangelizador. Desde o início da segunda metade do século XIX, a S.B.B.E. distribuía no País Bíblias em Português impressas em Inglaterra [na verdade, desde 1864, impressas em Portugal] e baseadas quer na tradução clássica de João Ferreira de Almeida (Amsterdão, 1681) quer na do padre António Pereira de Figueiredo (a partir da Vulgata, Lisboa 1790); com a sua acção, aparece uma figura quase lendária do P. português, o “colporteur” (ou “colportor”, de forma aportuguesada): este corria o País ao serviço da S.B.B.E., levando Bíblias onde elas eram necessárias e, por vezes, enfrentando a hostilidade dos não-protestantes. Recentemente (1989), a agência da S.B.B.E. em Portugal transformou-se em Sociedade Bíblica de Portugal, com estatutos e direcção própria. A centralidade da Bíblia está bem patente nas primeiras tentativas feitas, entre os protestantes portugueses, de fundamentação teológica das suas concepções cristológicas e eclesiológicas; na Resposta à Instrução Pastoral do Excmo. Bispo do Porto D. Américo sobre o Protestantismo (Porto, 1879) de Guilherme Dias da Cunha (1844-1907), surge uma interessante defesa “evangélica” (isto é, abrangentemente protestante, não denominacional) da Salvação só pela fé, da autoridade das Escrituras sobre a tradição e dos dois únicos sacramentos considerados bíblicos (Baptismo e Ceia) a par de uma crítica, apoiada em referências bíblicas, do culto e das doutrinas católicas romanas. Em O que é a Missa (Lisboa, 1888), o mesmo autor, apoiado sobretudo na Epístola aos Hebreus, ataca a teologia sacrificial da missa e o sacerdócio clerical histórico, que considerava incompatíveis com os autênticos sacrifício e sacerdócio de Jesus Cristo; ambos os livros dão conta da preocupação central do P. português original de retorno à Bíblia como meio de reformar a vivência da fé cristã. O tom abrangente com que Dias da Cunha o fazia só era possível por as correntes espiritualistas mais radicais ainda não terem povoado o universo protestante português e por as questões mais polémicas como o acesso à Graça ou ao Dom da profecia não lhe merecerem a mesma atenção. Mas o potencial divisionista das velhas querelas entre as correntes protestantes ficou bem patente na discórdia entre Diogo Cassels e Joseph Charles Jones em 1888 quanto ao Baptismo de crianças e por aspersão e que originou a fundação, pelo segundo, de uma denominação especificamente Baptista em Portugal; o próprio Diogo Cassels rompera com o metodista Robert Moreton em 1880 por este último não aceitar a introdução de imagens nos templos através de vitrais e crucifixos, que considerava transgressora do preceito bíblico. No entanto, a falta de recursos e a presença hegemónica do adversário comum (a Igreja Romana) parece ter dissuadido o exacerbar das diferenças, assistindo-se, desde o início do P. português a uma multiplicação de caminhos que não excluiu a cooperação; a publicação, na década de 1890, de uma Bíblia Sagrada Ilustrada em fascículos (lançada por Herbert Cassels e a Sociedade Bíblica), com o apoio das várias denominações, foi exemplo disso. Da mesma forma, foi possível criar-se, numa base interdenominacional, uma série de instituições para-eclesiásticas desde o século XIX, como a União Cristã da Mocidade Portuguesa (fundada no Porto em 1894, estendida a Lisboa em 1898 e mais tarde designada Associação Cristã da Mocidade), cujas actividades especializadas para a juventude (incluindo as primeiras patrulhas de boy-scouts, a introdução no país de modalidades desportivas como o ping-pong e o basket-ball, a popularização do Esperanto e as visitas guiadas a bairros históricos) não seriam viáveis se restritas a uma denominação; estes mesmos factores explicam a natureza não-sectária de A Reforma, o primeiro periódico protestante português aparecido em 1877 (dirigido por Dias da Cunha), mesmo depois de se ter tornado «eco da Igreja Lusitana». Com O Evangelista (1892-1900), órgão dos Episcopalianos, a imprensa protestante atingiu um alto nível de qualidade onde está espelhada a actividade das denominações e as preocupações teológicas e sociais das suas cabeças pensantes; neste jornal colaborou, por exemplo, o erudito e heraldista (episcopaliano) major Guilherme Luís Santos Ferreira (1849-1931) que nele publicou a primeira parte da sua excelente obra A Bíblia em Portugal (Lisboa, 1906). A tendência desde então, dada a multiplicação denominacional, tem sido para a profusão de periódicos denominacionais de curta duração ou publicação irregular, sendo o Portugal Evangélico (1920), O Semeador Baptista (1926), a Revista Adventista (1938) e o órgão das Assembleias de Deus Novas de Alegria (1943) os mais antigos destes títulos ainda hoje existentes; o primeiro, publicado por Presbiterianos e Metodistas, é um caso de colaboração interdenominacional. Mas, por trás destes aspectos culturais, está a dimensão quotidiana e social: a vida das comunidades protestantes portuguesas desde o século XIX foi constituída pelas manifestações propriamente religiosas, nomeadamente os cultos, e o relacionamento social entre os crentes; estes tenderam muitas vezes a formar grupos autocentrados e a adquirirem a característica de uma minoria cultural dentro da sociedade portuguesa. Daí que, apesar de as suas actividades profissionais estarem em geral perfeitamente integradas na vida económica e social das zonas de residência, os protestantes tenderem a desenvolver espaços de sociabilidade autónoma normalmente centrados no local dos cultos, onde podiam decorrer convívios, quermesses, pregações de personalidades convidadas, festas para crianças ou aulas bíblicas. Tal tendência, porém, não impediu os protestantes de estarem ligados ao desenvolvimento de causas que transcenderam o seu círculo minoritário: são os casos de Alice Hulsenbos, fundadora no Porto da Sociedade Protectora dos Animais (1878), e de G. L. Santos Ferreira, durante várias décadas um dos grandes dirigentes da Cruz Vermelha Portuguesa. Do mesmo modo, quase todas as denominações tentaram manter escolas primárias, quer para os filhos dos membros das congregações, quer para crianças pobres cujas famílias eram assim cativadas a uma aproximação; com o maior desenvolvimento da rede escolar estatal, a partir dos meados do século XX, as escolas primárias protestantes mais antigas começaram a desaparecer, embora as denominações então com maior vigor missionário, como os Adventistas do Sétimo Dia (nomeadamente com o Colégio de Oliveira do Douro) e as Assembleias de Deus, tenham mantido bem viva esta tradição. Nas várias denominações, os cânticos, a leitura em voz alta das Escrituras e o sermão, eram a substância dos cultos, tendo sido levada a cabo a composição e publicação de hinários, sobre os quais escreveu um autor avalizado que a produção «portuguesa original é pobre, mas é relativamente rica a de tradução» (MOREIRA, A Situação, p. 16); como autores de hinos em língua portuguesa, traduzindo a letra da hinódia popular protestante anglo-americana ou, em menos casos, compondo com música original, destacaram-se (ainda de acordo com o mesmo autor) Robert R. Kalley e sua esposa Sarah Poulton Kalley na fase brasileira da sua obra missionária, Maxwell Wright, Richard Holden, G. L. Santos Ferreira, Dr. Silva Leite, Eurico de Figueiredo, Laura Luz e Leopoldina Rute da Conceição (compilação muito usada desde o século XIX são os Salmos e Hinos, várias vezes reeditados, mas existem também, publicados em Portugal já no século XX, entre outros, um Hinário Adventista e um Hinário Baptista) – ao metodista Robert Moreton deveu-se a difusão entre os protestantes portugueses do solfejo tónico de John Curwen, sistema que facilitava a aprendizagem do canto pelos crentes. A literatura piedosa desenvolveu-se muito cedo, ainda no século XIX, com obras como, por exemplo, as Homilias de Manuel António Pereira Júnior (1875) e as Horas de Conforto e Paz de Augusto Ferreira Torres (póstumo, 1900), mas também com as incursões em tom polémico de Dias da Cunha em temas históricos (Ecos de Roma; Vozes da História, 1885; O que é a confissão auricular?, 1889) ou edições destinadas aos dois públicos evangélicos de língua portuguesa como as Horas Dominicais: Leitura Cristã para Portugueses e Brasileiros (Lisboa, 1898). Estes géneros têm sido cultivados até à actualidade nas várias denominações, sendo comuns as pequenas obras piedosas ou de temas bíblicos e teológicos em língua portuguesa da autoria de um bom número de obreiros, pastores e missionários: só exemplificando dentro do campo pentecostal, poder-se-ia referir a actividade como polemista, cronista e contista do grande missionário Jarl Tage H. Stahlberg (Mistério dos Desaparecidos, As Dez Virgens, A Mulher e a Serpente) ou as obras de Abraão de Almeida (desde de um Tratado de Teologia Contemporânea até escritos como Israel, Gog e o Anticristo); as traduções de muitas obras clássicas da literatura protestante anglo-americana foram também levadas a cabo, desde O Peregrino de John Bunyan (por G. L. Santos Ferreira) até, por exemplo, às principais obras de Ellen G. White (como O Desejado de todas as nações, Aos pés de Cristo, O grande conflito). A actividade editorial no meio protestante português é, aliás, assinalável, bastando citar, além da Sociedade Bíblica, O Núcleo (dirigido pelo editor Fernando Resina de Almeida) ou a ex-Publicadora Atlântico (adventista); a filial portuguesa da Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, das Testemunhas de Jeová, é igualmente uma importante editora e distribuidora de periódicos (como A Sentinela, de periodicidade mensal), tratados e folhetos. Há também um pequeno universo de publicações (efémeras) de pendor cultural e de reflexão, de que se pode destacar a revista Bara, iniciada em 1983 por uma Associação Evangélica de Cultura a que pertenciam, entre outros, o pastor (pentecostal) António Costa Barata. No âmbito dos estudos bíblicos e da teologia – embora existam já nas principais denominações vários pastores com formação académica –, podem ser referidos entre eles, pela sua relevância: dentro da tradição exegética “histórico-gramatical” (tradicional), a trilogia de interpretação bíblica do pastor adventista Ernesto Ferreira com as obras Edificados sobre a Rocha (1987), O Senhor vem (1971, 2.ª ed. 1989) e Profecias cronológicas na história da Salvação (1992); e dentro da tradição exegética “histórico-crítica”, claramente minoritária no P. português, o magistério do pastor presbiteriano A. J. Dimas de Almeida (n. 1937), antigo docente do Seminário Evangélico de Teologia que actualmente lecciona na licenciatura de Ciências Religiosas na Universidade Lusófona, em Lisboa. Até meados do século XX, o P. português foi centrado na Palavra: bíblica, impressa, cantada, escutada; embora com algumas variantes (o pendor liturgista da Igreja Lusitana, a interpretação própria do Baptismo pelos seguidores de Jones), a leitura, a música e a exortação eram o centro da vida religiosa dos protestantes e a Ceia, sob as duas espécies (mensal ou trimestral), era obviamente o momento alto da vida das congregações. O grande crescimento do Pentecostalismo após a Segunda Guerra Mundial, sobretudo com as Assembleias de Deus, alterou a fisionomia desta vivência religiosa, fazendo-a entrar numa época claramente diferente da que se iniciara na segunda metade do século XIX. Nas décadas de cinquenta e sessenta, os Pentecostais introduziram uma vivência carismática da fé, dando ênfase aos dons do Espírito Santo segundo a tradição neotestamentária (dom das línguas, imposição das mãos, curas, profecia), imprimindo ao P. em Portugal uma nova dinâmica cultural e de crescimento. No entanto, a grande expansão do Pentecostalismo, que chegou mesmo a influenciar algumas franjas dos Baptistas e dos Irmãos, contribuiu para fraccionar o universo cultural da minoria protestante portuguesa que ficou mais dividida entre uma sensibilidade mais ligada à herança das Igrejas e denominações históricas vindas do século XIX (herança que é continuada, por exemplo, por grupos que mantêm a centralidade da Palavra, como os Adventistas do Sétimo Dia e as Testemunhas de Jeová) e uma sensibilidade de teor carismático. A capacidade das denominações se auto-organizarem e definirem estratégias de crescimento está ligada ao surgimento de focos de formação de ministros; na ausência de instituições especializadas para esse efeito, organizaram-se por vezes cursos teológicos esporádicos, como o de 1903-1904 na Igreja Lusitana e o Curso Teológico de Cooperação promovido pelos Presbiterianos, Metodistas e Congregacionalistas no período entre as duas guerras mundiais. A primeira denominação a estabelecer uma instituição de formação para o ministério foi a Baptista, em Viseu, em 1922, com Albert Ward Luper (1891-1977), a qual veio a encerrar em 1963; outros dois seminários baptistas funcionaram por períodos aproximados de dez anos e, em 1969, foi instalado em Queluz o actual Seminário Teológico Baptista. Em 1946, foi fundado o ainda existente Seminário Evangélico de Teologia, cujo primeiro reitor foi o missionário presbiteriano Michael P. Testa e ao qual estão ligadas as três Igrejas sinodais. Numa base interdenominacional, a Greater Europe Mission estabeleceu, desde 1974, na Póvoa de Santo Adrião, o Instituto Bíblico Português, dirigido por Gerald Carl Ericson. Ligado às Assembleias de Deus, surgiu em 1966 e instalou-se em 1975 em Fanhões, o Instituto Bíblico de Portugal. Desde então têm sido fundadas outras instituições congéneres de âmbito mais restrito, quer pelas denominações existentes, quer por organizações missionárias internacionais, apesar de algumas denominações, como os Adventistas do Sétimo Dia, formarem os seus ministros em escolas bíblicas e universidades denominacionais na Europa e na América do Norte. As Testemunhas de Jeová (cuja instituição de ensino principal é a Escola Bíblica de Gileade, em Nova Iorque) têm também em Portugal escolas de preparação para o ministério: a Escola de Serviço do Pioneiro e a Escola de Treinamento Ministerial. No campo da historiografia, o universo protestante português tem produzido desde o início algumas monografias; com A Reforma em Portugal de Diogo Cassels (1906) iniciou-se o interesse dos protestantes portugueses pela sua própria história, com seguidores no século XX (Santos Ferreira, Eduardo Moreira, Albert Aspey, Michael P. Testa, e mais recentemente, Manuel Pedro Cardoso e Herlânder Felizardo). A investigação histórica sobre o P. em Portugal, sobretudo sobre o sector das Igrejas sinodais, muito tem devido a investigadores denominacionais como os aqui referidos, tendo recebido depois o contributo crítico e enriquecedor de François Guichard, da Universidade de Bordéus, bem como dos investigadores (F. A. Costa Peixoto, J. M. Mendes Moreira, Narciso P. Ferreira de Oliveira, Maria Zita F. A. Ferreira da Costa e Joana S. Pina Cabral) saídos do seminário dirigido pelo Doutor João Marques no Mestrado de História Moderna da Faculdade de Letras do Porto. O pastor Manuel Pedro Cardoso destaca-se por, em 1985, ter publicado uma tentativa de síntese de uma história de século e meio, enquanto o pastor Herlânder Felizardo, mais recentemente, deu um importante contributo para o conhecimento do sector Baptista; merecem igualmente menção, pelas investigações relativas aos sectores Adventista e Pentecostal, respectivamente, o pastor Ernesto Ferreira e o pastor António Costa Barata. O antecessor de todos estes esforços foi seguramente Eduardo Henriques Moreira (1886-1980), o mais produtivo e prestigiado autor protestante do século XX; além de inúmeras traduções por si efectuadas, escreveu sobre uma grande variedade de assuntos religiosos, sociais e culturais, destacando-se: A Crise Nacional e a Solução Protestante (1910), História Sagrada para o Povo Decorar (1920), O Cortejo dos Heróis Desconhecidos (1925), A Situação Religiosa de Portugal (1935), Esboço da História da Igreja Lusitana (1949), Crisóstomo Português (1957), Vidas Convergentes (1958), Relação da Religião com a Política (1974); pastor, erudito e historiador no longo período da crise da monarquia constitucional à ruptura de 1974-75, Moreira foi um proponente metódico de uma sociedade pluralista que integrasse naturalmente a religião e as minorias religiosas na vida nacional, longe tanto do favorecimento político da hegemonia católica romana como do jacobinismo laicista.

[«Protestantismo» (vol. P-V-Apêndices, pp. 75-85), Dicionário de História Religiosa de Portugal (dir. Carlos Moreira Azevedo), Lisboa: Círculo de Leitores, 2000-2001.]

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