domingo, julho 27, 2008

Carta ao papa Pio IX (Charles Hodge)


A Pio IX, Bispo de Roma.

Pela vossa encíclica, datada de 1869, convidais os protestantes a enviarem delegados para o Concílio convocado a reunir-se em Roma durante o mês de Dezembro do corrente ano. Esta carta foi levada ao conhecimento de duas Assembleias Gerais da Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos da América. Estas Assembleias representam cerca de cinco mil ministros e um número bem maior de congregações cristãs.

Crendo, como cremos, que é a vontade de Cristo que a Sua Igreja na terra deva ser unida, e reconhecendo que temos o dever de fazer coerentemente tudo o que pudermos para promover a caridade e a comunhão cristã, julgamos correcto apresentar resumidamente as razões que nos proíbem de participar nas deliberações do Concílio vindouro.

Não é que tenhamos rejeitado algum artigo da fé católica. Não somos heréticos. Recebemos sinceramente todas as doutrinas contidas no Símbolo conhecido como Credo dos Apóstolos.

Consideramos todas as decisões doutrinárias dos primeiros seis concílios ecuménicos como consistentes com a Palavra de Deus, e por causa disso os recebemos como expressão da nossa fé. Cremos, portanto, na doutrina da Trindade e da pessoa de Cristo conforme expressas nos símbolos adoptados pelo Concílio de Niceia (321 A.D.), nos do Concílio de Constantinopla (381 A.D.) e, mais inteiramente, nos do Concílio de Calcedónia (451 A.D.). Cremos que há três pessoas na Divindade, o Pai, o Filho, e o Espírito Santo; e que estes três são de uma mesma substância e iguais em poder e glória.

Cremos que o Eterno Filho de Deus se tornou homem ao tomar sobre si um corpo verdadeiro e alma racional, e assim foi e continua a ser igualmente Deus e homem, em duas naturezas distintas numa pessoa para todo o sempre. Cremos que o nosso adorável Senhor e Salvador Jesus Cristo é o profeta que deveria vir ao mundo, em cujos ensinamentos devemos crer e em cujas promessas confiar. Ele é o Sumo Sacerdote de quem a infinita satisfação meritória à justiça divina, e intercessão sempre eficaz, é a única base para a aceitação e justificação do pecador diante de Deus.

Reconhecemo-Lo como nosso Senhor não apenas por sermos Suas criaturas, mas por termos sido comprados pelo Seu sangue. À Sua autoridade devemos submeter-nos, em Seu cuidado confiar, e todas as criaturas no céu e na terra devem ser consagradas ao Seu serviço.

Recebemos todas aquelas doutrinas relativas ao pecado, à graça e à predestinação — conhecidas como Agostinianas — que foram sancionadas não apenas pelo Concílio de Cartago e por outros Sínodos provinciais, mas também pelo Concílio Ecuménico de Éfeso (431 AD.) e por Zózimo, bispo de Roma.
Não podemos, por essa causa, ser acusados de heréticos sem que, conjuntamente, se condene toda a antiga Igreja.

Tão-pouco somos cismáticos. Afectuosamente reconhecemos como membros da Igreja visível de Cristo na terra todos aqueles que, juntamente com seus filhos, professam a verdadeira religião. Não só estamos dispostos, mas também ardentemente desejosos manter comunhão cristã com eles, desde que não exijam, como condição desta comunhão, que professemos doutrinas que a Palavra de Deus condena, ou que devamos fazer o que ela proíbe. Em todo caso, qualquer igreja que estabelece tais termos antibíblicos para a comunhão, o erro e a falta está nesta igreja e não em nós.

Embora não declinemos o vosso convite por sermos heréticos ou cismáticos, estamos, no entanto, impedidos de aceitá-lo porque adoptamos, com uma confiança cada vez maior, os princípios pelos quais os nossos pais foram excomungados e amaldiçoados pelo Concílio de Trento, que representou, e ainda representa, a Igreja à qual presidis.

O mais importante desses princípios é que a Palavra de Deus, contida nas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento, é a única e infalível regra de fé e de prática.

O Concílio de Trento, contudo, declarou anátema todo aquele que não recebe o ensinamento da tradição “pari pietatis affectu” (com igual sentimento piedoso) que as próprias Escrituras. Não podemos fazer isso sem incorrer na condenação que nosso Senhor pronunciou contra os fariseus que invalidavam a Palavra de Deus pelas suas tradições (Mt. 15:6). Em segundo lugar, o direito de julgamento individual. Quando abrimos as Escrituras, descobrimos que elas são voltadas para as pessoas. Elas falam connosco. Somos ordenados a buscá-las (Jo 5:39), a crer no que elas ensinam.

Somos pessoalmente responsáveis pela nossa fé. O apóstolo ordena-nos a denunciar como anátema apóstolo ou anjo descido do céu que ensine qualquer coisa contrária à Palavra de Deus divinamente autenticada (Gal.1:8). Ele tornou-nos juízes, colocando em nossas mãos o preceito do julgamento, e fez-nos responsáveis pelos nossos julgamentos.

Ainda mais, encontramos que o ensinamento do Espírito Santo foi prometido por Cristo não apenas ao clero, muito menos a uma específica ordem clerical, mas a todos os crentes. Está escrito: “E serão todos ensinados por Deus”. O apóstolo João diz aos crentes: E vós possuís unção que vem do Santo e todos tendes conhecimento [...]. Quanto a vós outros, a unção que dEle recebestes permanece em vós, e não tendes necessidade de que alguém vos ensine; mas, com a Sua unção vos ensina a respeito de todas as coisas, e é verdadeira, e não é falsa, permanecei nEle, como também ela vos ensinou” (1 João 2:20,27).
Este ensinamento do Espírito autentica a si mesmo, como o mesmo apóstolo nos ensina, quando diz: “Aquele que crê no Filho de Deus tem, em si, o testemunho” (1 João 5:10).

Não vos escrevi porque não saibais a verdade: antes porque a sabeis e porque “mentira alguma jamais procede da verdade” (1 João 2:21). O julgamento particular é, portanto, não apenas um direito, mas um dever, do qual homem algum pode isentar-se a si mesmo, ou ser desobrigado por outros.

Cremos, em terceiro lugar, no sacerdócio universal dos crentes, isto é, que todos os crentes têm, através de Cristo, acesso ao Pai em um Espírito (Ef 2:18); para que possamos acercar-nos com ousadia ao trono da graça, para alcançarmos misericórdia e encontrar graça para socorro em tempo de necessidade (Hb.4:16): “Tendo, pois, irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que Ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela Sua carne, e tendo grande sacerdote sobre a casa de Deus, aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé, tendo o coração purificado da má consciência e lavado o corpo com água pura” (Hb. 10:19-22).

Admitir, portanto, o sacerdócio do clero, como intervenção necessária para nos assegurar a remissão do pecado e outros benefícios da redenção de Cristo, é renunciar ao sacerdócio de nosso Senhor, ou à suficiência deste sacerdócio em assegurar-nos a reconciliação com Deus. Em quarto lugar, negamos a perpetuidade do apostolado. Assim como nenhum homem pode ser apóstolo sem o Espírito de profecia, também nenhum homem pode ser apóstolo sem os dons de apóstolo. Tais dons, como aprendemos pela Escritura, eram o conhecimento plenário da verdade derivada de Cristo pela revelação imediata (Gal.1:12) e a infalibilidade pessoal como mestres e legisladores. Paulo ensina-nos quais eram os selos do apostolado quando diz aos Coríntios: “Pois as credenciais do apostolado foram apresentadas no meio de vós, com toda persistência, por sinais, prodígios e poderes miraculosos” (2Cor. 12:12). Não podemos submeter-nos a prelados que reivindicam ser apóstolos, e que requerem a mesma confiança em seus ensinamentos, e a mesma submissão à sua autoridade, como a que é devida aos inspirados mensageiros de Cristo. Isto seria conceder a homens falíveis a submissão devida somente a Deus ou aos seus mensageiros divinamente autenticados e infalíveis.

Muito menos podemos reconhecer o Bispo de Roma como o vigário de Cristo sobre a terra, coberto da autoridade que Cristo exerceu sobre a Igreja e o mundo quando aqui esteve encarnado.

É patente que ninguém que não tenha os atributos de Cristo pode ser o vigário de Cristo. Considerar o Bispo de Roma como vigário de Cristo é, portanto, reconhecê-lo virtualmente como divino. Devemos permanecer firmes na liberdade com que Cristo nos libertou. Não podemos ser despojados da nossa salvação por colocarmos um homem no lugar de Deus; concedendo a alguém semelhante a nós o controle interior e exterior de nossa vida, o que é devido unicamente Àquele em quem estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento, e em quem habita a plenitude da Divindade.

Poder-se-iam assinalar outras razões, igualmente compulsórias, pelas quais não podemos, de boa consciência, estar representados no Concílio proposto. Entretanto, como o Concilio de Trento, cujos cânones ainda vigoram, declarou maldito todo aquele que crê nos princípios enumerados acima, nada mais é necessário para demonstrar qual a razão por que declinamos o vosso convite.

Conquanto não possamos voltar à comunhão com a Igreja de Roma, desejamos viver em caridade com todos os homens. Amamos todos aqueles que sinceramente amam a nosso Senhor Jesus Cristo. Consideramos como irmãos em Cristo todos aqueles que O adoram, O amam e Lhe obedecem como seu Deus e Salvador; e esperamos estar juntos no Céu com todo aquele que juntamente connosco na terra declara:
“Àquele que nos ama e, pelo Seu sangue, nos libertou dos nossos pecados, e nos constituiu reino, sacerdotes para o Seu Deus e Pai, a Ele a glória e o domínio pelos séculos dos séculos. Ámen” (Ap.1:6).

Assinado em nome das duas Assembleias Gerais da Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos da América,

Charles Hodge. [1869]